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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

30
Ago24

Poliamor

Sónia Quental

(…) ele foi capaz de transmitir o horror de um mundo no qual ‘todos pertencem a todos’, um mundo no qual ninguém poderia construir qualquer ligação profunda com ninguém. O alvo principal da distopia de Huxley era a ideia de boa vida como gratificação instantânea dos desejos sensoriais.

 

Theodore Dalrymple

 

 

          Chamou-me a atenção uma capa de revista na montra da papelaria, sugerindo, de forma interrogada, que o amor romântico terá acabado e que a monogamia se tornou obsoleta. Se está impresso na capa de uma revista, deve ser verdade e não há perigo de desinformação, por isso acreditei no diagnóstico.

          Sabia-se já que a desconstrução da identidade sexual preparava a desconstrução da monogamia, um conceito reduzido ao seu caráter histórico e social, num momento em que até a biologia perdeu o estado de graça. A culpa, já se sabe, é do patriarcado, e os modos de viver o amor não passam de correntes do obscurantismo que percorreu as sucessivas épocas, até chegarmos ao presente esclarecido em que temos a felicidade de viver, preparados para acabar com as repressões, derrubar estereótipos e proclamar a liberdade de vida, que gravita em torno da liberdade sexual.

         Da definição de limites rígidos passamos à fluidez gelatinosa da identidade de género e de relação, em que se vive fundamentalmente para coçar comichões. Como propõe Regina Navarro Lins, autora de Novas Formas de Amar, em que se baseia em parte o artigo de revista a que aludo à entrada, chegou a altura de arejar as nossas ideias a respeito de amor e sexo – ou de levar a cama para a varanda, imagem que dá o título a outra das suas obras e que ilustra bem as correntes de ar que ventila.

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          Se o amor romântico é mito ou ilusão, é ilusão que encontra finalidade no crescimento pessoal, que dificilmente acontece numa existência isolada. Uma ilusão que pode levar-nos ao encontro da verdade do amor ou à sua sublimação como verbo. Trocar essa ilusão a dois pelo regresso à selva amorosa é preferir uma miragem serpentina, que não só não vem resolver os dilemas com que as pessoas se confrontam dentro da monogamia, sintoma de um vazio íntimo que se propaga, como vem exacerbá-los, iniciando uma espiral que só tem um sentido: descendente.

          A normalização das relações "abertas" consagra-as ao capricho do momento. “Infelizmente, os caprichos de duas pessoas raras vezes coincidem”, sinaliza Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, um título que nos atira da varanda para a valeta, mas que introduz, desde esse nível rasteiro, uma reflexão bem mais profunda sobre o abismo existencial, o tédio e a degradação moral que marcam o grito do Ipiranga sexual: o grito do bárbaro moderno.

          Evocando o significado simbólico de um dos meus contos de fadas preferidos, enquadrado no ciclo do animal-noivo (“A Bela e o Monstro”), Bela perdeu nesta revolução sexual o poder de revelar o príncipe no monstro, sendo agora o monstro que a absorve e transforma num ser à sua semelhança: bem-vinda ao bacanal fluido do poliamor.

 

Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. (…). Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.

R. M. Rilke

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Ago24

Também aqui é agosto

Sónia Quental

Todas as minhas fontes vêm de ti

Daniel Faria

 

 

        Mulher sou, retenho líquidos. Nasci com os olhos tortos, voltados para dentro. Nem o médico da vista os endireitou. Nem as lentes de plástico vermelha e verde com que desenhava um risco no labirinto. Chamavam a um preguiçoso. Ele continuou sempre, sem ligar.

       Espremo a pele para não guardar tanto líquido, dividi-lo com o mundo carente de águas.

        Endireito os olhos fixando o horizonte em névoa, endireito o labirinto enquanto caminho. Bico de papagaio no joelho. Endireito o esqueleto.

         Encho baldes de água. Por isso me esqueceram, criança, no tanque de lavar a roupa – para reter a água ainda limpa, fazer a distribuição na minha clínica imperfeição humana. A vida foi para aprender a pô-la a circular, sangue azul cada vez mais puro, olhos cada vez mais fechados para fora, salinas concentradas de claro fervor.

         Pensava que me faltava o mar, mas também aqui é agosto.

