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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

27
Mai24

Desacordar

Sónia Quental

Tempo de leitura: Demasiado (desaconselha-se).

 

           

Pego na cauda de um dos últimos textos para voltar à comunidade espiritual de que falava, onde um dos monges em posição de autoridade contou certa vez o modo itinerante como viviam mesmo depois de voltarem à base. Na sede do grupo, em Minas Gerais, uma das regras do regime monástico ditava que trocassem frequentemente de quarto, sem aviso, para que estivessem sempre prontos a partir em missão, o que os levava a acumular cada vez menos pertences.

Sem lugar onde demorar o poiso, praticavam assim o desapego de que falam os ensinamentos antigos, vivendo no limite na impermanência – o contrário do que faz o resto de nós, agarrados que somos à nossa pessoa, às suas preferências e opiniões, a uma história de vida, uma família, uma profissão, uma cultura, uma nacionalidade.

Tão presos estamos a essas identificações que não conseguimos saber quem somos separados delas e pouco paramos para pensar nisso (poderia acrescentar à lista acima: partido político, clube de futebol e por aí adiante). Equacionar, no mesmo sentido, que “Eu não sou a língua que falo” ou “Eu não sou a norma ortográfica com que escrevo” não passará pela cabeça de muitos, que, perante semelhante aberração, logo evocam o santo nome de Fernando Pessoa, que não se coibiu de inventar argumentos “espirituais” para justificar a sua embirração com as mudanças ortográficas. Fernando Pessoa disse, o papa benze, a obra nasce.

É assim que o sucedâneo da tatuagem “Amor de mãe”, do pós-guerra colonial, é o emblema “Contra o acordo ortográfico”, que teria toda a legitimidade de existir, não fossem os comportamentos de bestialidade inaudita que produz. Basta que os sensores de algum dos que usam a imponente braçadeira apanhem alguém a omitir um “c” onde antes ele se escrevia e ei-lo a espumar pela boca, como se diante de crime de lesa-pátria. Umas gotas de água benta em cima e é vê-lo a revirar a cabeça e a falar em línguas estranhas, o que mostra que as nossas instituições escolares e académicas conferem habilitações, mas se demitiram da educação.

Mais do que as baixas causadas por uma reforma ortográfica canhestra, apoquenta-me, por exemplo, a nova terminologia linguística injetada na disciplina de Português depois de 2005, face à qual o acordo ortográfico é brincadeira para crianças. Preocupam-me também obras como esta, de um autor que se apresenta como doutorado em Filosofia e que não foi capaz de escrever nenhuma das suas 208 páginas sem erros gramaticais “de palmatória”, como dizia a minha professora da escola primária – proeza que, não sendo caso isolado, é sintomática da qualidade cada vez mais precária e da falta de exigência do nosso sistema de ensino, onde se chega cada vez mais longe sabendo-se cada vez menos.

De novo mais do que o acordo, e fascinada que sou pelo comportamento do animal humano, impressionam-me as reações grotescamente violentas de pessoas que, educadas e civilizadas num momento, se prestam também elas a pegar em catanas perante qualquer alusão à polémica ortográfica, como se subitamente possuídas por uma qualquer entidade demoníaca.

Quando nos apegamos a certos atributos que tomamos como marcas de uma identidade, o que quer que os ponha em causa – bem ou malfeito – assume as feições de ameaça existencial. É por isso que a violência das reações com que me deparo vem quer de quem conheça o acordo e que, tendo autoridade para ajuizar, sabe apresentar argumentos racionais contra ele, quer dos que nem sequer se deram ao trabalho de o conhecer, o que não os impediu de formar opinião e de se alistarem no exército de Sauron, erguendo a marca da besta sobre tudo quanto mexe.

 

A minha pátria não é certamente a ortografia portuguesa, ou seria demasiado estreita. Se há quem escolha como missão de vida ser paladino de um desacordo ortográfico, eu tenho outras aspirações, deixando aqui o primeiro e último fôlego que transpiro sobre o assunto.

