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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

29
Jan24

Artigo no "Público"

Sónia Quental

 

       Apelando de novo à benevolência dos leitores, pelo overkill a que tenho sujeitado o tema, achei que merecia maior projeção, por isso voltei a mastigá-lo para o "Megafone" do Público. Dedicado a todos quantos padecem do fetiche pelas câmaras, com os votos de rápidas melhoras, o texto de hoje não está aqui, mas ali: "Tentáculos da vigilância".

 

25
Jan24

Futebol e poesia

Sónia Quental

Corria o malfadado ano de 2021 quando o acaso me levou ao encontro de um livro de poesia que me encantou, e o encanto desdobrou-se em espanto quando descobri que o autor era um futebolista português, contando então apenas 26 anos e a fama de longa data de ler nos balneários.

Gosto de quando os meus preconceitos se estilhaçam com um garbo como o daquela poesia. Gosto de descobrir pessoas que não são uma coisa só, mas amálgamas brilhantes de facetas aparentemente irreconciliáveis. O improvável é uma fonte imorredoura de fascínio, embora nem sempre daqueles que elevam, como, por exemplo, o fascínio profundo que senti recentemente quando um profissional formado em Comunicação tentava ensinar-me que na tradução e na escrita não há certo nem errado, mas apenas formas diferentes de se dizer a mesma coisa. Se acabei convencida de alguma coisa, foi de que os cursos de Comunicação têm a mesma substância que os mestrados em Gestão de Campos de Golfe que uma professora universitária em tempos me disse existirem no Algarve (deixo a ilação ao leitor benévolo).

Deste nosso futebolista, Francisco Geraldes, não cheguei a comprar o livro, mas copiei à mão o poema que sei que escreveu para mim (embora ele não o saiba), de seu título “Divino Adormecido”:

 

Rezo a qualquer instância superior

que me ressuscite

e me devolva a alegria

de voltar a ouvir o silêncio contigo.

 

Foi aqui que chegou a terceira dose de assombro: um futebolista poeta que reza e sabe ouvir o silêncio. Já não podia mais. Depois disto, fiquei quase com vontade de ir ver futebol, conhecer a valsa deste bardo no relvado, num jogo sem som, como todos os encontros felizes.

 

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Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

20
Jan24

Conjunção adversativa

Sónia Quental

Enquanto esperava, vi-a trocar o calçado de rua por sapatos de salto alto, ligar o som de discoteca e exteriorizar uma versão turbinada da figura à civil que tinha entrado, qual Clark Kent em posse da sua capa milagrosa: uma ex-cozinheira metamorfoseada em coach.

Se cheguei de pé atrás, saí à caranguejo, arrepiada pela criptonite do coaching, mas houve um momento alto, fora a música, que salvou a ocasião, quando a nossa heroína distribuiu folhas coloridas pelos presentes, pedindo que desenhássemos um sonho. À minha volta, via braços de gula a riscar casas, famílias, profissões, viagens, e eu, mesmo que soubesse desenhar, não saberia o quê. A mesma coisa que em criança, quando a minha mãe me dizia para pensar em coisas boas nas noites em branco, e eu desconhecia o conceito.

A única coisa que me ocorreu na sessão, talvez pelo amarelo da folha, foi o sol, que fui obrigada a mostrar e a dizer o que era em voz alta, como se não se percebesse, erguendo-o de novo no final para a fotografia de grupo, que devo ter enterrado depois de receber. A descoberta ficou, nem por isso fácil de instrumentalizar: queria ser sol, achado que se atou a um dos dois poemas que trago no imo, ambos de três versos, além do título, e de autores de língua portuguesa. Este chama-se “Solar” e é da brasileira Adélia Prado, um nome que pouco se ouve por cá:

Minha mãe cozinhava exatamente:
arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.

Cheguei a dá-lo nas aulas como exemplo do poder da palavra certa no sítio certo – neste caso, da conjunção adversativa do último verso, que alça a banalidade da declaração à condição lírica. Fosse um “e”, em vez de um “mas”, e o efeito era outro.

