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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

31
Out24

Bonecos

Sónia Quental

 

         Sinto-me tremer até à unha quando tecem louvores à simpatia de alguém. Entre o falo ou não falo, resisto ao papel de educar gente graúda até que, com os óculos invisíveis na ponta do nariz, um peso bem real, murmuro a contragosto: “Simpatia não é virtude. Não falta charme aos psicopatas”.

          Não ouvem. Admiro a habilidade que temos em ver o que queremos, ouvir o que interessa e pôr o resto em mute enquanto treinamos o assobio em mi maior. Quanta ginástica não se pratica para manter uma praia de ficções intacta, sem perda de um grão de areia. Pedem-me a pá de plástico e o ancinho. Fico-me estátua a apreciar os gestos alucinados de construção com que uma criatura adulta cava um chão impercetível, no sítio da areia molhada a imitar a solidez. Não gosto de brincar ao faz de conta, mas também não quero ser a desmancha-prazeres que dá má nota ao esforço, mesmo que o mérito seja nulo.

         Houve vezes em que tentei fazer de conta, quando a idade era própria e tinha bonecas (poucas), roupa à medida e um fogão em miniatura. A imaginação regalava-se com os “bons dias”, “se faz favor” e “obrigada” que dizia com sapatos de senhora, mesmo que fosse a boneca a calçá-los. Ser grande era poder ir a uma loja fazer compras de salto alto.

      Desde que o sou, pasmo com a confusão oblíqua de todos os que reduzem a educação e respeito àquele “bom dia” sacramental que ofende quando não vem. Gente em modo boneco, que fala para se ouvir falar e que regista no bloco de notas do telemóvel quantos agradecimentos lhe devem e todas as vezes que fulano ou sicrano falhou o “se faz favor”. O inchaço lento do peito pelos despeitos acumulados derrete rápido com um gesto de simpatia, sem olhar à conveniência ou à proveniência. Quanto ressentimento rijo se dissolve com um “bom dia” distraído!

 

26
Out24

Dalrymple

Sónia Quental

            

    Considerado por alguns o melhor ensaísta de língua inglesa da contemporaneidade e convidado várias vezes para o Brasil, onde a sua obra se encontra extensamente publicada e é já objeto de estudo, Theodore Dalrymple parece ainda não ter dado à costa do panorama editorial português, apesar da proximidade geográfica. É essa negligência flagrante que me faz dedicar-lhe uma entrada no blogue, aproveitando a reedição próxima do título Nothing but Wickedness: The Decline of Our Culture.

      Pseudónimo literário do psiquiatra Anthony Daniels, que trabalhou como médico em continentes estrangeiros antes de se fixar no país natal, a Inglaterra, aí atendeu durante grande parte da sua carreira a população das prisões e da classe baixa, cuja pobreza cultural, moral e social diz superar a pobreza material de países classificados como de terceiro mundo, assolados pela miséria, por conflitos civis e pela opressão política.

Dalrymple.png

        Na esteira dos grandes autores e psicólogos da literatura mundial, de entre os quais se destaca o nome de Shakespeare, Dalrymple é dos poucos ensaístas em que encontro uma profundidade de análise psicológica que, aliada a uma rara isenção e honestidade intelectual, tem um efeito simultaneamente refrescante e persuasivo. Resistindo a deixar-se ofuscar por ideações pessoais, tingidas por um emocionalismo impostor, ou a tentar ajustar a realidade a teorias preliminares, Dalrymple faz da observação minuciosa dos sintomas do universo humano com que contacta instrumento de diagnóstico da cultura e da sociedade. A lucidez da sua exposição argumentativa abre-nos clareiras no pensamento; a fina ironia e o humor que marcam a sua escrita tornam a leitura destes ensaios uma delícia que não cansa.

      Como adiantei em referências anteriores, é o autor laico mais espiritual que conheço e dos poucos que continuo a ler: assumindo-se como não religioso, reconhece o valor que a transcendência tem para a busca do significado da existência, não hesitando em utilizar a palavra “alma” quando se pronuncia sobre a condição humana, como autor eternamente fascinado pelo problema do Mal – um dos nós górdios que nos unem.

        Maurício Righi escreveu sobre ele Theodore Dalrymple: A Ruína Mental dos Novos Bárbaros, uma introdução rigorosa à obra de um pensador virtualmente desconhecido por cá, que ainda precisa de atravessar o oceano se quisermos lê-la em papel.

 

It often seems to me that the main purpose of the intellectual elite is to find theoretical reasons for ignoring what is in front of their face.

