Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

30
Dez23

Anéis de rubi

Sónia Quental

 

Veio-me uma sensação desagradável à boca do estômago quando ouvi pela primeira vez o Rui Veloso avisar que Não se ama alguém que não ouve a mesma canção. A ligeireza desatenta da rima fez esgueirar a verdade como um tiro a que tentei escapar, em vão. E não havia formatação que apagasse a música do disco rígido da mente.

Era o corolário de experiências semidigeridas, augúrio funesto de escolhas desastradas – desastradas, não porque os astros as ditassem, mas por lhes ter trocado as voltas ignorando a voz da sabedoria, isto é, a voz do Rui Veloso, que trepou vezes suficientes ao superego para me soprar, com um prazer maldisfarçado: “Eu bem te disse”. Não desta maneira, mas com a poesia do Carlos Tê, que nem por isso acalmava o vexame.

Para mostrar que aprendi a lição, conto com contrição os anéis que empenhei para tentar que alguém ouvisse a mesma canção que eu. De que adianta desfalcar espólios em troca de companhia para o concerto? E que música se pode fazer entre instrumentos que não afinam entre si, por mais que se dê o Lá? As bandas sonoras não são um figurante sem rosto numa história de amor: são protagonistas, e é por isso que são convidadas para a boda, onde não se espera ouvir o Rui Veloso lamentar a saliva que gastou para mudar alguém nem os convidados a dançar uma salsa em linha demasiado gingada, quando era a valsa que se pedia.

Tudo subtraído, a despesa vai aumentando e há lições que não é preciso pagar mais de uma vez só para refrescar a memória. Não compensa penhorar bocados de nós pelo consolo fátuo da companhia ou de um amor contrafeito que só nos torna mais pobres – forçar harmonias entre notas que não pertencem à mesma escala. Melhor será desenvolver o ouvido para a música, poupar a saliva e guardar os anéis para quem goste de nos ver usá-los.

Vestido vermelho sentada - Madalena (03.12 (5).jpg

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

26
Dez23

Apontamento escangalhado

Sónia Quental

 

Um dos exercícios que mais me elevam é conhecer uma palavra que me deslumbre.

Manuel Monteiro 

 

        

O Medo acordou-me no escuro. Não posso dizer que tivesse dentes brancos ou o corpo quente, embora a jugular lhe palpitasse com vontade. Bichanava-me coisas malditas, perturbava-me o sono. Achei que o inseticida que tinha de atalaia não surtiria efeito, por isso fiz-me de morta, petrificada.

Ora me ATAZANAVA com a palavra que eu tinha deixado fora de lugar num texto, ora com os mais veementes motivos existenciais, ameaças de morte sempre veladas – assim, sem meias-medidas, em plena madrugada de Natal, quando as defesas estão relaxadas.

Mas os planos saíram-lhe furados, porque o que fez ao apontar-me a palavra fora de sítio, em vez de comichão, foi que me acudisse a outra que eu queria um pretexto para usar: “ESCANIFOBÉTICO”, que avistei num livro infantil, depois de longos anos de separação. Tal como há pessoas que sacam da carteira (ou do telemóvel) para mostrar a fotografia dos filhos, dos netos, do cão, eu gosto de sacar palavras, dar montra embevecida à sua beleza ou encanto, como se me pertencessem.

“Escanifobético” fez-me logo querer ESCANGALHAR de riso e, mais potente do que o inseticida, escangalhou num instante o Medo, que ficou fulminado ou SIDERADO com semelhante munição (outra palavra secreta que saquei em catadupa).

Foi assim, no embalo do dicionário, que o sono voltou e me encontrou, a mim e ao Medo, ÓSCULOS à parte, num AMPLEXO de trégua que restaurou o Natal.

 

23
Dez23

Era uma "bez"

Sónia Quental

 

Embora não seja fã de Bruno Nogueira, a crónica sobre o Porto que publicou há dias na revista Sábado fez-me pender uma das asas uns milímetros na sua direção e desafiar-me de novo a ligar os pontos.

