O duplo
Quem não conhecia o Emílio ficava a saber tudo quando lia no seu perfil das redes sociais que se tinha formado na Universidade da Vida, instituição com uma das mais altas taxas de diplomados. O ramo em que o Emílio se tinha especializado era o da Observação, mais especificamente a Observação Furtiva.
Munido do vasto conhecimento de psicologia adquirido na experiência de campo, Emílio gostava de se sentar no café a observar o ser humano no seu habitat natural, anotando os seus mais pequenos trejeitos com ar pensativo e anexando-os ao mapa do comportamento humano que desenvolvia para a sua Teoria de Tudo, uma tetralogia que o assistente de IA convertia em texto.
A chegada dos telemóveis veio dificultar-lhe a tarefa, porque as pessoas conversavam e esbracejavam menos com o aparelho na mão, o que o obrigava a concentrar-se nas suas microexpressões e a esbugalhar os olhos, correndo o risco de comprometer o disfarce. Na impossibilidade de pilotar um drone sem dar nas vistas, mantinha-se fiel ao seu posto e ao caderninho preto de capa dura, tentando fazer voz grossa quando o empregado de mesa lhe perguntava se queria mais alguma coisa.
O Emílio não brincava em serviço, e todo o seu processo começava pela escolha de uma presa. Naquele dia aborrascado de outono, muitos chegavam ao café em busca de refúgio, guarda-chuva partido e cabelo em carapinha. A agitação era maior, a comoção do Emílio também, tal a fartura de material em estado bruto, atiçando-lhe a avidez de cientista nato.
Descruzadas as pernas e apurado o ouvido para começar a ouvir as conversas, estava prestes a pedir dois sonhos, rendido ao aroma natalício que já se sentia no ar, quando foi apanhado de surpresa: no ecrã sem brilho do próprio telemóvel, Emílio viu, horrorizado, o contorno de outro Emílio atrás de si, observando-o à distância de duas mesas.