Ficaram-me o “mas” e o “não” pendurados na boca quando me deram a fala, sinetes na fronte, no sobrolho franzido, porteiros de toda uma sina. Precoce, tornei-me adversativa antes de saber classificar a palavra, aprender a deslindar o trigo e o joio, meu trabalho de Hércules. Só que não bastava dizer “não”, obstinar os “mas” – havia que depurar a matéria plúmbea para que harmonias brotassem. Não basta ser-se soalheiro: é preciso ser-se solar.

Pensando no poema, na folha amarela, se me atrevo a um sonho, é volver copulativa, mesmo que  perca poesia e contraste. Arredondar cantos, desenhar um destino onda, em que não precise de salto alto para me fazer maior. Quando deixar de ser vértice, serei matéria solar.

 

13
Jan24

A "freelancer" que não vendeu o seu Ferrari

Sónia Quental

Longe vão os tempos em que se procurava refúgio num mosteiro para se ser monge: hoje, basta ser-se freelancer. Nada de retiros espirituais, saltar para cima de uma mula para encontrar o Xangrilá e um Baba dedicado, como os gestores de conta, atingir a Realização numa caverna, o corpo mordido por insetos. Pode fazer-se tudo no (des)conforto do lar, rodeado pelas mesmas criaturas invertebradas, e contratar um guru à hora.

Não há necessidade de vender o Ferrari, porque nunca se chegará a ter um. A custo virá um momento culminante, em que se reequacionem valores materiais após uma crise de vida que sangre arrependimento: não há grande coisa a reformar, as carnes são poucas para cortar, e o voto de pobreza e silêncio vem temperado com o jejum da eterna Quaresma.

Tenho um pouco mais de sorte do que o freelancer comum, porque me fizeram saber, pela boca do próprio, que há um Cristo a morar no prédio. Este quer instalar câmaras para apanhar o Judas em flagrante, em vez de dividir a hóstia. Espero que na proximidade do seu manto a conversão seja mais rápida, sem o aperto de disciplinas prolongadas, e eu possa voltar à civilização com a iluminação conquistada por osmose, parábolas a recitar como quem despede histórias de guerra, o corpo com o castigo suficiente para se notar.

Depois das sessenta e duas mil horas de meditação que a precariedade laboral tornou possíveis, estou prestes a atingir o amor incondicional. Com o poder das ondas gama projetadas pelo cérebro, vou concorrer ao título de “Mulher Mais Feliz do Mundo” e posar ao lado de Matthieu Ricard, ajudar as pessoas a despojarem-se para aprenderem a pensar como um monge e a acumular riqueza material, mantendo uma atitude positiva e cultivando a compaixão do Cristo cá do sítio. A ciência moderna confirma que é possível passar da mente de macaco à mente de monge e estou a caminho de o provar, embora ainda não tenha fustigado suficientemente o ego e renunciado por completo à crítica (shame on me).

Atualmente, treino o “namastê” que não me sai e aproveito os saldos para escolher uma t-shirt com o meu mantra favorito, para que não haja dúvida, quando for à garagem onde não tenho um Ferrari, que sou um ser de paz, as câmaras não me confundam com o Judas e não disparem a matar.

 

Escadas (3).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

09
Jan24

Reforçar defesas

Sónia Quental

             

“Reforce as suas defesas” leio no vidro da farmácia, na mesma manhã em que me dizem que querem instalar câmaras de vigilância no edifício, depois de um segundo assalto à garagem. Se já andava mal-avinda com as que começaram a ornamentar as ruas, anunciando a Era do Grande Irmão, ele só adquire plenos poderes quando nos entrar em casa e se sentar no sofá ao nosso lado.