Fez-me lembrar uma interpretação intrigante que encontrei, era ainda estudante, na obra Psicanálise dos Contos de Fadas, em que o autor (outro Bruno, por sinal), a propósito d’ “A Bela Adormecida”, sugeria que o despertar da heroína do sono de 100 anos não se devera tanto ao príncipe eleito, que conseguira finalmente atravessar a sebe de espinhos, mas ao terminar da maldição. Trocando por miúdos: fosse quem fosse o desgraçado a acercar-se do castelo, as sebes abrir-se-iam para lhe dar passagem, simplesmente porque tinha chegado a altura (uma interpretação nada romântica, bem sei).

Diz o Bruno de cá, que vê no Porto um país dentro do país maior que é Portugal, que “Uma cidade não é o que se vê no mapa” e que – aqui em paráfrase –, sejam quais forem os movimentos que a sacudam, continuará a ser aquilo que sempre foi. Tem um espírito próprio, que lhe sobrevive e que contagia quem nela se adentra, ditando desde logo se são compatíveis ou não (isto sou eu que digo). Não é preciso fazer match.

357184603_932692747962567_6589261064295003783_n.jp

É aqui que entra a história da Bela Adormecida, não porque ao Porto falte viço ou porque tenha sido amaldiçoado por alguma fada desavinda, mas porque o espírito do lugar não é só do lugar: é dos tempos também. Quero com isto dizer que, mesmo quando não é um conjunto de fatores a imprimir a mudança ao espírito da cidade, os espíritos transitam quando chega a hora disso, porque a cidade não deixa de fazer parte de um sistema maior, também ele governado por ritmos, ciclos e qualidades a expressar. Não vive envidraçada num caixão com um isolamento impenetrável, como a Branca de Neve (outra ilustre adormecida), que ainda assim se sujeitava a que o cristal partisse.

Ao contrário da impressão do nosso cronista, parece-me que o espírito do Porto começa, sim, a dar sinais de mudança. Não sei se é por isso que as pessoas se agarram, mais tenazmente do que nunca, ao Natal e às tradições que lhes transmitem a segurança da continuidade, quando os ventos do desconhecido são cada vez mais céleres e desestabilizadores. São tradições que nos fazem recuar ao conforto da infância, ao tempo em que o “E viveram felizes para sempre” dos contos de fadas ainda era possível e as lareiras crepitavam ao som de uma sabedoria mágica e subterrânea, que nos preparava para a vida, resguardando-nos em simultâneo da crueza das suas tragédias, como bem aponta Nuno Lebreiro noutro artigo recente.

Embora não tenha nascido no Porto, sou mais de cá do que de Portugal. Gostava que a sua genuinidade perseverasse, porque também a mim me aproxima mais de quem quero ser, efeito que não cabe num texto nem num postal. Enquanto escrevo este, chegam-me os gritos dos adeptos no Estádio do Dragão e, por mais que comece a agitar-me quando penso que em breve vou querer dormir, já fazem parte da paisagem, como as gaivotas rapaces e as obstinadas pombas. Que passava melhor sem eles, passava - mas não era a mesma coisa. 

Escadaria do Mercado do Bolhão (7).jpg

Fotografias: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

20
Dez23

Grainhas

Sónia Quental

 

O tesouro não está na ilha deserta, encontra-se sempre debaixo dos nossos sapatos.

 Isra Bravo

           

 

Gostava de agradecer ao Steve Jobs pelo discurso de Stanford, mas ainda estou à espera que os pontos se liguem. Aguardo a todo o instante o dia em que olhe para trás e as vivências desconexas se unam numa figura geométrica que revele no seu esplendor o tesouro que esteve sempre lá. É por isso que não me mexo: ouvi muitas vezes dizer que ele está debaixo dos nossos pés. Não sou daqueles que têm de correr mundo para fazerem a descoberta no último capítulo. Estou informada desde o primeiro, por isso vivo de picareta na mão, dedicada a escavar a terra. Prefiro as vias subterrâneas, abrir caminho pelas raízes.

Mas começo a desconfiar que o Steve Jobs me enganou, que a tolice e a fome do mantra que revelou ao mundo geram apenas mais fome e tolice, um rodopiar no encalço de coincidências com significado, premonições que sejam de se fiar. Ou então é porque não tenho uma garagem como ele ou porque não desisti da faculdade. Coleciono lições de vida, erros para nunca mais, conjurando pontos e as suas hipotéticas ligações, expectante desse “aha” que me torne enfim bem-aventurada, revelando uma finalidade teimosa de se mostrar, que explique: foi por isso que passei fome.