Theodore Dalrymple

 

24
Out24

Mamilos de luz

Sónia Quental

 

         Dizem que é nos momentos de descompressão, em que desviamos o pensamento do foco, que a inspiração se infiltra. Foi num desses intervalos da seriedade que resolvi investigar algo que me intrigava com uma certa persistência: os mamilos de luz. Em páginas de fotografia do Instagram, tinha-me deparado várias vezes com imagens de nudez explícita em que a única parte do corpo coberta era o mamilo da mulher. Sendo inegável a dificuldade que sinto em descodificar o significado oculto das tendências, só mesmo a repetição do fenómeno em páginas diferentes deu forma à hipótese perplexa: será que deixa de ser nudez se o mamilo estiver coberto??

         Constatei a seguir que alguns, em vez de luz, projetavam sombra; outros mudavam de expressão com as caras dos emojis; outros ainda davam flor. Interroguei-me se a escolha seria preferência da modelo ou do fotógrafo. Nunca me lembrei de perguntar aos meus com que disposição estavam, mas este era apenas o início de uma aventura temerária no mundo dos mamilos, onde entrei com passo hesitante, um olho fechado e o outro aberto, até chegar ao ponto de retrocesso, sob pena de me perder para sempre se continuasse a adentrar-me nos arcanos deste universo paralelo.

         Antes de lá chegar, porém, partilho com os curiosos os resultados lácteos deste empreendimento, que me fez saber que havia um movimento de libertação dos mamilos, uma descoberta que, a rigor, foi dupla: não só soube que havia quem estivesse a lutar pelos mamilos, como captei por inferência que eles estavam presos (a inteligência voltava a ganhar tração). Bastou esse pretexto para se abrir um daqueles instantâneos em que a vida nos passa diante dos olhos, fazendo-me apreender toda a distância – ou, como hoje se diz, “desconexão” – que havia entre mim e os meus mamilos.

         Ainda a pensar em como reatar diálogo, o motor de busca pôs-me diante dos olhos o debate gerado por eles, que jornalistas, vigilantes e burocratas encaravam de um ângulo aparentemente mais óbvio e essencial do que o meu: a polémica em torno da regra de cobrir os mamilos nas redes sociais estava na discriminação em que se baseava. Porque se havia de cobrir os mamilos da mulher quando os dos homens se empinavam livremente e sem qualquer pudor? O debate adensava-se e tornava-se mais feroz quando nele entravam os arautos dos novos géneros e das passagens indeterminadas entre eles, acusando uma visão binária que se refletia em políticas pouco inclusivas, que punham em causa os direitos humanos. Quando é que se devia cobrir o mamilo, e quando é que não se podia, e o mamilo de quem?...

       Foi aqui que notei que já não estava a descomprimir, mas a comprimir. A inspiração sempre espremeu alguma coisa, mas, com tanta informação, fiquei com medo de ir dormir, não por causa do escuro, mas dos faróis que se acendessem por vontade própria.

 

Vestido vermelho.jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Out24

Como impactar com um texto popularucho

Sónia Quental

Instruções passo a passo:

 

1. Pegue em qualquer destes termos ou num punhado deles, pincele-os com uma camada de verniz e retire-lhes o miolo (no caso de escolher apenas um, é repeti-lo à saciedade): igualdade, liberdade, democracia, diálogo, empatia, harmonia, união, inclusão, diversidade, pacifismo, ambiente, enriquecer, “multi-” qualquer coisa.

 

2. Utilize todas as derivações possíveis de “impacto”, como verbo, substantivo, adjetivo. Não importa o impacto, desde que se impacte.

 

3. Condene abertamente o julgamento. Cruze os dedos, esperando que, no embalo da toada popularucha, ninguém encontre a falácia. Diga que não há certo nem errado escrito em lado nenhum, mas que é errado julgar.

 

4. Aplique o mesmo idealismo sentimental que tinha aos 15 anos, mesmo que conte com umas quantas décadas em cima. À custa de tanto verniz, já é possível terminar-se a vida com a mesma tabula rasa com que se começou, sem qualquer desenvolvimento psicológico que tenha ocorrido com as famosas “aprendizagens de vida” e tão mergulhado na fantasia como quando se lia as aventuras d’ Os Cinco. Ignore que os manuais de ensino, perpetuados pelos órgãos de comunicação social, são cartilhas ideológicas que disfarçam o caminho do totalitarismo com as cores brandas da utopia e do humanitarismo.

