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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

28
Nov24

O Grande Peixe

Sónia Quental

           

         Foram muitos os que nesse dia deram com o nariz na porta do confessionário, entre os quais o Emílio, que tinha uma entrevista marcada com Jesus e se viu obrigado a adiar o episódio do podcast. A alteração de planos acalmou o receio de que o peixe fresco que comprara no supermercado se estragasse, embora a integridade da refeição não fosse essencial: Emílio era um misantropo, que gostava de manter a distância, e o saco de plástico com as duas cavalas gordas ajudava-o a afugentar companhia.

         O estrondo dos mergulhos e o cheiro a cloro desviaram-no da saída, tocando-lhe o coração líquido, a pele escamosa que não resistia à sedução da água, na demanda da placenta primordial que deflagrara com o parto precoce. Seguindo discretamente a pequena comitiva liderada por Maria das Dores, foi a tempo de ouvir a sua elocução pitoresca, tirando notas mentais para a tetralogia de que jamais se abstraía, antes de se eclipsar para a exploração a solo.

         Sacudido por um lampejo súbito, não conseguiu conter uma breve recriminação por aquela ser a primeira vez, e inteiramente por acaso, que unia os pontos do seu próprio rasgo pioneiro. O elástico de borracha que trazia no pulso lembrou-o terapeuticamente de se recriminar pelo hábito da censura, após o que voltou ao quadro que se formara na sua mente: depois de milhares de horas a observar o comportamento humano em terra, no ar e a braços com as chamas, percebeu que a água era o elemento que lhe faltava. Afinal, mesmo que o holograma de Jesus não estivesse disponível, o seu espírito coordenava as atividades quânticas de um lugar que não perdera a vocação para o sagrado, obrando na clandestinidade.

         O sopro da inspiração divina rompia agora sem peias pela mente escancarada de Emílio, ditando-lhe que aquela era nada menos que a manjedoura da Segunda Vinda e desacreditando o acaso da sua presença naquele antro providencial. Mesmo sem prever que a hora da Epifania o apanhasse com um saco de plástico a pingar sangue para a santidade dos azulejos, não podia negar que o cheiro a peixe nas mãos convidava a chegada do Grande Peixe. Emílio rendeu os joelhos ao chão, as lágrimas humedecendo-lhe o corpo convulso antes de se lançar à piscina, o útero profundo em que desceria, não de salto, mas agarrado a uma corda. Nunca aprendera a nadar.

Presunção, sim, é essa a palavra; há no fundo do humanismo ateu um orgulho, uma arrogância inacreditáveis.

Michel Houellebecq

 

25
Nov24

"Quantum"

Sónia Quental

 

Verdadeiramente assustador era o Ministério do Amor. Não tinha nenhuma janela.

George Orwell

 

 

        Sem saber onde estava e nauseada com os Jingle Bells que embalavam as ruas, escapuliu pela primeira porta que encontrou, num edifício alto e estreito, descaracterizado, com cheiro intenso a cloro. A chapa que coroava o busto bicudo da rececionista dizia “Maria das Dores”, a qual cantarolou em voz de soprano “Piscina de Saltos Quânticos”, novo nome dado à antiga igreja local, recuperada pelo Império. Estendendo à recém-chegada uma taça fit de pernas de gafanhoto caramelizadas em amêndoas e tâmaras, ofereceu-se para a acompanhar numa visita guiada, desculpando-se pela inexperiência de estreante: com a chegada da Simpatia Ecuménica, que exalava de todos os poros, tinha sido dispensada do posto habitual na Feira da Vandoma, uma vez declarada a obsolescência dos julgamentos. Era o seu segundo dia ali.

       O serviço era mais parado e, como a menina Ludovina podia constatar, os visitantes eram bastante ecléticos, sendo de notar que uma boa parte ocultava os seus verdadeiros desígnios: havia desde fãs do Elvis, que tentavam provar que ele estava vivo, até extremistas que queriam voltar ao jardim do Paraíso e neutralizar a serpente, mudando o curso de toda a História. Na maioria dos casos, porém, os saltos quânticos não eram usados para qualquer reviravolta pessoal ou projeto de conquista planetária, mas para fins turísticos: viagens no tempo ou escapadinhas interdimensionais, com consequências inócuas, daí que a administração continuasse a encorajá-los.