Não há cá chegar ao fim do ano para se fazer balanços: o livro de contas está sempre aberto, o trabalho adiantado. O tempo distribui-se entre pagar impostos e a procura de um sentido, com a mesma minúcia feroz (embora não com igual vontade). Só não me digam nem mais uma vez que o que importa são os processos. Há um ponto em que os processos se tornam como os de Kafka: labirintos absurdos e embrutecedores. O que eu quero é a meta, não a burocracia. Por pequenina que seja, num minicircuito, uma corrida de beneficência. Venham os resultados, o produto bruto, o sumo da uva, porque de grainhas já chega.

 

129391249_377367810161733_7422510656211869143_n.jp

 

Fotografia: 2013 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Dez23

Emplastros Anónimos

Sónia Quental

Às assombrações que pairam sobre estes blogues.

 

            

- Emplastros Anónimos. Em que posso ajudar?

- Boas. Olhe lá, ó moça, disseram-me que tinham aí uma teta que tirava cafés…

- Bom dia, Sr. Emplastro. Queria dizer “seio”, certamente. Temos uma máquina que serve leite orgânico, com um cheirinho a acompanhar. Pode escolher a tipologia do mamífero: trans, bi, cis, dis, mis, mu…

- Olhe, mas qual é o objetivo? É a pagar??

- A nossa organização é uma organização filantrópica, sem fins lucrativos...

- Fi… tró… quê??

- Quer dizer que não tem de pagar o leite nem o cheirinho. Aliás, o nosso objetivo é ajudar ao desmame de todos os Emplastros. Temos planos de expansão e em breve marcaremos presença nos países de terceiro mundo.

- Mame ou desmame… Desde que tenha o que interessa….

- Tenha calma, Sr. Emplastro. Não oferecemos cuidados paliativos: estamos aqui para curar dependências. Começamos pelo seio duplo (com ou sem pilosidade), depois passamos para o mono, o biberão, o leite em pó… É um longo percurso até chegar às papas e aos sólidos.

- E entregam canetas ou calendários?

- Temos todo o tipo de brindes e regalias para os sócios. Fazemos inclusive reciclagem do diploma de 1.º ciclo, com financiamento do Estado e estágio integrado para remover o estigma do analfabetismo e promover a reinserção na sociedade.

- E pagam subsídio?

- Pagamos o rendimento social, desde que tenha aproveitamento aos módulos. Depois de aprender a ler e a escrever, temos módulos mais avançados de hermenêutica, com introdução ao sentido de humor, à ironia, ao sarcasmo… Quem conseguir chegar ao 3.º ciclo recebe algumas luzes sobre subtileza e inteligência emocional.

- Mas qual é a utilidade?

- A utilidade é que passará a conseguir ler e interpretar um texto sem ter de pedir ajuda aos autores. Irá desenvolver a autonomia.

- E as casas de banho são mistas?...

- Temos o prazer de informar que subscrevemos integralmente os mandamentos da diversidade e da inclusão, que são o motivo primário da nossa existência. A nossa bandeira é a autodeterminação e a euforia. Somos um baluarte da saúde mental.

- Bal… quê?? O que tu queres sei eu...

- Peço desculpa, Sr. Emplastro, mas tenho outra chamada em linha. Se quiser tornar-se sócio, prima a tecla 1. A tecla 2 se tiver mais perguntas sobre a nossa missão. A tecla 3 para apoio psicológico à disforia do Emplastro…

 

87430957_190352782196571_6889435290075660288_n.jpg

 

Fotografia: 2012 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

12
Dez23

Sósia

Sónia Quental

 

(…) the human race was swayed into believing a spiritual world that cannot be perceived or measured does not exist. This is arrogance in its highest form and a grave injustice to humanity.

Jerry Marzinsky

 

 

Não foi a primeira vez que vi a fotocópia de uma pessoa. O mesmo físico, até à singularidade mais minúscula, a mesma forma de vestir e de andar, o mesmo estilo de dança. O cheiro era uma das diferenças mínimas. O cheiro e a idade.

