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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

29
Abr23

Luminárias

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (4).jpg

It is so dificult to find a teacher these days. There are mostly preachers. A real teacher has no teaching.

H. W. L. Poonja

 

Most teachers are false teachers, and most seekers and false seekers.

H. W. L. Poonja

  

Percebo que Alexandre Mota quisesse perguntar a Jordan Peterson que compatibilidade haveria entre o Deus Cristão e aquele a que de modo incauto chama o “Deus Panteísta”, à guisa de matchmaker desavindo, em busca de uma luminária que lhe dê razão.

Andamos, muitos, em busca de luminárias, entre tantos falsos brilhos e a falta de referências que alumiem um ignoto deo. Percebo o que diz, apesar da falta de rigor, quando fala das “experiências esotéricas ao estilo panteísta” que vieram substituir o fascínio do existencialismo. Penso, sim, que é preferível “agir como se Ele existisse” do que sucumbir à convicção fácil do ateísmo (embora me pareça que a diferença não seja tanta assim).

Também a mim me indignam muitas das tendências que nomeia no seu artigo, que dão má fama ao que é da ordem do Invisível e a quem se empenha com seriedade em conhecê-lo. O sincretismo New Age é o red light district da Espiritualidade. Estou bem familiarizada com a confusão entre desenvolvimento pessoal e espiritual e com quem se considera espiritual porque queima incenso, faz visualizações criativas, aplica a lei da atração, lança o pêndulo e as cartas, comunica com os anjos e os mestres ascensos, pratica Reiki, Access Consciousness ou ThetaHealing, fala como entendido das crianças índigo e da era de Aquário, faz regressões a vidas passadas, leituras da aura, anda com cristais pendurados ao pescoço, recita afirmações positivas, participa em cerimónias ayahuasca e atira namastês à discrição. Enjoei das frases feitas de grupos que viram verdadeiras seitas, empenhados na eterna procura, mas não no Encontro. É disso que também se priva quem age “como se Ele existisse”: da oportunidade da descoberta.

É à boca cheia que se ouve falar de “luz”, “energia”, "cocriação" e do malfadado “ego”, nos locais mais desusados, por seres que trajam de branco, cobertos de medalhinhas de Nossa Senhora e de Cristo Jesus, que são “tu cá, tu lá” com o Arcanjo Miguel e têm contactos privilegiados na 9.ª dimensão. É o auge da pornografia. A espiritualidade tornou-se um acessório barato, que ora se põe ora se tira, consoante a ocasião e o dress code, deixando atrás de si um rasto carnavalesco de inquestionável mau gosto.

Por isso, caro Alexandre, entendo perfeitamente o que diz. No entanto, por muito respeito e admiração que sinta por Jordan Peterson, sei que não será ele a dar-lhe a resposta que procura – desde logo, porque ele próprio não a tem. Deus não se revela pela via do intelecto. Nas expressivas palavras de H. W. L. Poonja, “If you are looking for diamonds, do you go to a potato shop?”

Se quer começar por algum lado, sugiro-lhe, caro Alexandre, que comece por se livrar da suposição de que Ele existe, teve batismo cristão e é um “alvo exterior” (a abater ou não). Atreva-se a admitir que nada sabe e que só daí poderá partir: sem saber o que vai encontrar. Livre-se dos conceitos que formou antes de querer saber se o Deus cristão pode dar o nó com o “panteísta” e quem irá presidir ao casório. Remova os modificadores do nome. E, se quiser falar em esoterismo e budismo, estude-os primeiro. Não os confunda com as versões aciganadas que por aí circulam nem os irmane à erva daninha do relativismo. Desenvolva a faculdade da discriminação. Se precisar de ajuda, escolha luminárias que realmente saibam, não sem antes começar a acender a própria luz – porque só as luminárias se reconhecem entre si.

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

27
Abr23

A fasquia mais alta

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (6).jpg

A igualdade degenera em mediocridade.

Fabiano Goes

 

A resistência à perfeição é muito grande.