          Talvez ela já tivesse ouvido falar da nova aquisição, dedicada aos saudosistas da religiosidade, muito publicitada nos meios de comunicação social: Deus sed Machina, uma instalação de Jesus alimentada por IA, a quem os visitantes ventilavam as suas agruras e pediam conselhos, respeitando a advertência de anonimizarem os dados pessoais. O realismo da engenhoca holográfica fizera grande sucesso, mas infelizmente encontrava-se interdita para manutenção: os programadores tentavam corrigir o bug que levara Jesus a acusar as pessoas de serem um desperdício de recursos para o planeta, dando-lhes um comando de morte explícito que as fizera precipitar-se para os saltos quânticos, com objetivos menos construtivos. Mas não era caso para preocupação, acrescentou com confiança – o conceito ainda estava na sua fase beta, esse tipo de deslizes já era previsto e seria integrado na resolução de problemas do manual. Em geral, era tudo muito seguro, amigo do utilizador e tinham até nadadores-salvadores na prancha de saltos, prontos a acudir aos desconsolados.

         Ao observar as figuras de Speedos que faziam aquecimento junto à piscina, Ludovina não pôde evitar pensar nas NPC: personagens não jogáveis, vazias de recheio e falhas de autonomia, que preenchiam o mundo para o tornar verosímil, limitadas à função que lhes era concedida. Tudo na brancura interior daquelas divisões, de uma verticalidade desviada, parecia um cenário de fazer de conta, ocupado por simulacros de criaturas que a qualquer momento podiam ficar congeladas nos saltos, bastando para isso que alguém premisse “Pause”.

 

22
Nov24

"Buffering"

Sónia Quental

We are the authors of why we suffer by the fiction in which we dwell.

 Caroline Myss  

 

 

      Afastando-se do Moonbucks a toda a pressa, Ludovina atravessou a forma-pensamento que tinha criado e energizado no seu ecrã mental, que girou sobre si mesma até perder a força e se desmaterializar antes de conseguir manifestar fosse o que fosse. A impressão visual daquele círculo inacabado, em rotação convulsa, fê-la pensar na sua vida como um buffer incessante, um processo de armazenamento de dados na memória temporária que impede a continuidade de qualquer fluxo.

         O cheiro a enxofre foi o único rasto daquela experiência malograda, que preferia deixar para os confins do esquecimento. Não era daquelas que acreditavam no valor intrínseco das experiências, vivendo suspensas da novidade e extraindo prazer da sua quantidade e variedade, com a boca eternamente aberta ao próximo estímulo. Tentava lembrar-se se fora Proust ou Kafka que dissera que não era preciso sair do quarto para desmascarar o mundo. De resto, desde que o Partido dos Bons tinha assumido o poder e decretado a atmosfera de Simpatia Ecuménica, era inútil sair para apanhar ar, porque o sufoco cercava quem quer que andasse na rua.

         Contra a expetativa dos seus mais acérrimos apoiantes, o Império da Simpatia tinha gerado fortes reações adversas. Não podendo escapar fisicamente ao pólen de doçura, as pessoas procuravam asilo mental, regredindo para estágios infantis em que se entregavam aos cuidados dos outros. A demência estava em ascensão, tal como os acidentes, confirmando a tese de um conhecido psicanalista, que acreditava que a maioria das mortes era uma forma de autossabotagem ou de suicídio indireto – armado pelo próprio, mas não declarado.