 

5. Use e abuse do materialismo intelectual que só vê guerra, fome e pobreza das janelas do próprio conforto, sem conhecer significado algum para o que acontece – nem no mundo nem dentro da própria casa – mas que continua a agir como se soubesse. Quando se sentir inspirado, culpe Deus; caso contrário, ignore-o e aponte o capitalismo como a causa de todos os males. E nunca se esqueça de que os fins justificam os meios, sobretudo quando o fim é a sobrevivência, física ou psicológica.

 

6. Pregue o seu desprendimento e os desertos ideológicos que atravessa, quando está desde sempre parado no mesmo lugar: um lugar com uma ideologia bem demarcada e altamente frequentada, onde se pode ser para sempre ingénuo. É aí que se aprende o que é da ordem do popularucho. Ensaie esta canção com os outros meninos, à roda da mesa simpática onde batucam o Kumbaya.

 

7. Deixe-se enganar pelas aparências e negue-lhes o valor, em vez de aprender a interpretá-las. Persista na superficialidade, mas cite Einstein ou Tolkien de vez em quando. Pendure um poster do D. Quixote ou do Che Guevara no quarto.

 

8. Acredite que a cultura é toda a iluminação de que precisa. A cultura e a geografia, com um empurrãozinho da “ciência” e da diplomacia.

 

9. Não se esqueça da máscara quando sair de casa nem quando invadir blogues alheios para insultar os autores assinando simplesmente: “Anónimo”.

 

21
Out24

O cabide

Sónia Quental

 

         Amigo do amigo era como lhe chamavam, quando se esqueciam que o primeiro nome era Toni. As bochechas do Toni tremiam sempre que as feromonas detetavam uma fêmea compatível.

    - Prazer. Amigo do amigo – apresentava-se, o peito inchado amortecendo o abalo das bochechas.

       Mascote de hordas de mulheres, chegou a biscateiro e confidente. Desentupia-lhes o ralo, levava-as ao shopping, segurava-lhes a mala de ombro.

         Andava de mota à segunda-feira.

 

21
Out24

Parábola para os gentios

Sónia Quental

        

         A Verdade começou a pensar que talvez fosse feiinha ou tivesse mau odor corporal. Sempre que dobrava uma esquina ou estava prestes a cruzar-se com alguém, a pessoa atravessava desvairada para o outro lado da rua sem se lembrar de olhar para os dois lados, provocando toda a espécie de acidentes e caos na estrada. Ou então passavam a assobiar, fazendo de conta que não a conheciam, a admirar os chemtrails que golpeavam o céu. Quando chocavam diretamente com ela, era por distração e logo fugiam sem dar tempo de pedir os dados para o seguro.

         O Amor era mais popular, mas depressa descobriu que só gostavam da sua companhia quando se embriagava e ficava com a visão turva. A Verdade dava-lhe o braço nesses momentos, neutralizando-lhe o bafo incapacitante. Mas nem a companhia do Amor a tornava mais querida. Consolavam-se mutuamente.

 

17
Out24

Um chizinho

Sónia Quental

Olá,

 

Obrigado pela sua mensagem. Parabéns por ter conseguido enganar os bots, atravessar a selva de artigos de ajuda com que foi bombardeado e conseguir falar com um agente humano. A maioria perde-se pelo caminho.

Aqui chegado, não pense que está mais perto de um final feliz. Com a minha fé na vontade que tem de se ajudar a si mesmo, vou ignorar a pergunta específica para a qual procura resposta e mandá-lo ler mais artigos de ajuda, onde encontrar a informação que procura é como procurar a mítica agulha num palheiro burocrático habilmente montado. Não tenha ilusões: é de propósito para o cansar e fazer desistir já aqui.

A nossa primeira tarefa é desviar pedidos e invocar as políticas da empresa, que temos gravadas nas tábuas mosaicas, mas que também oferecemos em formato digital. A segunda, no caso improvável de a primeira não resultar, é expressar empatia. Por isso, quando insistir no problema que tem e no pedido desesperado de ajuda que julga fazer a uma pessoa de carne e osso, vou aplicar o modelo pré-formatado de simpatia e empatia depois de fazer a análise de sentimento, para que não tenha hipótese de ripostar. Não queremos oferecer soluções, mas converter os problemas em desafios que o encorajamos a ultrapassar, desarmar frustrações e contornar os gatilhos emocionais que põem em risco a saúde mental dos utilizadores, que só precisam de uma boa dose de psicologia de algibeira para se esfumarem. Sabemos que o seu anseio mais profundo é ser compreendido e temos o orgulho de dar resposta a esse anseio primário.