 

Once Maharajji called a young Western devotee into the room with a local sadhu. The girl was dressed in a nice sari and was wearing jewelry, the sadhu, in typical sadhu dress. Maharajji pointed to the Westerner and said, ‘She’s a sadhu’.

The sadhu objected: ‘How can she be a sadhu? See how she is dressed.’ Maharajji rebuked him and said, ‘She doesn’t care for any of these things. It doesn’t matter to her whether she wears silk or rags. She will even wear diamonds. She is not attached to these things. She has no lust, greed, anger, or attachment. She will wander about all her life. She has no home in the universe’.

Then he sent the girl out of the room.

 Ram Dass, in Miracle of Love

 

22
Mai24

42. Balanço de anca

Sónia Quental

           

As únicas coisas que posso ter como certas no aniversário são que vai estar de chuva e que haverá um qualquer alucinado a tentar saltar da caixa de Pandora, mostrando o quão fundo ela vai: o trabalho do esquecimento é uma odisseia cheia de remos.

Não trago listas com aprendizagens de vida, ocupada que estou a desaprender, bater de lado contra a ignorância. Posso contar as pancadas que já dei, enquanto anseio pela próxima e me desenredo da esperança, para não criar depósitos no fundo. Só a travessia do desespero leva às costas da Alegria.

Quem disse que o que sobrava era a esperança não quis ir longe. Eu quero, nem que seja de boia ou atada a um mastro. Quanto mais longe vou, menos as certezas, mais leve fico, descosida de sabedorias. A única coisa que balança é a anca, enquanto repito “sim, sim; não, não” e reduzo as palavras à essência, a um afago o silêncio.

 

 

16
Mai24

Donativos (in)conscientes

Sónia Quental

Most people who are cowards disguise their cowardice as morality, and they claim that their harmlessness, which is actually a consequence of their fear and inability to be harmful or to be dangerous, is actually a sign of moral integrity (…). 

 

Jordan Peterson

 

           

Quando não existe uma consciência efetivamente desenvolvida, é comum que ela dê lugar ao simulacro de comportamentos moralizantes, associados a formas de manipulação mais ou menos subtis. Uma delas é a prática dos “donativos conscientes”, em eventos a que os organizadores não querem colar etiqueta de preço, mas de que esperam arrecadar um incentivo monetário. É assim que o despretensioso pedido de donativo passou a carregar veneno no bico, instalando em quem doa a dúvida obstinada quanto à generosidade do seu gesto, envolvida num sentimento de culpa habilmente montado. Afinal de contas, não é o donativo que se acusa de inconsciência, mas a pessoa que o dá.

No entanto, como cada um tem um nível de consciência diferente, um donativo consciente pode divergir em igual medida, sem deixar de ser “consciente” para aquele de quem parte. O que se pretende com o qualificativo é, em última instância, sobrepor à dos outros a consciência de quem tem a iniciativa, com a sugestão vaga e omnipresente de um juízo moral a que poucos escapam, uma vez que o público pagante não é obrigado a adivinhar o que vai na consciência de quem recebe. A ideia insinuada é de que não se pretendem donativos “forretas”, com um limiar convenientemente difuso entre esse patamar e o da “consciência”, alçando-se quiçá às alturas da “magnanimidade”. Sem se pedir pagamentos ou valores explícitos, constrói-se assim uma imagem compassiva e investe-se no saldo positivo da balança do carma com um lavar de mãos providencial, em que tudo fica entregue à consciência alheia.

Como aconteceu no início desta década e não foi estreia recente, a acusação de inconsciência provém de quem conhece a palavra pela rama e oferece dela os exemplos mais clamorosos. Num mundo moral em ruínas, em que as máscaras da consciência são tomadas de empréstimo, ganha quem vestir o melhor disfarce. Os donativos conscientes são candidatos ao prémio.