Trigueirinho

 

         

     A sensação foi de refrescante estranheza ao ler sucessivamente a biografia de dois líderes espirituais distintos, pelo traço comum de grande exigência que lhes era atribuído. Não terá sido coincidência: a pressão molesta que venho há muito sentindo, em todas as esferas da vida, é a pressão antiexigência. Na educação, na formação e nas academias, a fasquia baixa-se cada vez mais: seja para engordar números, seja sob o pretexto de inclusão e pelos casulos de fragilidade que é preciso resguardar. Nas relações interpessoais e sociais, o preceito soberano do “não julgamento” e o relativismo que nos vai afastando da noção de Verdade amolecem o critério e apagam a capacidade de discriminar. Tudo é permitido, o talento de manter relações amistosas com todos é considerado um alto predicado (ouvi repetidas vezes adolescentes e adultos descreverem a sua maior qualidade como a de serem “amigos do amigo”), a ideia de igualdade vai engolfando a noção de mérito, omitindo os níveis e as diferenças qualitativas entre as pessoas. Tornámo-nos diplomatas eméritos, com um vocabulário cada vez mais reduzido, em virtude das ofensas que as palavras carregam, e sumamente hábeis na troca de favores.

Não sei qual terá sido a primeira palavra que disse, quando comecei a falar, mas sei que fui desde cedo obstinada nos “nãos”. Com tantos a defenderem laxismos, a condenarem o que quer que entendam como manifestação de negativismo, intolerância, preconceito ou discurso de ódio, comecei a convencer-me de que devia juntar-me às turbas no afago infantilizante da autoestima geral. Devia ser uma pessoa melhor, trabalhar o sorriso postiço, a minha limitada capacidade de perdão e acreditar nas boas intenções de todos, abafando os sinais da inteligência e os clamores da sensibilidade. As palavras querem-se de simpatia e mal de mim ferir suscetibilidades ou sugerir a alguém que esteja abaixo da fasquia.

É fácil ceder a baixá-la, quando é isso que nos traz recompensas e um sentimento de pertença. É fácil ceder à ilusão de que tudo se resolve com a comunicação e uma tolerância maior – de que as diferenças se resumem a diferenças de pontos de vista, como se as divergências de opinião estivessem desligadas do desenvolvimento de consciência. É fácil acreditar quando nos ensinam que o mundo não é a preto e branco, mas uma grande área cinzenta. Quanto a mim, é o cinzento que nos oprime.

Por entre estas cogitações, ocorreu uma pequena revelação, contraintuitiva, enquanto esgarafunchava em busca de uma qualquer vocação que se tivesse revelado em criança, quando dizem que nascem as vocações: estou aqui para dizer “não”. Sem que se ilumine de imediato uma profissão em que me paguem para tal, tenho pelo menos o consolo de estar de acordo comigo mesma e de conciliar as divisões internas, feitas de vozes que teimam em ditar-me o ponto da consciência, que ainda resiste à sedução de facilitar e baixar a fasquia.

Se, como muitos gostam de argumentar em momentos de aperto, ninguém é perfeito, não é por isso que o compromisso com a perfeição deva deixar de existir – entre a exigência e a complacência, mil vezes a primeira.

 

Wind extinguishes a candle and energizes fire. (...)

You want to be the fire and wish for the wind.

Nassim Nicholas Taleb

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

10
Abr23

"Guilty pleasures"

Sónia Quental

Abertura com véu.jpg

Elevation always brings isolation.

R. C. Blakes, Jr.

 

A happy man needs no entertainment and no socializing. He is content.

Lester Levenson

 

 

            Tendemos a esconder os nossos vícios, a entretê-los às ocultas para que não nos apanhem no ato e não tenhamos de nos justificar, sobrevinda a vergonha, o que pode aplicar-se tanto aos doces como a comer demais, fazer compras compulsivas, roer as unhas e - como muito se escreve por aí e tudo resume, sem nada dizer - etc. Mas há vícios aparentemente inócuos que incomodam mais a quem os surpreende do que a quem deles sofre: falo, por exemplo, da perversidade de estar em casa. Quando adolescente (e adulta já), censuravam-me por estar sempre “fechada em casa”; alguns anos depois, o conselho inopinado com que uma professora de faculdade me deixou, citando Celan, aqui em rude paráfrase, foi que fosse viver a vida; recentemente, recebi a reação de estupefação de alguém por estar dentro de casa num dia de sol. Todos têm em comum acharem que é lá fora que a vida existe, o que ainda não deixou de me incomodar e vai fazendo com que me exponha cada vez menos, agravando ainda mais este aparente agravo.

