O aceno do elefante
O máximo a que pode aspirar alguém que ocupe a posição de professor ou formador é contribuir para formar seres pensantes – encontrar um metro quadrado de terreno fértil onde as migalhas não sejam devoradas pelos pássaros ou levadas pela brisa do esquecimento.
Anos antes de as experiências de Stanley Milgram se tornarem do conhecimento público, os formandos que tinha em sala já as haviam visitado, tal como ao “Efeito Lúcifer” cunhado por Philip Zimbardo e ao questionamento de alguns autores da psicologia social sobre as condições que favorecem a ação do Mal. Analisámos o filme A Onda, baseado em factos verídicos, e perguntámo-nos em conjunto o que podia fazer com que metade de uma população de civis pegasse em catanas de um dia para o outro e dizimasse a outra metade, como aconteceu no Ruanda.
Em vez de falar de raça, etnia e discriminação, aproveitei a relativa autonomia que tinha para atacar o tema puro e duro do Mal, que parecia nada oferecer de prático. Chegado 2020, percebi a razão prática de discutir assuntos filosóficos aparentemente divorciados das matérias de cidadania e esperei que não tivesse sido vão o trabalho de fomentar um espírito crítico pouco encorajado pelos burocratas que ditam os referenciais e pelos responsáveis de formação que não querem senão instalar engrenagens obedientes no mercado de trabalho.
Se é discutível o estímulo da imaginação heroica que Zimbardo sugere como antídoto contra o Mal no final da sua Ted Talk, o que quero hoje fazer é aproveitar a deixa para lembrar o elefante que acena no meio da sala, quatro anos após as medidas bárbaras impostas a pretexto de uma "pandemia", e assinalar a ação heroica de alguns à face delas. Não é sem tumulto interior que vejo as fotografias da população em marcha neste 25 de abril, sabendo que ainda há pouco a maioria dos que seguram cravos na mão se encolhia dentro de casa, espiando à janela quem saía à rua e congeminando ardis para aprisionar e impedir de frequentar espaços públicos quem montou guarda à dignidade humana e escolheu dizer “NÃO”.
Refiro-me a médicos, cientistas, jornalistas, investigadores, professores e profissionais das mais diversas áreas que foram, em muitos casos, despedidos dos postos de trabalho e, quando não, vilipendiados, atacados, marginalizados e impossibilitados de se expressar pelo crime de divergirem de uma opinião pública habilmente manipulada e fundamentalmente cobarde. Foram inúmeras as contas online suspensas, as pessoas bloqueadas e canceladas por defenderem que os (pretensos) fins não justificam os meios e que a humanidade não se presta ao estupro. Quando os grandes poderes fizeram vergar a ciência, a puseram de quatro e passaram ao ato que está na mente dos que aqui me leem, essas pessoas mostraram que a ciência não tem amo e que não é preciso ser-se cientista para se ser dotado de consciência, que é individual antes - ou em vez - de ser coletiva.
Uma das vozes que se fizeram ouvir foi a do médico Tiago de Abreu, cuja crónica “Os borrados de medo” releio assiduamente, como tributo à coragem de um dos que ousaram dissentir em momento precário, num discurso sem eufemismos nem papas na língua. Esta é a única homenagem que posso fazer a um 25 de abril impostor: lembrar e deixar-me inspirar pelos heróis que não se sentaram no sofá a cantar hinos hipócritas à liberdade e que arregaçaram mangas pela sua defesa, mau grado os sacrifícios pessoais e profissionais que isso lhes custou. A quem quer fazer cair no esquecimento a selvajaria em que participou – e àqueles que ainda nem sequer se deram conta dela -, o elefante acena do meio da sala.
Por trás dos discursos que saem em defesa de um suposto bem coletivo, nacional, ou mesmo do bem-estar geral, constata-se, em muitos casos, um projeto de tomada de poder que costuma valer-se da ingenuidade e do despreparo das massas para justificar a supressão da pessoa enquanto ente inviolável.
Maurício Righi (sobre o pensamento de Theodore Dalrymple)
(um dos despedidos sem causa, autor de ambos os cartoons)