Fiquei-me a absorvê-lo (digo, a observá-lo), ciente agora de que afinal tenho um “tipo” que me atrai, a tentar processar a evocação confusa e dolorosa que aquela pessoa inspirava, sem o saber. Não podia ir ter com ele e dizer-lhe: “Olha, és a fotocópia de alguém que amei por engano. Deixa-me cheirar-te e cair em tentação”. Ninguém gosta de ser comparado. Ninguém gosta de sentir que é a reprodução de um protótipo, sem recheio original. Mas a verdade é que o que está fora não existe desligado do interior, talvez mesmo os atributos físicos aparentemente herdados, como o tipo de pele, de corpo.

Afigura-se-me, desde que comecei a trabalhar sobre o tema da inspiração, que não somos autores, mas barro, mais objetos do que sujeitos criativos, desconhecedores das forças que nos moldam. Somos menos indivíduos do que pensamos e até o livre-arbítrio é aparente.

Na reflexão que foi evoluindo e abrangendo a área da metafísica, encontrei abordagens concordantes. Uma das que me interessaram foi a de Jerry Marzinsky*, psicoterapeuta que trabalhou com uma população esquizofrénica em estabelecimentos prisionais e hospitais estatais norte-americanos e que, na esteira de Swendenborg e Wilson Dusen, propôs que a voz que ouvimos na nossa cabeça tem origem parasítica. A esquizofrenia paranoide seria uma manifestação extrema e considerada desviante de um fenómeno generalizado, em que o ato de pensar não é voluntário nem inteligente, sendo estimulado para gerar uma certa qualidade de energia emocional, que alimenta entidades externas a nós.

 

Swedenborg felt no thoughts are our own. He believed thoughts flowed into our minds from positive or negative entities outside of ourselves, and that we are the choosers of which thoughts we entertain, similar to tuning a radio to a particular station.

 Jerry Marzinsky

 

Penso muitas vezes, quando diante de indivíduos com opiniões fortes, se são eles que as têm ou elas a eles (a nós!). O orgulho com que defendemos posicionamentos, convicções e um modo de ser que acreditamos tão único quanto a nossa impressão digital pode estar seriamente equivocado. Um belo dia, cruzamo-nos com um sósia na rua e desinchamos. Podemos sempre dar uma gargalhada e convidá-lo para dançar.

 

314487566_795541278344382_4051655723182623816_n.jp

 

*In An Amazing Journey into the Psychotic Mind - Breaking the Spell of the Ivory Tower, escrito em colaboração com Sherry Swinney.

Site e canal do YouTube de Jerry Marzinsky: https://www.jerrymarzinsky.com/

https://www.youtube.com/@engineeringmentalsanity-je774/videos.

 

Fotografia: 2017 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Dez23

Feitiços

Sónia Quental

 

Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona.

Clarissa Pinkola Estés

 

 

As histórias adormecem-nos e acordam-nos. Levam-nos aos territórios inexplorados da psique profunda, protegidos por uma simbologia dinâmica, mas branda, que impede o contacto direto e excessivo com o conteúdo psíquico que precisa de ser enfrentado, levado à sublimação. Como instrumentos de poder, pela sua capacidade de penetração na vida latente, podem ser manejadas para o bem e para o mal, ser bálsamos medicinais, conjuros, pragas.

 

Adolescente ainda, participei em formações de cosmética promovidas por marcas que os meus pais representavam, contexto em que me sentia como peixe fora de água, e nem as garrafinhas de vidro a marcar os lugares lhe davam um conforto mais líquido.

A experiência não foi desprovida de utilidade, porém – sobretudo a última, em que um formador capaz saiu do registo habitual para nos falar do poder das histórias. Confessou que, numa ida ao hipermercado, tinha tido a curiosidade de ler o rótulo das marcas mais baratas de cremes, surpreendendo-se por terem os mesmos ingredientes que aquela para a qual trabalhava, que praticava outra tabela de preços. Como convencer alguém, então, a gastar mais pelo mesmo? A resposta que nos propunha estava no poder das histórias.

Mostrou-nos a imagem de uma pedra e explicou como o seu valor percebido mudava em função da história que tinha a contar. Que produzia um efeito muito diferente dizer-se que era uma pedra de rua, uma pedra da Grande Muralha da China ou do muro de Berlim, ou uma pedra com origem na superfície lunar, o que a tornava a mais cobiçada de todas as pedras, mesmo que a aparência fosse a mesma. O que cabia ao vendedor era saber escolher as histórias que dessem glamour ao produto e criassem o desejo de compra.

