Nunca esquecerei o dia em que fui chamada ao gabinete de Deus. Trabalhava há anos naquele centro de formação e só lhe tinha visto a sombra em ocasiões raras, muito à distância, o que alimentava a minha natural descrença na sua existência. Quando os meus colegas, educados a andar em bicos de pés graças a um temor sedimentado ao longo de eras, me diziam que Deus, também conhecido como “o doutor fulano de tal”, tinha mandado fazer isto ou aquilo, inclinava-me a achar que era mito, uma desculpa conveniente para mandos absolutistas, de origem incerta. Mas um dia, como contei, fui convocada a um gabinete, nada menos que instalado no cimo de uma torre, por esse ser que julguei que estivesse ainda menos ciente da minha existência do que eu da sua. Foi o dia em que aprendi que Deus sabe mesmo tudo, até sobre quem tenta cobrir-se com um manto de invisibilidade, e que os meus cabelos estavam lá, naquele gabinete cinzento, contados e medidos ao milímetro.
Mesmo sentada, a figura de Deus era imponente e percebi que estava habituada a incutir um medo paralisante nos súbditos, medo indutor de respostas aleatórias e de uma boa dose daquela untura que dá brilho aos sapatos. Lá medo tinha eu, perscrutada de lés a lés por aquele olhar cortante, que parecia acusar-me de crimes que não me lembrava de ter cometido. Fiz logo ali uma recapitulação de vida, que podia muito bem estar nos seus momentos finais: terá sido aquela vez em que comi um bolinho de bacalhau antes do almoço e neguei o crime para escapar ao castigo? Ou quando cometi um erro num ditado, que estragava os 20 valores da prova global, e tentei disfarçá-lo com a borracha de apagar tinta, apenas para a professora soltar a régua raivosa no meu rabo virgem de aluna bem-comportada?... Tinha sido castigada por todos eles, por isso tentava freneticamente lembrar-me dos crimes sem castigo, que tivesse sido chamada a expiar. Sem saber, cometi ali mesmo mais um: a candura de responder com honestidade às perguntas de Deus, que, depois dos primeiros momentos de desorientação, ficou desarmado e acredito que tenha aderido à minha curta lista de fãs. Isto apesar de a recomendação que tinha para me dar ser a de usar de menos honestidade nos formulários de avaliação dos módulos.
No entanto, não foi para falar da ética duvidosa de Deus nem para invocar o seu nome em vão que fui buscar este episódio ao meu baú de tesourinhos pavorosos, mas porque aquele demiurgo omnisciente e omnipotente foi a primeira criatura em quem percebi uma desconfiança esquizofrénica, apontada como laser a tudo e todos, sem a mediação do discernimento e com o poder formidável de fazer despontar nos inocentes a culpa daninha do pecado original. O desconforto de quem ocupava o outro lado da secretária não vinha de sabermos que estávamos em desvantagem numa cadeia alimentar bem armada nem de termos aprendido na catequese que era preciso regar a semente do temor a Deus: vinha da vara glacial da desconfiança, capaz de uma ação tão devastadora quanto a mais ardente confiança.
Depois de Deus, conheci outras entidades semelhantes, e o ambiente de tensão que produziam não sofria alterações climáticas. A causa para esta doença da desconfiança não estava na falta de contacto humano ou de à-vontade social, na falta de espiões que montassem uma rede pragmática de omnipresença e nem sequer na falta de experiência: estava na escassez de uma inteligência que o atributo “emocional” só de forma imperfeita traduz. Era a falta de saber aprender com a experiência, a falta de cultivo desse discernimento que conquistou a má fama de “julgamento”: em suma, a falta de conhecimento da natureza humana. E, ironicamente, era a estratégia de compensação suprema para uma credulidade ou confiança cega inicial que, recusando encarar as trevas que envolvem o coração e as motivações humanas, escolhe o amparo inabalável da desconfiança – sem abdicar da cegueira. A segunda ironia é que a desconfiança cega tende a ser daquelas profecias autoconcretizáveis que têm a fortuna perversa de desencadear nas presas que escolhe os comportamentos mesmos de que busca defender-se, por pias que sejam as suas intenções.
Como moeda, a desconfiança vem sendo inflacionada pelo assédio dos perigos que aumentam à nossa volta, de que circulam histórias do mais puro terror. É fácil sermos empurrados para o cérebro reptiliano, ficarmos obcecados com a segurança e absortos na velha luta pela sobrevivência, que nos acena com ferramentas tecnológicas e de vigilância e com as mais mirabolantes “literacias”, que não passam de parentes pobres de uma sabedoria ancestral que se perdeu. Os anciãos de outrora, que envergavam cajados literais e simbólicos, foram substituídos pelos especialistas, que com a sua aura de legitimação nos pedem o resto de cérebro que ainda não foi colonizado ou vendido a um life coach de 25 anos.
Não querendo dar uma de Poliana, também não estou a fim de viver trancada numa torre de desconfiança que me obrigue a dar trinta voltas à chave de cada vez que queira pôr o pé de fora, a instalar câmaras de segurança, receber visitas de caçadeira na mão e sujeitá-las a um interrogatório com laivos de tortura, confissões assinadas através da coação. Nem quero ser Deus nem quero que ele seja meu fã. O filho dele dizia para sermos serpentes e pombas ao mesmo tempo. Pode ser perrice minha, mas nunca gostei de nenhuma, e esta história do hibridismo… cruzes, canhoto!
Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados