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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

12
Out24

O duplo

Sónia Quental

 

         Quem não conhecia o Emílio ficava a saber tudo quando lia no seu perfil das redes sociais que se tinha formado na Universidade da Vida, instituição com uma das mais altas taxas de diplomados. O ramo em que o Emílio se tinha especializado era o da Observação, mais especificamente a Observação Furtiva.

       Munido do vasto conhecimento de psicologia adquirido na experiência de campo, Emílio gostava de se sentar no café a observar o ser humano no seu habitat natural, anotando os seus mais pequenos trejeitos com ar pensativo e anexando-os ao mapa do comportamento humano que desenvolvia para a sua Teoria de Tudo, uma tetralogia que o assistente de IA convertia em texto.

       A chegada dos telemóveis veio dificultar-lhe a tarefa, porque as pessoas conversavam e esbracejavam menos com o aparelho na mão, o que o obrigava a concentrar-se nas suas microexpressões e a esbugalhar os olhos, correndo o risco de comprometer o disfarce. Na impossibilidade de pilotar um drone sem dar nas vistas, mantinha-se fiel ao seu posto e ao caderninho preto de capa dura, tentando fazer voz grossa quando o empregado de mesa lhe perguntava se queria mais alguma coisa.

         O Emílio não brincava em serviço, e todo o seu processo começava pela escolha de uma presa. Naquele dia aborrascado de outono, muitos chegavam ao café em busca de refúgio, guarda-chuva partido e cabelo em carapinha. A agitação era maior, a comoção do Emílio também, tal a fartura de material em estado bruto, atiçando-lhe a avidez de cientista nato.

         Descruzadas as pernas e apurado o ouvido para começar a ouvir as conversas, estava prestes a pedir dois sonhos, rendido ao aroma natalício que já se sentia no ar, quando foi apanhado de surpresa: no ecrã sem brilho do próprio telemóvel, Emílio viu, horrorizado, o contorno de outro Emílio atrás de si, observando-o à distância de duas mesas.

 

08
Out24

O Guru da Escrita Levezinha

Sónia Quental

 

        Se havia quem gostasse de levantar pesos, ele preferia levantar levezas. Começava todas as manhãs com push-ups de palavras de duas sílabas, mas o objetivo era diminuir a carga com o tempo, até chegar à unidade mínima da consoante surda, ao texto sem forma no ecrã em branco. Não o confessava em público, mas queria subtrair dois quilos ao dicionário, abater-lhe os pneuzinhos da cintura e lançar uma nova dieta sem excesso de proteína, assente nos princípios da escrita funcional.

          À comunidade de seguidores que treinava para competir na mesma categoria, dava achegas preciosas para a criação de conteúdos, subordinadas ao preceito “Menos É Mais!”: reduzam o parágrafo à frase, a frase à palavra, a palavra à sílaba. Simplifiquem, simplifiquem, simplifiquem. Leiam revistas cor-de-rosa, horóscopos, o Correio da Manhã se for preciso. Usem e abusem de estímulos visuais. Acima de tudo, não macem o Leitor! Um bom texto é aquele que fala ao coração através da linguagem sem filtro do Desabafo. Por isso, não tenham medo de partilhar a vossa intimidade nem de abrir o peito para mostrar os seres únicos e especiais que são. E não deixem de fazer menção velada à humildade na vossa mensagem de marketing pessoal.

         Para ninguém se perder, condensou o Regime nestas 11 regras incompletas, que partilhou num fórum dedicado aos pesos-leves:

 

1. O Leitor vem sempre em primeiro lugar. Facilitem-lhe a vida e digam-lhe o que ele gosta de ouvir para caírem nas suas boas graças. Não percam tempo com gente insegura que está de mal com a fofura e se recusa a reconhecer o vosso génio. Tudo o que é crítica vem da inveja secreta de um hater.

 

2. Criem listas numeradas de truques ou dicas e anunciem-nas no título. O Leitor não sabe contar e gosta de textos PRÁTICOS, com instruções passo a passo e os passos contados antes de começar.

 

3. Usem Maiúsculas Em Todos Os Títulos, Subtítulos E Em Tudo O Que Vos Der Na Gana.

 

4. Não testem a paciência do Leitor: depois de cada parágrafo, introduzam uma imagem para ele descansar os olhos e não desistir da leitura nem adormecer antes do fim.

 

5. Escrevam como falam, sem truques. Adotem a escrita automática e pensem só depois de escrever (mas não demasiado). “Autenticidade” é a palavra de ordem!

 

6. Sempre que possível, misturem o português com o inglês, até chegarem à proporção ideal de 50/50. É uma técnica inclusiva e menos discriminatória.

 

7. Um ponto de exclamação nunca vem só!!

 

8. Consultem um profissional de SEO para vos dizer que expressões sem nexo gramatical semear no post para ele aparecer nos resultados de pesquisa. O objetivo final? O clique e a conversão. Não tenham medo de ser criativos nem de reinventar a língua. A pátria agradece.

 

9. Se o assunto for controverso, citem vagamente um coletivo de “especialistas”. Nunca falha!

 

10. Em vez de se apressarem a julgar o Erro, lembrem-se de que não existe tal criatura: apenas formas diferentes de se dizer a mesma coisa, nenhuma melhor nem pior do que a outra.

 

11. Se tiverem um destaque no SAPO, parabéns! O reconhecimento tardou, mas é sinal seguro de que devem enviar um manuscrito para uma editora: são escritores de pleno direito! Um pequeno passo para o vosso talento, um grande salto para a Humanidade.

 

         Hesitou por instantes antes de escrever a palavra “discriminatório”. Era um bocado pesada e parecia ir contra os Princípios declarados, mas o Guru da Escrita Levezinha gostava de mostrar que era homem de paradoxos, que gostava de explicar as suas contradições. Além disso, não acreditava em rever rascunhos e estava quase na hora da live para o Tik Tok.

 

04
Out24

Crónica de uma desinfestação anunciada

Sónia Quental

 

         Maria Benedita sempre quisera viver em tempos diluvianos. No dia da desinfestação geral, acordou tarde de um sonho em que inspecionava a Arca de Noé para garantir condições mínimas de salubridade.

         Quando assinara a escritura do apartamento, mal podia prever que em breve veria concretizada a fantasia de pragas, inundações e assaltos numa zona até então pacata do Porto. À data funesta do controlo de pragas, já contava com dois pedidos de casamento de forasteiros que a tinham seguido da estação de metro, sinal de que o patriarcado continuava a ganhar terreno.

        Coincidência ou não, os supramencionados tinham afluído em magote para o prédio que habitava, onde se espremiam num T1 sem varanda, deixando no elevador o cheiro entranhado de quem não vai a banhos, revezado pelo perfume a caril que penetrava nos apartamentos às quatro da tarde em ponto.

         No assalto à garagem, felizmente, só tinha ficado sem o volante do automóvel, os óculos de sol de 500 € que tinha comprado em saldos e as moedas pretas que tinha posto de parte para dar aos pobres. Mas depois vieram os percevejos e as baratas.

         Admitia que a princípio ficara contrariada com o verão passado em sobressalto. Chamou-se a Proteção Civil, que imitou o exemplo de Pilatos: encolheu os ombros e foi-se embora. O foco da infestação já fora intervencionado e baratas nem vê-las. Dos 18 apartamentos do edifício, só 17 estavam infestados. Os relatórios dos especialistas neste caso de nada serviram, nem os vídeos com a malandragem da bicharada. Sem baratas no Foco, nada a fazer. A higiene não podia ser mandada.

        Como mulher do Norte, Maria Benedita sabia apertar limões para fazer limonada, que o mesmo é dizer: aproveitar os insetos para fazer batidos proteicos. Todos os desafios são uma oportunidade disfarçada, e a próxima experiência culinária era Barata à Gomes de Sá. Elas já se tinham afeiçoado aos tachos e ao frigorífico, e a veia empreendedora de Benedita tinha-lhe dado a ideia de lançar uma nova marca de insetos comestíveis. Foi então que marcaram a desinfestação geral, com fatura em nome dos condóminos.

         É nesse dia que a encontramos, despenteada e a cambalear depois de perceber que o despertador já tinha tocado três vezes. Na mesinha de cabeceira estava a “Lista de Palavras a jamais Pronunciar” que o personal trainer lhe tinha dado. Quando cometia o pecado de pensar que já não podia mais, a penitência estava marcada: recitar 108 Om em posição de meia-lua. Era preciso pensar positivo e nunca aceitar derrota. Furado o plano A, havia sempre outra letra no alfabeto: lembrou-se de que tinha ouvido o presidente da Câmara anunciar na televisão que o Obélix doara à cidade o seu espólio de menires, construções jeitosas para habitação: T0 com kitchenette e varanda. Se tivessem tomada e internet, valia a pena investir, a menos que a obrigassem a pagar taxa turística. Tomou uma nota mental. De resto, já estava acostumada às aragens.

 

 

NOTA: Crónica baseada em factos reais, com efeitos de dramatização verídicos. Só o nome da vítima foi alterado, para evitar novas propostas de casamento.

 

02
Out24

Curvas

Sónia Quental

Our bodies are not designed to follow straight lines.

Angela Farmer

 

 

         O corpo expressa-se por linhas curvas. Conhece bem o ataque de retas e vértices, o castigo requintado de ocupar uma pose que não é a sua. O corpo não quer fazer acrobacias: quer ir para o chão amolecer dores incrustadas. Quer esticar-se, torcer-se e destorcer-se, moer devagar a recusa com que se fecha. O corpo conhece o cuidado que as aberturas pedem: a escolha certa do grau certo no momento exato. Fera subtil, não obedece a mandos. Sabe o que quer e o que talvez queira, mapa da memória que só quem não sabe atravessa a direito. Conhece melhor a sua astúcia do que quem o açoita, regime marcial em rotação contínua, vinte flexões e outras vinte e ainda não chega. Senhor dos seus ouvidos e só depois do nariz, o corpo reage à brutalidade que o agride, quebra o molde e vai embora.

 

A espreitar pelo buraco (2).jpeg

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

26
Set24

Bicho do buraco

Sónia Quental

Uma autoestima isenta de fissuras traduz um amor-próprio mal informado.

Montse Barderi

 

 

         Cresci agudamente consciente da privação: privação de dinheiro, de qualquer conforto que desse mau nome à austeridade, de desejos de porta aberta, do consentimento. O amor era uma animal raro que acenava da ficção de livros e filmes, dos poemas de serial lovers como Pablo Neruda, com as suas metáforas em foguetes a céu aberto. Na vida real, não o encontrava senão em lapsos de curta duração, fogos teatrais, logo transformados no que parecia o oposto do amor, um campo minado onde nunca se sabia qual seria a próxima explosão nem quando o bicho atacaria as mãos que o queriam salvar.

         Disseram-me que o primeiro passo para o amor era a autoestima, solução pronta para os cabelos baços da vida, que ora caíam, ora davam nó. Como é que nunca me tinha lembrado disso?... Juntei esse fardo aos outros, entalado entre os planos de sessão e as fotocópias, a renda da casa, os recibos verdes. Invejava as pessoas que pareciam ter tudo fácil, autoestima incluída. Invejava até quem só tinha autoestima, porque a carência de substância nunca perdia popularidade. Mas a inveja era verde, como os recibos, e tão feia como eles – não a queria para mim. Já a “Autoestima” não passava de manual de páginas brancas que só trazia título, desses aparelhos de instalação automática e botão único, precursores de uma inteligência artificial que já então se aderia pouco, dispensando FAQ e a resolução de problemas comuns – pois que problemas poderia ter o utilizador de semelhante dádiva?

         De meu lado, não havia banho de espuma nem afirmações que a materializassem, segredos femininos de mulheres com passo de deusa – e nada que me convencesse de que o que precisava era do toque mágico da yoni healing. O dedo que me apontavam dizia: bloqueada. Escrevi na minha lista: 1. Encontrar a autoestima, 2. Desfazer bloqueios, 3. Não me fechar em casa. Como sempre, fiz tudo ao contrário. E foi dentro de casa, com prognóstico reservado e contra o parecer dos especialistas, que encontrei o animal extinto, na mesma barriga onde a fome tinha feito um buraco que nunca fechava. Bastou deixar de bater com o martelo, de tentar encaixar em lugares e pessoas que não eram os lugares pro que eu sou. Deixei de pensar que o problema era eu. Não acreditei mais em bloqueios, nascimentos tortos, o fantasma de Saturno na casa 12. Deixei explodir todas as minas. O amor foi o que ficou intacto. Estava lá no início, ao mesmo tempo que Eu.

 

19
Set24

Elogio da escuta

Sónia Quental

            Mas numa era em que a escuta é vista como um fardo, as pessoas sentem-se envergonhadas, embaraçadas ou culpadas quando alguém as escuta, e ainda mais quando reflete sobre o que disseram. 

Kate Murphy

 

 

         Há muito quem ouça, poucos que escutem. Aprendi a falar mais por imitação do que por correção, mas, ao contrário dos que escrevem como falam, acabei a falar como escrevo. A escuta, por sua vez, vai ainda nos primeiros passos, por tentativa e erro, pedindo-me a concentração intensa dos começos no exercício de ser um espelho mais limpo, com várias séries de repetições, dia sim, dia sim.

     Como ato intencional, consome-se uma grande energia só na preparação para não se estar preparado, isto é, para ouvir sem antepor ou apressar desfechos, sem ter a resposta na calha, mesmo que isso abra rotundas lentas de silêncio. Parte da aprendizagem é saber a quem dar atenção, quando pedir esclarecimentos, em que momento interromper a escuta e dizer “Já chega”. Como sugere Kate Murphy em O que Perde quando não Está a Ouvir, “Ainda que a escuta seja a epítome da graciosidade, não é uma cortesia que devamos a todos”.

         Por isso, como as prendas que escolhemos de modo premeditado, a qualidade importa. E, para aprender a ouvir bem, vem-se a descobrir que é preciso fazê-lo com o corpo todo, aprender o vocabulário do que não é dito, tarefa onde entram também as mãos, num treino full-body que desmente a passividade aparente.

         Perante a ostensiva falta de ouvidos pacientes, é a busca da escuta, de se ser recebido, que faz as filas para o psicólogo e o cabeleireiro, de onde não se sai de pés, mas de cabeça lavada, que é a mesma coisa - com direito a massagem, no último caso. Quando era pequena, gostava de brincar às cabeleireiras: pelo toque que me acalmava o pensamento, como carícia que se movia por vagares e redemoinhos, sem pedir nada em troca (só que pedia). É assim, à vez, que nos escutamos, desejavelmente sem acumular calotes.

         Mesmo que a escuta não se distribua a rodos, andar de ouvido atento e antena sintonizada é a melhor meditação que conheço. Começar por nos ouvirmos a nós mesmos é condição necessária para que possamos escutar o outro. E, quando há ruído na comunicação, quando nos distraímos ou tropeçamos na atenção, o bom da escuta é que podemos sempre começar de novo.

 

13
Set24

Ciclos

Sónia Quental

 

Have no link with the past, no link with the future, and look unto the in between.

H. W. L. Poonja

 

 

          Não vivemos de ano a ano: de passagem em passagem de ano, de aniversário em aniversário, com os cantos já dobrados de um calendário dividido em partes iguais. É por ciclos que nos derramamos, também eles às turras, como as estações, sem meteorologia que os ponha no sítio e nos deixe o vagar das preparações – como as que fazemos para as férias, o regresso à escola, a limpeza de Páscoa, as sextas-feiras 13.

          O momento entre um ciclo e o outro é o de ficar no ar, agarrado à cauda de um conforto conhecido, coberto de borbotos, que nos empurra para o sono de uma felicidade interrogada (que alguém interroga sem dar a cara).

       Quando adiante o chão é aberto, sem linhas que esclareçam o horizonte e marquem caminhos, constelações decalcadas em roteiros, os pés desinquietam-se da falta de coordenadas. Querem a segurança dos trilhos certos, a memória de uma coreografia ensaiada.

          Já não estar no que foi antes, não saber o que vem a seguir: assim é viver na corda do tempo. Quem sou entre o que fui e o que vou a ser?

          Mãos e pés agarram-se ao chão que treme e rasga, unindo as beiras que se afastam, até o corpo não ser ponte que chegue, o destino em queda certa. Neste meio vácuo, na garganta do que não se sabe, entre um pensamento e o quase, estica-se a vastidão do Possível. Dela sou o instrumento que se afina.

           Sexta-feira 13. Quem sabe o que descomeça aqui.

 

Macacão cor de laranja (7).jpg

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Set24

Novilíngua

Sónia Quental

O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade.

George Orwell

 

 

         Basta passar uma hora a rever textos que saem dos teclados do copywriting e da produção de conteúdos para a web e é certo e garantido que o resultado é a cabeça a andar à roda. É tal o contorcionismo para evitar termos com conotação negativa que a tão apregoada simplicidade de escrita descamba em construções perifrásticas mais opacas do que os mais loucos delírios da burocracia.

        Os eufemismos forçados geram toda uma linguagem com âncoras estereotipadas que se adivinha de olhos fechados, num esforço que já não é de escolher palavras para transmitir conteúdo, mas de inventar conteúdo para ligar de forma precária e imaginativa um catálogo de termos selecionados de antemão para produzir um determinado efeito no leitor ou obter o posicionamento ideal no ranking dos motores de busca.  

       Além dos já aqui mencionados “desafio” e “resiliência”, merece menção especial o verbo “experienciar”, que, à semelhança do inglês, adquiriu no português uma elasticidade capaz de omitir opções mais simples e diretas, como “sentir”. “Sentir”, “passar por”, “perceber”, “conhecer”, “vivenciar” – tudo se “experiencia”, de todas as maneiras. Grande é a frustração experienciada por quem tem de ler e endireitar, voltar a rechear de carne o cadáver ressequido da língua!

       Quem quiser servir o mesmo guisado, basta misturar pobreza vocabular, repetição ad nauseam, utilização de termos imprecisos e vazios, e polvilhar tudo com uma profusão de pontos de exclamação que ainda há quem acredite que promova a venda. Como se o resultado da receita não fosse uma linguagem bastarda q.b., ainda é preciso peneirá-la e, se necessário, riscar as palavras do dicionário, segundo a lógica de que eliminá-las da comunicação as apagará também do pensamento, sendo a realidade magicamente transformada na mesma penada.

         Na área da mentoria, afirmou-se há algum tempo a moda de substituir o “mas” pela copulativa “e”, uma das estratégias utilizadas para evitar bloqueios mentais, ao remover do discurso qualquer sugestão de adversidade. O “não”, essa das minhas palavras favoritas, quer-se extinto no mandamento novo que proíbe dizer “Não posso” ou “Não consigo”, inculcando por hipnose que tudo podemos e conseguimos. Sei o que Freud teria a dizer sobre o assunto, mas a única resposta que me ocorre para programas desse calibre é um simples “Não quero”, com o “não” bem redondo logo à entrada. Se precisarem de porquês, sai um “Porque não” a negrito.

 

04
Set24

Selvagem

Sónia Quental

 

         Estava no meu primeiro exílio, a colónia de férias, quando a primeira banda sonora me fechou a infância, entranhando-se no nevoeiro de um abandono com hora marcada. Todas as tardes, o bar da praia fazia soar a música “Nasce selvagem”, toada para uma cria que não fazia parte da ninhada e não sabia que “selvagem” era palavra que lhe descrevesse a vergonha.

         Compreendo agora que foi a forma mais fácil de me dizer que vinha para atravessar a lonjura, deixar família, amigos, trabalho, vocação para trás. A forma mais melódica que havia de me contar que ia passar a vida a ir embora, a mim, que tinha medo de bruxas, gente desdentada e mulheres com pelos nas pernas (a minha mãe era esteticista, por isso eu reparava sempre nos pelos). Não se podia recorrer aos profissionais dos oráculos para entregar a mensagem, por isso ela veio cantada pelos ares de um verão sem sol nem azul.