Arcadas (12).jpg

Se bem que nunca tenha tido talento nem interesse pelas vendas, sei que é na sedução do glamour que vivemos, fascinados por histórias que viram feitiços, não raro cristalizados em fetiches (um bom momento para lembrar que o termo “fetiche” vem do português “feitiço”). No entanto, o glamour é apenas um simulacro da beleza, um artifício que satisfaz o apetite, não a fome.

É nessa esteira que vivemos consumindo histórias; tecendo-as, deslindando-as, sacudindo-as, enredados nelas, transportando-as vivas no corpo, exorcizando-as, tentando resolver o enigma da nossa, separar os fios da malha que nos toca. Somos alvos voluntários dos cantos de sereias, deixando-nos atrair e envolver, cativos felizes de contos do vigário urdidos por nós. Não é fácil deixar o transe coletivo, assumir a autoria das narrativas que nos vitimam e escolher reapropriar-nos de um olhar que não esteja enamorado pela ficção, fazendo ouvidos moucos ao embalo dos flautistas que espreitam a cada esquina.

Sem o glamour, a vida não está fadada ao desencanto. As histórias têm igual poder de remediar e inocentar. Há histórias que, em vez de lançar feitiços, os desfazem, num gesto de mágica meiguice (outro parentesco etimológico oportuno). As teias da ilusão cedem lugar ao numinoso. Uma pedra é uma pedra, venha de onde vier. Há mistério que chegue nisso, sem que tenhamos de mistificar.

 

Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu sentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. (...) Ao lidarmos com as histórias, estamos a trabalhar com a energia arquetípica, que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e iluminar, mas no local errado, na hora errada e na quantidade errada, como qualquer medicamento pode produzir efeitos nem um pouco desejados. (…) Temos de nos certificar de que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam.

 

Clarissa Pinkola Estés

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

04
Dez23

É o carinho, caros "cowboys"

Sónia Quental

Podia ser nómada digital, mas preferi ser sedentária, o que não significa que o caminho não esteja cheio de escolhos e não sinta a adrenalina das montanhas-russas. Ultimamente, têm sido vários os momentos de perplexidade, ao cruzar-me com os novos cowboys do comércio, que já dispensam os recursos humanos para empregarem a automação, num esforço de reduzir “custos operacionais” – muitas vezes, sem qualquer palavra de aviso. Num dia estão lá, no outro deixam de estar, e o freelancer que lance as cartas para tentar adivinhar o que se terá passado ou fique a coçar a cabeça e se desenrasque no fim. Até as empresas que assumem valores “humanos” desaparecem no mesmo vácuo misterioso, descartando as pessoas com igual facilidade que quem dá precedência ao lucro.

No entanto, e a par dos poucos clientes que se mantêm fiéis à qualidade do trabalho e às pessoas com quem trabalham, tenho notado um crescimento da tendência inversa à descrita no parágrafo anterior, em anúncios que frisam não aceitar trabalho feito com o auxílio de qualquer ferramenta automática. Querem o 100% humano.

É um dos motivos que me fazem achar que no futuro o humano será o novo vinil. A nova corrida ao ouro. Também pelas minhas reações quando me deparo com páginas web geridas por bots, sem oferecer qualquer forma de contacto com gente de carne e osso. Em vez de encontrar soluções, embato contra uma parede após a outra. O desespero de lidar com robôs que me mandam ler artigos de ajuda e me atiram para um labirinto que me leva repetidamente ao mesmo ponto de partida, continuando sem resolver o meu problema, faz que, como consumidora, rejeite semelhantes marcas com a mesma rapidez com que elas dispensam as pessoas.

71704053_144287883469728_3599010232715444224_n.jpg

Não faria compras num site de comércio eletrónico que empregasse tradução automática, tal como não visito os que são escritos em português “marroquino” (uma variante cada vez mais generalizada, com forte pendor oralizante e anglo-saxónico), acreditando que os falantes nativos são exímios utilizadores da língua, abonando à marca o selo de autenticidade e permitindo-lhe poupar em mão de obra efetivamente qualificada.