 

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

16
Ago24

Deus-Ikea

Sónia Quental

           

         A designação não é minha, mas de um artigo de Pedro Saraiva Ferreira sobre as novas espiritualidades que vieram substituir a religião – uma religiosidade de consumo, que o autor classifica como um “Cristianismo sem Cristo”, à imagem do Homem psicológico, que nasceu para ser feliz, indiferente à ideia de salvação. Guia-o uma busca pelo sagrado que segue o modelo “faça você mesmo”, à semelhança dos móveis do Ikea.

         A única coisa que tenho contra os móveis do Ikea são as arestas cortantes, as bicadas que às vezes dão e ter de pedir a outra pessoa para os montar. Não sou essa mulher emancipada que se diverte em noites de insónia agarrada aos hieróglifos de manuais de instruções e a dezenas de parafusos, peças, pecinhas e objetos de natureza incógnita, com uma pequena chave como varinha mágica, capaz de encaixar tudo no sítio.

         No entanto, serve-me a comparação para defender que, no que toca à busca do sagrado, não há como escapar ao DIY: cada um tem de redescobrir a roda, levantar a própria cama. Podemos formar comunidades, reclamar com o bot do atendimento ao cliente, pedir orientação a quem já montou a sua ou vai mais adiantado, mas serão sempre nossos os braços e as mãos, a irritação solene, a paciência ao limite, os momentos de epifania, as misérias, a glória.

         Quem faz questão de montar um móvel sozinho, sem os selos de autoridades externas, embalados em dogmas ossificados, não procura necessariamente os atalhos enganosos da autoajuda nem está preocupado com garantias de bem-estar. Tem como fito o Profundo, que quer conhecer e amar, um palmo de cada vez, na aspereza salgada da pele. Não anda em busca das "opiniões certas" que o colunista do Observador opõe à tentação do relativismo ou à fantasia das preferências pessoais – nem sequer lhe interessam opiniões, que não entram no túnel estreito que se vai abrindo com o peso do corpo no chão, os olhos sondando o céu, o punho esfolado de vontade.

         Não vejo Felicidade que não seja salvação.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Ago24

Miss Magnética

Sónia Quental

 

     Olá a todas, eu sou a Miss Magnética, coach intuitiva do amor, como podem ver pela minha farta cabeleira. Atrás de mim, está a minha equipa de anjos 24/7, que me convenceu a fazer este vídeo para celebrar o aniversário dos meus 10 anos de carreira e mais de 50 000 horas de experiência, que me permitiram dar o salto quântico. Só não me qualifiquei para as Olimpíadas porque os anjos estavam de férias nas Plêiades e se esqueceram de dar aquele empurrãozinho que faltava.

         Mas enfim, hoje estou super triste e trago uma mensagem que nem todas vão gostar de ouvir… Tenho de confessar que estou super sensível e preciso de ser super honesta com vocês. Este é um momento super vulnerável, porque como sabem a vulnerabilidade é o ingrediente secreto do amor. Por isso, vou abrir-me e ser super transparente com vocês.

         Tentei criar um espaço seguro, um espaço de empatia e compaixão que vos ajudasse a superar desafios, a saírem da vossa zona de conforto e a criarem resiliência para se empoderarem como deusas que são. Mas a verdade é que fui abusada. Vocês disseram que queriam, mas afinal não queriam. O amor, isto é.

         São más e manipularam-me, quando eu até de madrugada estava disponível para canalizar as mensagens dos anjos e para vos aturar. Os outros coaches cobram balúrdios e nem fazem atendimento personalizado, quando tudo o que eu pedia era um pequeno investimento de 4999 €, que iam acabar por recuperar, mas parece que nem dado. E as que se comprometeram e disseram que queriam afinal não queriam. Mentiram-me. São más e inseguras, e tentaram usar-me para manipular os homens.

         Vou ser ainda mais transparente e atirar-vos à cara que os anjos ficavam com 90% de comissão e cobravam 200% à hora de madrugada e aos fins de semana. No fim, sacrifiquei a minha saúde e ainda saí prejudicada. Claro que isso não seria nada se vocês quisessem MESMO e estivessem dispostas a sair da vossa zona de conforto para vibrarmos em sintonia. Mas são demasiado ingratas e não estão dispostas a trabalhar para atrair a vossa alma gémea.