Vestido vermelho (9).jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

10
Mai24

"Ludus, -i"

Sónia Quental

Esta semana, ganhei um distintivo de “fã em ascensão” no Facebook. E nem o absurdo do caso nem a influência da razão conseguiram reprimir o gáudio secreto de ter recebido um galardão. Logo pensei na lógica do jogo, que já algum tempo galgou a arena das atividades lúdicas e recreativas, espalhando-se agora para lá das redes sociais.

No comércio e no trabalho, os distintivos, prémios, pontos e incentivos da chamada “ludificação” propõem-se aumentar as vendas e fidelizar clientes; motivar, fomentar a produtividade e estimular soluções criativas, com o apelo aos sortilégios do storytelling. Mas se, como n’ As Mil e Uma Noites, há histórias que ajudam a adiar a morte, outras há que iludem a vida – e o mesmo se pode dizer da mecânica aparentemente inofensiva da narrativa e do jogo, capaz de despertar o envolvimento, prender a atenção e potenciar a criatividade através do desafio e da competição. Se há momentos em que encarar a vida como um jogo contribui para aligeirar o peso e a excessiva seriedade com que a levamos, não deixa de me inquietar este ambiente de perpétua ligeireza que se generalizou, com a infantilização crescente dos adultos e a necessidade de doses constantes de diversão.

Adotar o jogo como motivador da aprendizagem ou do trabalho muito depois dos primeiros anos formativos é desdobrar um cenário omnipresente de simulação e hiperestimulação, em que nos vamos alheando cada vez mais do real (com todas as aspas que a palavra merece), o que os gadgets de que já não prescindimos estão preparados para facilitar. 

03.08.2018 - Mãos (9).jpg

Não considero que um empregador ou cliente tenha o dever de me motivar para o trabalho. Da mesma forma, também não gostaria de ser tratada como peão num tabuleiro de estratégia ou cavalo de corrida que recebe vergastadas jocosas para cruzar a meta à frente dos outros, recompensado com uma guloseima enquanto ganha fôlego para o próximo circuito e o próximo galardão espirituoso.

Por falar em espírito, houve uma comunidade com essa vocação que acompanhei durante alguns anos em que havia um coro que atuava nas cerimónias públicas. O efeito exaltado dos coros sempre me provocou arrepios, mas trago este à baila pela particularidade de o público ser desencorajado de aplaudir no final de cada música. A razão para tal era subtrair ao culto da personalidade, para que a tarefa pudesse ser ofertada como serviço.

Um dos ensinamentos que muitas vezes ouvi nas palestras daquele grupo era a importância de se trabalhar sem olhar aos resultados – isto é, fazer o que fosse necessário a cada momento, o melhor possível, sem julgar os frutos aparentes, que haveria que entregar a uma sabedoria maior.

Na sociedade, esse espírito de serviço desapegado vai caindo em desuso, a menos que assuma as formas distorcidas da caridade ou do ativismo social. O trabalho faz-se para a recompensa e as insígnias – de preferência, com alguma animação à mistura. Se as medalhas de participação sempre foram de pouco consolo, têm agora uma palidez sepulcral.

 

(Dornes, Portugal - 2017)

 

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

07
Mai24

A casa do silêncio

Sónia Quental

In school they taught you to be extroverted, to have an outgoing personality. Well what has it done for you? It made us all into a bunch of idiots.

 

Robert Adams, in Silence of the Heart

 

 

           Não sei como a notícia atravessou as paredes, mas a insipidez da aula foi sacudida pelo rumor de que Mia Couto estava no anfiteatro a fazer a apresentação de um livro. Não querendo perder a oportunidade, pedimos licença para sair. Apesar de o evento se aproximar do final, seguia-se a sessão de autógrafos com o autor e a ilustradora da obra infantil que motivara o encontro. Daí resultou nova corrida à livraria da faculdade para a comprar a tempo de conseguirmos a assinatura daquela vedeta literária, mesmo que o livro fosse para crianças.