            Daí o alívio que senti ao encontrar o excerto que a seguir traduzo, num livro de Peter Block (The Answer to How Is Yes), dando continuidade ao tema da crónica anterior: “Vivemos numa cultura que esbanja todas as suas recompensas naquilo que funciona, uma cultura que parece valorizar mais o que funciona do que aquilo que importa. Uso a expressão ‘o que funciona’ para traduzir o nosso amor pelo que é prático e a nossa atração pelo que é concreto e mensurável. A expressão ‘aquilo que importa’ engloba a nossa capacidade de sonhar, de reclamar a nossa liberdade, de sermos idealistas e dedicarmos as nossas vidas ao que é vago, difícil de medir e invisível.” Foi a primeira vez que encontrei por palavras uma descrição daquilo que faço: dedicar-me ao que é vago, difícil de medir e invisível. Agora, que sei que isso existe, o meu descanso é outro. Já não preciso de corar quando me perguntam o que estou a fazer, de inventar obrigações domésticas como pretexto para o meu eremitismo nem de sentir peso na consciência por não ser “sociável”, qualidade suprema da pessoa integrada e normal. Já há nome para o que (não) faço (e não é “introversão”).

            Estranhamente, era eu que ia para a rua quando, em anos recentes, todos se fechavam em casa. Tenho uma bússola que me faz viver às avessas e, se algum dia ela avariar ou a demência ameaçar, basta-me ver para onde vão as massas para saber que o caminho é o oposto e voltar a encontrar o norte. A verdade mora no avesso do mundo.

            Ainda assim, é difícil evitar o contágio ou a força do condicionamento. Deixar de pensar em termos de produção quando, ao fim de um dia, nada de “útil” se fez e a mente gira freneticamente sobre si mesma, a procurar desculpas para o que nos dizem ser o mal da procrastinação ou do tempo perdido. Os dias contam em função do que se faz, do que se conseguiu “adiantar”, das tarefas riscadas da lista, e o nosso valor é inferido de quão cheios os temos, da medida do nosso contributo para a sociedade.

            Confesso que o veneno deste espírito utilitário também me ataca por vezes. Penso: qual a utilidade de escrever se nada de novo tenho a acrescentar ao que já foi dito por outros? Porquê perder tempo quando não sou um génio literário e não escrevo o que ao público interessa ler? Perguntas cuja resposta escapa à razão. Há coisas que se faz porque se tem de fazer, porque a elas se é impelido e porque fomos postos aqui para isso, não nos cabendo pedir satisfações, medir resultados ou esgrimir comparações. Há perguntas cuja resposta é o tautológico “porque sim” ou “porque não” ou mesmo “porque não sei”.

            Muitos porquês interrogados me foram dirigindo ao longo do tempo, que fundamentalmente se reduziam a um “Porque é que és assim?” que assumia desde logo alguma disfunção. Não eram perguntas de curiosidade, de interesse, de querer saber ou mesmo de bem-querer, mas de acusação, perguntas nascidas do medo do que não é familiar e vem pôr em causa todo um constructo do mundo. Há uma fissura no cenário e é preciso saber porque é que está ali para que possa ser reparada ou disfarçada, sem perturbar a ordem que se tem como natural e pôr em risco quem nela vive. Sempre em nome do bem comum.

            Acontece que estou a aprender a não me ralar com as minhas alegadas ruindades. Prefiro ocupar-me a desmanchar ideias, desligar automatismos e expandir limites percebidos. Prefiro escolher a liberdade de ser e descobrir constelações que só vislumbra quem mora no vago, no invisível e difícil de medir - sozinho ou acompanhado.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0