         Por causa de vocês, experienciei carradas de energia negativa e um ambiente tóxico. Ainda estou a cambalear. Mesmo assim, esforcei-me ao máximo, com toda a minha empatia, por enviar amor e luz para a vossa ruindade, mas ela foi mais forte do que eu. Não tenho vergonha de admitir. Dei tudo de mim apenas para ser traída, como Cristo.

         Mas olhem, para as que quiserem MESMO, estou prestes a lançar o novo curso Descubra a Deusa Irresistível que Há em Si, que vai ajudar a reprogramar as vossas crenças limitantes e ainda oferece uma pulseira magnética que muda de cor e um áudio com afirmações subliminares. Pagamento adiantado e não reembolsável. Para testar a vossa seriedade.

           Namastê!

 

07
Ago24

A brasa e a sardinha

Sónia Quental

 

         Se o jornalismo alguma vez teve pretensões de isenção e objetividade, a falta das quais era com maior ou menor habilidade disfarçada, essa tentativa desapareceu sem deixar rasto. Basta passar os olhos pelos títulos das notícias em destaque – que classificam sem hesitar os participantes de protestos como sendo de "extrema-direita", "racistas" ou o já clássico "negacionistas", em contraponto à reverência religiosa com que recitam os dogmas de uma qualquer seita de "especialistas" – para se constatar que as preocupações deontológicas não estão na ordem do dia.

         Na mesma medida em que, nos últimos anos, foram surgindo novos mecanismos e pretextos de censura, acompanhados da inauguração do cargo delirante de fact-checker, a manipulação das notícias é perpetrada às claras pelos grandes órgãos de comunicação social, responsáveis pelas manobras de desinformação de que eles próprios acusam os indivíduos e grupos que não se cansam de rotular. A chave de leitura é dada logo no título da notícia, não vá a perspicácia falhar ao leitor: são indivíduos de extrema-direita, a única explicação para um comportamento de uma bizarria que fazem questão de esquadrinhar, motivada em ideais patológicos, de rejeição dos direitos humanos e do bem comum.

         Na sua fase emergente, este ambiente encontrou resposta nas novas tecnologias da comunicação, que criaram os meios para o aparecimento de canais alternativos ao mainstream, abrindo novas formas de acesso à informação, que deixou de ser monopolizada pelos jornalistas profissionais. A internet deu direito de antena a YouTubers, autores de podcasts e canais independentes, que vieram colmatar a falta de fontes de verdade confiáveis. Mas também na arena do alternativo a parra é mais do que a uva, acabando este por assumir os contornos de um segundo mainstream, nalguns casos tão tendencioso e excessivo quanto aquele de que tenta demarcar-se.

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         As novas plataformas da informação dirigem-se hoje a um cidadão mais escolarizado, que as procura para se educar e estabelecer comunidades em torno de uma afinidade de interesses. É neste meio que se afirma uma plêiade de coaches e gurus autoungidos, dotados do carisma inoxidável da certeza, e de seguidores da mesma lavra, que absorvem com facilidade o hábito disseminado da rotulagem. Além da máxima irónica do "não julgamento", tornou-se corriqueiro o manejo de termos como "tóxico" ou "narcisista", que a pessoa comum aplica com ligeireza às relações pessoais. "Estava numa relação tóxica", explica aquela que se apresenta como vítima sem precisar de o dizer, depreendendo-se com naturalidade que não tivesse participação na dinâmica que assim descreve. Invariavelmente, o outro era um narcisista, com todo um jargão associado à condição que o locutor domina como especialista declarado.

         Torna-se claro que a quantidade e a velocidade da informação, com o empurrão da evolução tecnológica, não se fizeram acompanhar de uma maturação humana comparável. Os grandes media já não são soberanos, agarrando-se com tenacidade à réstia de controlo que ainda têm sobre a opinião pública, que procura emancipar-se e tornar-se mais expedita no acesso à notícia, bem como ao que já é vulgo designar-se "conteúdos". Neste imenso mar de sargaço, cada um aproveita o que lhe convém, que o mesmo é dizer "puxa a brasa à sua sardinha", técnica de antanho agora em formato rich media.