         Virgem de passado e com o coração mais ou menos ileso, estava longe de compreender palavras como “rotina” ou “profissão”. Mas nos Perdidos e Achados nunca disseram o meu número e eu despertencia cada vez mais. Não era de ninguém, também não era minha. E não parava de nascer, prematura, de encontrar novos exílios que cantavam a mesma canção, até que parei para ouvir. E descobri-me selvagem no “não” que trago pendurado na boca desde que aprendi a falar. Todas as vezes que aprendo a falar, o começo é com a mesma palavra, a que me tentaram fazer engolir, com medo da sombra que as palavras projetam. É nela que me enrosco, outra vez feto, cada vez mais minha.

 

 

30
Ago24

Poliamor

Sónia Quental

(…) ele foi capaz de transmitir o horror de um mundo no qual ‘todos pertencem a todos’, um mundo no qual ninguém poderia construir qualquer ligação profunda com ninguém. O alvo principal da distopia de Huxley era a ideia de boa vida como gratificação instantânea dos desejos sensoriais.

 

Theodore Dalrymple

 

 

          Chamou-me a atenção uma capa de revista na montra da papelaria, sugerindo, de forma interrogada, que o amor romântico terá acabado e que a monogamia se tornou obsoleta. Se está impresso na capa de uma revista, deve ser verdade e não há perigo de desinformação, por isso acreditei no diagnóstico.

          Sabia-se já que a desconstrução da identidade sexual preparava a desconstrução da monogamia, um conceito reduzido ao seu caráter histórico e social, num momento em que até a biologia perdeu o estado de graça. A culpa, já se sabe, é do patriarcado, e os modos de viver o amor não passam de correntes do obscurantismo que percorreu as sucessivas épocas, até chegarmos ao presente esclarecido em que temos a felicidade de viver, preparados para acabar com as repressões, derrubar estereótipos e proclamar a liberdade de vida, que gravita em torno da liberdade sexual.

         Da definição de limites rígidos passamos à fluidez gelatinosa da identidade de género e de relação, em que se vive fundamentalmente para coçar comichões. Como propõe Regina Navarro Lins, autora de Novas Formas de Amar, em que se baseia em parte o artigo de revista a que aludo à entrada, chegou a altura de arejar as nossas ideias a respeito de amor e sexo – ou de levar a cama para a varanda, imagem que dá o título a outra das suas obras e que ilustra bem as correntes de ar que ventila.

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          Se o amor romântico é mito ou ilusão, é ilusão que encontra finalidade no crescimento pessoal, que dificilmente acontece numa existência isolada. Uma ilusão que pode levar-nos ao encontro da verdade do amor ou à sua sublimação como verbo. Trocar essa ilusão a dois pelo regresso à selva amorosa é preferir uma miragem serpentina, que não só não vem resolver os dilemas com que as pessoas se confrontam dentro da monogamia, sintoma de um vazio íntimo que se propaga, como vem exacerbá-los, iniciando uma espiral que só tem um sentido: descendente.

          A normalização das relações "abertas" consagra-as ao capricho do momento. “Infelizmente, os caprichos de duas pessoas raras vezes coincidem”, sinaliza Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, um título que nos atira da varanda para a valeta, mas que introduz, desde esse nível rasteiro, uma reflexão bem mais profunda sobre o abismo existencial, o tédio e a degradação moral que marcam o grito do Ipiranga sexual: o grito do bárbaro moderno.

          Evocando o significado simbólico de um dos meus contos de fadas preferidos, enquadrado no ciclo do animal-noivo (“A Bela e o Monstro”), Bela perdeu nesta revolução sexual o poder de revelar o príncipe no monstro, sendo agora o monstro que a absorve e transforma num ser à sua semelhança: bem-vinda ao bacanal fluido do poliamor.

 

Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. (…). Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.

R. M. Rilke

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0