Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

09
Set24

Novilíngua

Sónia Quental

O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade.

George Orwell

 

 

         Basta passar uma hora a rever textos que saem dos teclados do copywriting e da produção de conteúdos para a web e é certo e garantido que o resultado é a cabeça a andar à roda. É tal o contorcionismo para evitar termos com conotação negativa que a tão apregoada simplicidade de escrita descamba em construções perifrásticas mais opacas do que os mais loucos delírios da burocracia.

        Os eufemismos forçados geram toda uma linguagem com âncoras estereotipadas que se adivinha de olhos fechados, num esforço que já não é de escolher palavras para transmitir conteúdo, mas de inventar conteúdo para ligar de forma precária e imaginativa um catálogo de termos selecionados de antemão para produzir um determinado efeito no leitor ou obter o posicionamento ideal no ranking dos motores de busca.  

       Além dos já aqui mencionados “desafio” e “resiliência”, merece menção especial o verbo “experienciar”, que, à semelhança do inglês, adquiriu no português uma elasticidade capaz de omitir opções mais simples e diretas, como “sentir”. “Sentir”, “passar por”, “perceber”, “conhecer”, “vivenciar” – tudo se “experiencia”, de todas as maneiras. Grande é a frustração experienciada por quem tem de ler e endireitar, voltar a rechear de carne o cadáver ressequido da língua!

       Quem quiser servir o mesmo guisado, basta misturar pobreza vocabular, repetição ad nauseam, utilização de termos imprecisos e vazios, e polvilhar tudo com uma profusão de pontos de exclamação que ainda há quem acredite que promova a venda. Como se o resultado da receita não fosse uma linguagem bastarda q.b., ainda é preciso peneirá-la e, se necessário, riscar as palavras do dicionário, segundo a lógica de que eliminá-las da comunicação as apagará também do pensamento, sendo a realidade magicamente transformada na mesma penada.

         Na área da mentoria, afirmou-se há algum tempo a moda de substituir o “mas” pela copulativa “e”, uma das estratégias utilizadas para evitar bloqueios mentais, ao remover do discurso qualquer sugestão de adversidade. O “não”, essa das minhas palavras favoritas, quer-se extinto no mandamento novo que proíbe dizer “Não posso” ou “Não consigo”, inculcando por hipnose que tudo podemos e conseguimos. Sei o que Freud teria a dizer sobre o assunto, mas a única resposta que me ocorre para programas desse calibre é um simples “Não quero”, com o “não” bem redondo logo à entrada. Se precisarem de porquês, sai um “Porque não” a negrito.

 

04
Set24

Selvagem

Sónia Quental

 

         Estava no meu primeiro exílio, a colónia de férias, quando a primeira banda sonora me fechou a infância, entranhando-se no nevoeiro de um abandono com hora marcada. Todas as tardes, o bar da praia fazia soar a música “Nasce selvagem”, toada para uma cria que não fazia parte da ninhada e não sabia que “selvagem” era palavra que lhe descrevesse a vergonha.

         Compreendo agora que foi a forma mais fácil de me dizer que vinha para atravessar a lonjura, deixar família, amigos, trabalho, vocação para trás. A forma mais melódica que havia de me contar que ia passar a vida a ir embora, a mim, que tinha medo de bruxas, gente desdentada e mulheres com pelos nas pernas (a minha mãe era esteticista, por isso eu reparava sempre nos pelos). Não se podia recorrer aos profissionais dos oráculos para entregar a mensagem, por isso ela veio cantada pelos ares de um verão sem sol nem azul.

         Virgem de passado e com o coração mais ou menos ileso, estava longe de compreender palavras como “rotina” ou “profissão”. Mas nos Perdidos e Achados nunca disseram o meu número e eu despertencia cada vez mais. Não era de ninguém, também não era minha. E não parava de nascer, prematura, de encontrar novos exílios que cantavam a mesma canção, até que parei para ouvir. E descobri-me selvagem no “não” que trago pendurado na boca desde que aprendi a falar. Todas as vezes que aprendo a falar, o começo é com a mesma palavra, a que me tentaram fazer engolir, com medo da sombra que as palavras projetam. É nela que me enrosco, outra vez feto, cada vez mais minha.

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D

Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0