Enquanto trabalho, ouço os vizinhos darem todas as voltas à chave de cada vez que alguém entra ou sai de casa. As voltas são muitas, o que significa que, ao fim de um dia, o meu cérebro já deu nó e vou ter de pedir ao Grande Irmão, sentado no sofá, para o destrinçar com a paciência de quem me quer bem. Se também fizer massagens, estou disposta a reconsiderar a questão das câmaras, em vez de voltar a ser aquela ovelha de quem todos gostam, nas famílias e noutros lugares, por fazer coisas como bater o pé.

Largar o medo é um trabalho de todos os dias, daqueles a que poucos estão dispostos, depois de o terem como conselheiro de todas as horas. Se não é a IA que nos pode matar, é o açúcar, os hidratos de carbono, o glúten, a falta de vitaminas ou de cálcio, ao ponto de se ter tornado uma aventura levar seja o que for à boca. A inflação anda à solta de catana, de braço dado com a doença, as impertinências do aquecimento global, as “emissões” que fazem notícia, a ameaça planetária do momento, mas o que mete mesmo medo são as pessoas vestidas de astronauta, fato e viseira a rigor. Esta a condição a que chegámos, depois de conquistar terras e mares: andamos de olho na lua.   

Há dias em que não sei se alucino ou se entrei numa saga do realismo mágico, a única corrente artística que retrata com acerto o insólito do mundo, com o bónus de ter um nome de que também gosto. E não é menos que magia o que se espera das medidas externas quando se lhes pede que, eliminando o foco do perigo, o medo também acabe. Trancam-se as portas, mas o medo fica lá dentro. Muda-se de casa e ele vai atrás. O medo fareja e fareja-se. É por isso que, por mais reforços que se faça, as defesas nunca chegarão. Retomando uma frase já aqui citada: “There’s so much more to life than the avoidance of death” (David Weiss). Há quem goste de lhe chamar negacionismo.

 

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In The Marvelous Mrs. Maisel

 

03
Jan24

Ser um livro aberto

Sónia Quental

Foram mais de duas semanas à espera de um livro de que restam poucos exemplares em circulação e que veio de fora, chocolate branco para a alma. Antes de começar a dança de aproximação que terá o seu culminar numa leitura tempestuosa, o primeiro pensamento foi adicioná-lo à lista do Goodreads, mais por uma questão de organização do que de visibilidade.

Mas a visibilidade tornou-se a questão, quando se peca pelo excesso dela. Ora são as selfies tiradas no restaurante, no ginásio, na rua, no elevador, no cabeleireiro; ora é a vida no direto contínuo das lives; ora as “partilhas” que alimentam os sites e fóruns de comunidades gerados em torno de interesses comuns… Sem lhes negar o valor (ou cá não estaria), o seu crescimento desenfreado, por entre a teia das redes sociais e a exposição virtual de cada palmo de vida neste mundo virtual, em que se opina vigorosamente sobre todos os assuntos e mais alguns, sobretudo aqueles que se desconhece, acaba por transformar toda esta caldeirada numa boa posta de pescada que, no meu vocabulário, é código para “a evitar o mais possível”.

É relativamente inocente partilhar e recomendar leituras, para continuar o exemplo que me trouxe a este texto. Mas há livros que são só para nós e que só se nos revelam no segredo de uma relação fechada para o mundo. São livros que não se lê uma vez só, e não necessariamente por ordem. Fazem coisas dentro de nós, mesmo quando parecem resistir à decifração ou, pelo contrário, quando parecem simples, mas há um travão que não nos deixa ir além da sua aparente obviedade, insistindo em que fiquemos.

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Talvez seja por isso que sinto algum pudor quando me perguntam qual o meu livro preferido. Foram volumes que viajaram comigo no tempo, ficaram desfeitos pelo uso e as leituras repetidas, que a vida ia revelando em novas camadas e ao mesmo tempo confirmando que me eram destinados. Há quem diga que cada um de nós tem um koan pessoal a descobrir, a que precisa de dar resposta. Acredito que os nossos livros preferidos façam parte desse koan e por vezes sinto que nomeá-los é expor-nos além da abertura necessária para expressar preferências, formular resenhas ou até escrever, como aqui ou nos próprios livros se faz, com tudo o que já exige de entrega.