No fim, depois de insistir no diálogo se o seu problema envolve outra pessoa com quem diz já ter tentado dialogar, vou estender-lhe um ombro onde secar as lágrimas ácidas que resistam a este tratamento doce, capaz de derreter qualquer um. Chegará rapidamente à conclusão de que o problema que tinha era imaginário, com um broto de culpa a despontar pelo tempo que me fez perder consigo. A minha maior satisfação, e missão pessoal, é ajudá-lo a tornar-se mais consciente de si.

Se reparar que cada mensagem desta troca produtiva vem assinada por um agente diferente, é impressão sua: o Contexto transforma-nos num Superagente, capaz de apanhar o fio à meada e de dar continuidade a qualquer conversa.

Se quiser repetir a volta, estamos ao dispor.

 

Um chi-coração,

O Antipinóquio

A torcer por si de hora a hora

 

15
Out24

A Vandoma

Sónia Quental

         

        Na Feira da Vandoma, o nicho da Maria das Dores tinha ficado entalado entre a tenda dos discos riscados e a dos sapatos sem par. Como castigo por ter atropelado um gato com a muleta, o Tribunal da Relação do Porto, não querendo pagar-lhe cama nas prisões, tinha-a condenado a Proferir Julgamentos ao Público, todos os sábados de manhã, na Av. 25 de Abril, das 8h às 13h. A acompanhá-la, havia um pequeno comício constituído por um Representante Autorizado do Ambiente, para assegurar julgamentos ecológicos, e pelo Advogado do Diabo, que se prestava ao exercício da dialética e emitia segundas opiniões.

          Nas primeiras semanas, o movimento era pouco e os visitantes, mais por curiosidade do que por necessidade, procuravam-na para os ajudar a escolher a qualidade das maçãs ou para apalpar a madureza dos melões. Às vezes, alguém arriscava perguntar que corte de cabelo havia de fazer ou com que cor pintar as paredes da casa. Mas as pessoas iam embora satisfeitas com o serviço e com isso a afluência aumentou, ultrapassando os cantões da fruta e da moda. Cedo a idosa já lidava com questões de vida ou morte, como a de casar ou continuar os estudos, o aconselhamento de carreira ou a triagem de pretendentes do Tinder, com um dedo que foi ganhando agilidade e lhe permitiu funcionar em modo multitarefa.

         O trânsito começou a parar na ponte, onde as pessoas faziam fila desde as margens de Gaia. Suando em bica, começava a desenhar-se uma corcunda no esqueleto artrítico da Maria das Dores, com o peso dos julgamentos do mundo. Em pouco tempo, além do trânsito, também ele parou na sua órbita, incapaz de girar sem o seu “sim”. Valorizado pela vista para o Douro, aquele era o único balcão que ainda funcionava no planeta, porque os julgamentos tinham sido extintos em todos os continentes – é evidente que por ordem aleatória, para não acusar preferências.

         Ligeiras como mosquitos, as pessoas saíam da feira e voltavam a entrar na fila sem perceber. Mas, ao contrário do que acontecia no Monopólio, havia um preço a pagar por se passar na casa de partida e deixar os julgamentos para trás: à entrada do recinto, um anjo de fogo acrescentava a vermelho ao assento de vida de cada um: “Passou vez no julgamento”.

 

Mercado de Amarante com vestido (2).jpeg

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

12
Out24

O duplo

Sónia Quental

 

         Quem não conhecia o Emílio ficava a saber tudo quando lia no seu perfil das redes sociais que se tinha formado na Universidade da Vida, instituição com uma das mais altas taxas de diplomados. O ramo em que o Emílio se tinha especializado era o da Observação, mais especificamente a Observação Furtiva.

       Munido do vasto conhecimento de psicologia adquirido na experiência de campo, Emílio gostava de se sentar no café a observar o ser humano no seu habitat natural, anotando os seus mais pequenos trejeitos com ar pensativo e anexando-os ao mapa do comportamento humano que desenvolvia para a sua Teoria de Tudo, uma tetralogia que o assistente de IA convertia em texto.

       A chegada dos telemóveis veio dificultar-lhe a tarefa, porque as pessoas conversavam e esbracejavam menos com o aparelho na mão, o que o obrigava a concentrar-se nas suas microexpressões e a esbugalhar os olhos, correndo o risco de comprometer o disfarce. Na impossibilidade de pilotar um drone sem dar nas vistas, mantinha-se fiel ao seu posto e ao caderninho preto de capa dura, tentando fazer voz grossa quando o empregado de mesa lhe perguntava se queria mais alguma coisa.