         Às alucinações privadas, não faltam meios; às coletivas, não faltam estímulos. Alguns sugerem que a solução passa por deixar de comer sardinha. Outros trocam receitas. Outros ainda querem reparti-la em partes iguais, desde que não fiquem com as espinhas. Os cautelosos lembram a toxicidade dos mares e o mercúrio do peixe. Rui Moreira quer instalar câmaras, para que ninguém tente pôr a mão à sardinha, enquanto obriga os renitentes ao voto. Os sabichões citam de cor Einstein, pregando que a solução não está ao nível do problema. Os evoluídos franzem o sobrolho, porque não se deve dizer "problema", mas "desafio", e os desafios são oportunidades. Oportunidade não perde Elon Musk, que ora pela sardinha enquanto lhe liga o cérebro à nuvem e se faz dono de céus e oceanos. Os extraterrestres ficam-se pelas pipocas.

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

01
Ago24

Macadâmia

Sónia Quental

 

Wanderer am I.

A misfit, perpetual freelancer in someone else’s world.

John J. Falone

 

 

         Normalmente, não quero escrever. Quero, mas não quero, até que uma das forças leva a melhor e acaba por me arrastar até à página em branco. Hoje, a resistência era maior, por me ver empurrada em simultâneo para a mesma sala de espera, a mesma senha e cadeira, a mesma gravata, desta vez num pescoço de mulher. O computador já não era o mesmo, mas usava astúcias gémeas para surripiar a atenção das mãos que o manuseavam, menos coniventes do que as do funcionário que me atendeu em fevereiro, desculpando-se profusamente pela demora.

         A suavidade submissa da voz derrapou por breves instantes do guião quando, ante a minha renitência em aderir a produtos de investimento a longo prazo, me disse que também tinha sido freelancerdesigner, mais propriamente, agora convertida ao ar condicionado que a obrigava a usar fato de inverno no pino do verão e a desviar-se dos olhares fulminantes dos clientes à espera de vez. A centelha foi breve, mas inconfundível.

         Quando vinha embora, subindo a mesma rua tórrida que subo desde o princípio dos tempos, vi desenhar-se um padrão: o das criaturas com que me tenho cruzado que abandonaram a área criativa em que se formaram ou se expressavam (poetas, pintores, terapeutas, designers) para irem parar à banca ou ao setor imobiliário. Ora por quererem constituir família ora por já não conseguirem suportar a vida na corda bamba ou no fio da navalha, sem rendimentos certos, sem saber se o mês vai ser de vacas gordas ou magras, sem poder fazer planos, que o mesmo é dizer: vivendo sem garantia. O desgaste acaba por levar a melhor, reforçado pelos ecos de quem nos quer bem e vem ensinar a sabedoria de que o mundo não é para sonhadores.

         Achando-me num desses frequentes momentos de paralisia em que tento fazer ouvidos moucos à matemática do futuro, descubro-me a pensar sobre vocações e destinos. E a arriscar que vocação é mais do que dom: é quando não se tem mais para onde ir. É quando todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio e na frente está um abismo. Mais do que não capitular ou do que resistir, é saber que não há fuga possível.

         Assistindo ao desespero e à debandada instigados pela pressão da IA, o que lamento são as almas perdidas para as falanges cinzentas da certeza, porque a farda que se enverga por fora se infiltra nos poros e raros são os que entram no sistema e permanecem ilesos.

         Na revisitação que costumo fazer de leituras passadas sobre a espiral dos temas que me assombram, fui dar com um termo desconhecido: “pronoia”, definido, num sentido positivo, como o oposto de “paranoia” e em torno do qual Rob Brezsny escreveu todo um livro - a pista de leitura que me desanuviou o espírito. Consta que o autor é astrólogo e escreve horóscopos inspiradores, segundo o princípio da benevolência do universo. Fui ver o meu para hoje, que aqui deixo em tradução, para propagar esta nota de inesperado alento e leveza:

Setenta por cento das nozes de macadâmia em todo o mundo têm o mesmo antepassado: uma árvore específica de Queensland, na Austrália. Em 1896, dois irmãos havaianos apanharam sementes dessa árvore e levaram-nas para a sua propriedade em Oahu. A partir deste pequeno começo, as nozes de macadâmia havaianas passaram a dominar a produção mundial. Prevejo que em breve terá semelhanças com essa árvore original, Gémeos. O que lançar nas próximas semanas e meses poderá ter um tremendo poder de permanência e chegar muito além da inspiração original.

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Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0