Mia Couto, percebi-o de forma tangível nos breves instantes em que o vi ao vivo, além daqueles em que o ouvi através de um ecrã e das páginas em que o li, é daqueles escritores em que o homem está presente na obra. Consegue-se palpar a sua falta de à-vontade com o público e o silêncio que se desprende dele, marca de uma profundidade habitada. Porque as pessoas silenciosas não são apenas silenciosas quando não falam: são-no também quando falam, puxando-nos irresistivelmente para a dimensão em que residem. É por isso que quem ouço mais alto num grupo são os silenciosos, os que passam quase sempre despercebidos aos demais.

Voltando ao escritor, as marcas do caráter nem o silêncio as apaga. Reparando, constrangido, que as pessoas na fila lhe pediam o autógrafo apenas a ele, virando costas à ilustradora (Danuta Wojciechowska), ouvi-o dizer a quem estava à minha frente, em voz baixa, mas firme, que não se esquecesse dela. Mais do que o livro e o autógrafo, foi esse o tesouro que trouxe comigo nesse dia.

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Admiro pouco os homens que não tomam conta da obra que deixam, tendo a impressão de serem cada vez mais raros aqueles que estão à altura dela, mesmo quando lhe é atribuído um justo valor. Refiro-me concretamente às obras literárias, em que a destreza verbal dos autores se vai afastando de uma sabedoria construída com labor ao longo da vida e que chapinha na piscina para os mais pequenos: a água é quente, mas chega só até aos joelhos. É por isso que jamais serei capaz de olhar para Fernando Pessoa como mais do que um ébrio enfezado, que não se alçou à altura do que produziu através da sua despersonalização e cujo silêncio estava cheio de barulho.

É para esse barulho que insistem em chamar-me, supondo que o seu é canto de sereia a que vou fazer render o silêncio. Uma e outra vez constato: a solidão e o silêncio incomodam. Por algum motivo insondável, quem leva uma vida de bulício acha que todos teríamos a ganhar por nos juntarmos à farra. E agridem com as boas intenções com que tentam demover-nos da quietude e seduzir-nos à frivolidade.

Quanto a mim, o silêncio é uma casa que prefiro imaculada. Ausento-me pouco. Recebo visitas.

 

02
Mai24

Os novos tementes a Deus

Sónia Quental

Com o aniversário a aproximar-se, sinto-me tentada a celebrar a data com um batismo no Douro, à semelhança de Russell Brand no Tamisa, imitado por uma onda de celebridades em cenários nem sempre tão exóticos, mas igual publicidade nos tabloides. O único senão é que já fui batizada uma vez, mas, se conta para alguma coisa, não me lembro disso, e tenho quase a certeza de que o cadastro estava praticamente limpo.

É como celebrar as bodas de prata ou de ouro do casamento, representando aqui a Igreja Católica o cônjuge de um matrimónio arranjado antes de me rebentarem os dentes (se fosse depois, é provável que eu já mordesse), cujos votos posso agora renovar mais senhora de mim.

Pondero, enfim, alistar-me no pagode dos novos tementes a Deus, como também gostam de se chamar. Além de ser exonerada dos pecados, Deus passará a ser o único a poder administrar-me justiça, porque de nenhum outro admito julgamento nem a ninguém presto contas. Ainda por cima, não tendo Ele apartado nem e-mail, e sendo pouco dado a aparecer em público, não há quem possa pedir as atas das diligências.

Espero que simpatize com a bajulação e o suborno, dê um jeitinho aqui e ali em troca de 20 padre-nossos e 10 ave-marias, 20 metros de joelhos pelo chão. Se nos desentendermos ou afrouxar o temor que lhe devo e o estragar com AMOR (mesmo que orgânico), os sacerdotes católicos aí estão a servir de conselheiros matrimoniais, reavivando com vigor o medo constante a esse Deus que se esconde na escuridão e gosta de pregar sustos. O susto e o reforço intermitente são, a bem dizer, o modelo de educação dos tementes a Deus, presos, não pelo fio da navalha, mas pela caridade e a esperança, à mistura com o condicionamento operante de Skinner, que já converteu muitos à fé.

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0