No embalo desta divagação, acrescento que não me incomoda, por sua vez, identificar o livro mais intragável que alguma vez me passou pelas mãos: Ulisses, de James Joyce. Punha fé no nome, mas nem ele o salvou do naufrágio, com o cúmulo de o ter lido na praia: a) nos tempos em que tinha férias; b) quando me obrigavam a ir à praia. Nem lhe podia dar a conhecer a minha frustração física nem usá-lo para pousar a cabeça quando estava a apanhar sol deitada de barriga para cima, porque era um livro da biblioteca, que teve como única finalidade fazer-me questionar vocação, carreira e existência, tudo ao mesmo tempo (e consta que nem sequer é o “pior” do autor). Considerando os estragos, não foi nada mau que tenha levado apenas alguns grãos de areia para a prateleira.

Parece-me que não nos importamos de escrutinar e esquartejar ódios, dividir as carnes pela tribo até ficar só a carcaça. Os amores, embora nos deliciem na comunhão com os amadores que para eles gravitam, guardam uma margem de secretismo que não deve ser violada e que fulgura apenas no silêncio, como as pinturas de Georges de la Tour. São livros que não podem ser abertos a outros olhares, que pulsam e nos convidam                entreabertos.

 

01
Jan24

A galinha cor-de-rosa

Sónia Quental

 

A minha avó das Corgas tinha coelhos, vacas e galinhas. Costumava vê-la a dar erva às vacas e a ir buscar ovos ao galinheiro. Um dia, eu disse à minha tia favorita que tinha visto uma galinha com penas cor-de-rosa, comentário recebido com a candura de quem se desacredita dos absurdos perfeitamente lógicos que saem da boca de uma criança. Tanto foi que a história se espalhou e desde então a minha avó perguntava-me sempre pela galinha cor-de-rosa, que não voltei a pôr os olhos em cima.

Pus empenho em encontrar a galinha, quanto mais não fosse por uma questão de honra, algo que as crianças não dispensam. Não podia desdizer-me nem apresentar provas e devia ser das poucas que não queriam a Galinha dos Ovos de Ouro: só pedia uma cor-de-rosa, que pudesse apontar em triunfo para ser levada a sério.

Até que começaram a diagnosticar-me excesso de seriedade e uma vez me perguntaram:

           

- Porque é que és tão triste?

           

Tinha deixado a galinha noutro troço da infância, mas talvez lhe tivesse ficado o fantasma. Em vez de chamar estúpida à pessoa por fazer uma pergunta daquelas, fiquei ainda mais séria, a cismar no verbo “ser”, em vez de “estar”, que me traçava todo um destino, e eu que tinha uma galinha para achar e ainda nem sequer gostava de Português.

Vultos diferentes deram eco à mesma pergunta ao longo do tempo, variações poucas. Porque és tão séria, tão triste, porque não vês connosco a novela. Quando perguntavam pelas costas, a malícia tinha um vocabulário mais expressivo, mas sempre a pender para o mesmo lado. Nem eu sabia que era enjoada nem as pessoas que eu tinha uma galinha atravessada na infância. No hard feelings.

Depois, o meu primeiro namorado a sério, que também me achava séria, cancelou o contrato vitalício antes do fim da garantia, porque, dizia, eu tinha um segredo que ele nunca conseguira decifrar. Os mistérios a resolver já eram muitos e agora mais este, que veio juntar-se à galinha lá no topo e me acusava outra vez de males de que eu não sabia sofrer.

Por estes dias, ao preparar a lista de desejos para o Ano Novo, eles lá estão, vivinhos da Silva, e eu a copiá-los de novo, com uma letra desacostumada do papel, “Achar a galinha e o segredo”. Imagino esse tal namorado, que teve morte prematura (aqui é à letra, não é figura de estilo), a abanar a cabeça do Além enquanto digito ao Leo, nas primeiras horas do ano, “De que cor são as penas das galinhas”, a julgar que a galinha sou eu.

 

Porta azul.jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0