Aquilo em que pensa quem se apressa a suprimir o valor humano, crendo-o ultrapassado, é no lucro a curto prazo. Quer-se eficiência, produtividade, esperando-se que o público fique satisfeito com um serviço aparentemente melhor e mais rápido. Neste capítulo da história, ainda está longe de o ser, havendo que ponderar o fator desprezado de em muitas situações as pessoas simplesmente não gostarem de ser atendidas por máquinas.

Falando do atendimento humano, posso dizer que é muitas vezes o motivo pelo qual frequento determinados espaços comerciais. Posso ter de pagar mais ou de percorrer uma distância maior; a qualidade da oferta pode não ser superior, mas a alegria e o cuidado que encontro no atendimento são os elementos diferenciais – nem sempre é a conveniência que dita as escolhas. Num dos supermercados a que mais vou, faço-o porque gosto de sentir o calor das funcionárias nas caixas, que não trabalham contrariadas. Recebo um agasalho emocional quando a pessoa tem o cuidado acrescido de pôr as minhas compras no saco, acomodando-as com um esmero que não está no contrato.

É o carinho, caros cowboys. Foi no carinho que se esqueceram de pensar.

Podem dar às máquinas aparência e voz semelhantes às humanas, uma precisão sem precedentes. Num futuro próximo, posso vir a ser atendida por um aparelho que fale comigo, conheça todo o meu histórico de compras e as minhas preferências, saiba medir a minha temperatura e indicar-me o índice de massa corporal. Não é o mesmo que alguém que sabe pequenas coisas, porque prestou atenção. A atenção e o contacto humano são a mina, caros cowboys – não o contactless. Se pensassem antes no lucro a longo prazo e soubessem que gente não é besta, apesar de todos os sinais em contrário, poriam o humano no âmago da evolução, não como palavra-chave sonante de congressos políticos ou de um discurso de marketing com metas de SEO a atingir.

 

Fotografia: 2013 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

01
Dez23

#loveyourself ?...

Sónia Quental

Às vezes, esqueço-me de gostar de mim. É como sair de casa com a camisa desabotoada ou uma meia de cada cor. Já me aconteceu ir com as leggings do avesso. Depois reparo e ocorre-me: já me esquecia de gostar de mim. Conto os minutos que andei nesse estado, fora de prumo, de tom. Quantas pessoas terão notado. Começa a chover e, irritada por não ter trazido guarda-chuva, irrito-me com a irritação. Ah, outra vez o vício de me castigar.

Vou pela rua e admiro as pessoas para quem parece fácil gostar de si. Costas direitas e cabeça erguida, a passada convicta, certezas muitas. Quando penso que gostava de ser assim, a polícia da consciência sopra o apito: passei outra vez o sinal vermelho. Quase que me esquecia de gostar de mim.

Ou quando me convidam para socializar e eu faço cara séria e digo que vou tentar, sabendo desde o início que não. Não gosto de estar no meio de gente, por isso crio fábulas complicadas. A verdade é uma bofetada dura de dar. E nem sempre é fácil gostar de mim.

A páginas tantas, estou empanturrada de preocupação, emoções sólidas que não levei ao calor brando do banho-maria. A caixa de Pandora a abarrotar. Sempre que a esvazio, volta a encher-se – o único milagre que faço. Nem a esperança quero lá dentro, esse veneno subtil. Tirem-me a esperança, mas deixem-me a leveza de gostar de mim. Agora, que lhe provei o sabor, quero mais.

Engelho o nariz ao ver que tudo o que escrevo agora mete receita de culinária. Um dos primeiros e mais volumosos livros que li não foi a Bíblia, mas o Tesouro das Cozinheiras. Livro de sabores e comédia, uma primeira incursão no mundo dos graúdos.

Agora, que penso, vejo que, antes de copiar palavras do dicionário, copiava receitas. Nos tempos livres, digo. Agora, copio citações. Gosto de copiar e de fazer listas – é assim que não perco coisas nem sonhos, dando-lhes suporte, desenhando-lhes a forma. É isso que me prende à terra e ainda me separa dos quadros de Chagall. Isso e os figos. São uma boa forma de gostar de mim (quando me lembro).

Vestido vermelho sentada - Madalena (03.12 (6).jpg

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D

Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0