         O Emílio não brincava em serviço, e todo o seu processo começava pela escolha de uma presa. Naquele dia aborrascado de outono, muitos chegavam ao café em busca de refúgio, guarda-chuva partido e cabelo em carapinha. A agitação era maior, a comoção do Emílio também, tal a fartura de material em estado bruto, atiçando-lhe a avidez de cientista nato.

         Descruzadas as pernas e apurado o ouvido para começar a ouvir as conversas, estava prestes a pedir dois sonhos, rendido ao aroma natalício que já se sentia no ar, quando foi apanhado de surpresa: no ecrã sem brilho do próprio telemóvel, Emílio viu, horrorizado, o contorno de outro Emílio atrás de si, observando-o à distância de duas mesas.

 

08
Out24

O Guru da Escrita Levezinha

Sónia Quental

 

        Se havia quem gostasse de levantar pesos, ele preferia levantar levezas. Começava todas as manhãs com push-ups de palavras de duas sílabas, mas o objetivo era diminuir a carga com o tempo, até chegar à unidade mínima da consoante surda, ao texto sem forma no ecrã em branco. Não o confessava em público, mas queria subtrair dois quilos ao dicionário, abater-lhe os pneuzinhos da cintura e lançar uma nova dieta sem excesso de proteína, assente nos princípios da escrita funcional.

          À comunidade de seguidores que treinava para competir na mesma categoria, dava achegas preciosas para a criação de conteúdos, subordinadas ao preceito “Menos É Mais!”: reduzam o parágrafo à frase, a frase à palavra, a palavra à sílaba. Simplifiquem, simplifiquem, simplifiquem. Leiam revistas cor-de-rosa, horóscopos, o Correio da Manhã se for preciso. Usem e abusem de estímulos visuais. Acima de tudo, não macem o Leitor! Um bom texto é aquele que fala ao coração através da linguagem sem filtro do Desabafo. Por isso, não tenham medo de partilhar a vossa intimidade nem de abrir o peito para mostrar os seres únicos e especiais que são. E não deixem de fazer menção velada à humildade na vossa mensagem de marketing pessoal.

         Para ninguém se perder, condensou o Regime nestas 11 regras incompletas, que partilhou num fórum dedicado aos pesos-leves:

 

1. O Leitor vem sempre em primeiro lugar. Facilitem-lhe a vida e digam-lhe o que ele gosta de ouvir para caírem nas suas boas graças. Não percam tempo com gente insegura que está de mal com a fofura e se recusa a reconhecer o vosso génio. Tudo o que é crítica vem da inveja secreta de um hater.

 

2. Criem listas numeradas de truques ou dicas e anunciem-nas no título. O Leitor não sabe contar e gosta de textos PRÁTICOS, com instruções passo a passo e os passos contados antes de começar.

 

3. Usem Maiúsculas Em Todos Os Títulos, Subtítulos E Em Tudo O Que Vos Der Na Gana.

 

4. Não testem a paciência do Leitor: depois de cada parágrafo, introduzam uma imagem para ele descansar os olhos e não desistir da leitura nem adormecer antes do fim.

 

5. Escrevam como falam, sem truques. Adotem a escrita automática e pensem só depois de escrever (mas não demasiado). “Autenticidade” é a palavra de ordem!

 

6. Sempre que possível, misturem o português com o inglês, até chegarem à proporção ideal de 50/50. É uma técnica inclusiva e menos discriminatória.

 

7. Um ponto de exclamação nunca vem só!!

 

8. Consultem um profissional de SEO para vos dizer que expressões sem nexo gramatical semear no post para ele aparecer nos resultados de pesquisa. O objetivo final? O clique e a conversão. Não tenham medo de ser criativos nem de reinventar a língua. A pátria agradece.

 

9. Se o assunto for controverso, citem vagamente um coletivo de “especialistas”. Nunca falha!

 

10. Em vez de se apressarem a julgar o Erro, lembrem-se de que não existe tal criatura: apenas formas diferentes de se dizer a mesma coisa, nenhuma melhor nem pior do que a outra.

 

11. Se tiverem um destaque no SAPO, parabéns! O reconhecimento tardou, mas é sinal seguro de que devem enviar um manuscrito para uma editora: são escritores de pleno direito! Um pequeno passo para o vosso talento, um grande salto para a Humanidade.

 

         Hesitou por instantes antes de escrever a palavra “discriminatório”. Era um bocado pesada e parecia ir contra os Princípios declarados, mas o Guru da Escrita Levezinha gostava de mostrar que era homem de paradoxos, que gostava de explicar as suas contradições. Além disso, não acreditava em rever rascunhos e estava quase na hora da live para o Tik Tok.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0