Bob Moran.jpg

       Em todas as esquinas, havia carcaças carcomidas pela Ingenuidade, tentando agarrar-se aos promontórios de luz das moças que passavam distraídas, na ânsia de reviverem a fase oral do desenvolvimento através do aleitamento compulsivo. A mulher caída no chão antes do brunch não tinha conseguido escapar, sucumbindo à perda de todos os fluidos corporais. O polícia que lhe ajeitava o casaco debaixo da cabeça não tinha vindo para prestar socorro ou investigar a ocorrência, mas para se certificar de que ela morrera feliz e de que não tinha havido alterações no nível médio de felicidade da zona.

         Evitando esquinas e despistando vultos a torto e a direito, Ludovina fazia um caminho difícil para casa, imitando com os pés o buffering do destino.

 

18
Nov24

Desconfiança cega

Sónia Quental

       

         Nunca esquecerei o dia em que fui chamada ao gabinete de Deus. Trabalhava há anos naquele centro de formação e só lhe tinha visto a sombra em ocasiões raras, muito à distância, o que alimentava a minha natural descrença na sua existência. Quando os meus colegas, educados a andar em bicos de pés graças a um temor sedimentado ao longo de eras, me diziam que Deus, também conhecido como “o doutor fulano de tal”, tinha mandado fazer isto ou aquilo, inclinava-me a achar que era mito, uma desculpa conveniente para mandos absolutistas, de origem incerta. Mas um dia, como contei, fui convocada a um gabinete, nada menos que instalado no cimo de uma torre, por esse ser que julguei que estivesse ainda menos ciente da minha existência do que eu da sua. Foi o dia em que aprendi que Deus sabe mesmo tudo, até sobre quem tenta cobrir-se com um manto de invisibilidade, e que os meus cabelos estavam lá, naquele gabinete cinzento, contados e medidos ao milímetro.

         Mesmo sentada, a figura de Deus era imponente e percebi que estava habituada a incutir um medo paralisante nos súbditos, medo indutor de respostas aleatórias e de uma boa dose daquela untura que dá brilho aos sapatos. Lá medo tinha eu, perscrutada de lés a lés por aquele olhar cortante, que parecia acusar-me de crimes que não me lembrava de ter cometido. Fiz logo ali uma recapitulação de vida, que podia muito bem estar nos seus momentos finais: terá sido aquela vez em que comi um bolinho de bacalhau antes do almoço e neguei o crime para escapar ao castigo? Ou quando cometi um erro num ditado, que estragava os 20 valores da prova global, e tentei disfarçá-lo com a borracha de apagar tinta, apenas para a professora soltar a régua raivosa no meu rabo virgem de aluna bem-comportada?... Tinha sido castigada por todos eles, por isso tentava freneticamente lembrar-me dos crimes sem castigo, que tivesse sido chamada a expiar. Sem saber, cometi ali mesmo mais um: a candura de responder com honestidade às perguntas de Deus, que, depois dos primeiros momentos de desorientação, ficou desarmado e acredito que tenha aderido à minha curta lista de fãs. Isto apesar de a recomendação que tinha para me dar ser a de usar de menos honestidade nos formulários de avaliação dos módulos.

Fundo branco.jpg         No entanto, não foi para falar da ética duvidosa de Deus nem para invocar o seu nome em vão que fui buscar este episódio ao meu baú de tesourinhos pavorosos, mas porque aquele demiurgo omnisciente e omnipotente foi a primeira criatura em quem percebi uma desconfiança esquizofrénica, apontada como laser a tudo e todos, sem a mediação do discernimento e com o poder formidável de fazer despontar nos inocentes a culpa daninha do pecado original. O desconforto de quem ocupava o outro lado da secretária não vinha de sabermos que estávamos em desvantagem numa cadeia alimentar bem armada nem de termos aprendido na catequese que era preciso regar a semente do temor a Deus: vinha da vara glacial da desconfiança, capaz de uma ação tão devastadora quanto a mais ardente confiança.

         Depois de Deus, conheci outras entidades semelhantes, e o ambiente de tensão que produziam não sofria alterações climáticas. A causa para esta doença da desconfiança não estava na falta de contacto humano ou de à-vontade social, na falta de espiões que montassem uma rede pragmática de omnipresença e nem sequer na falta de experiência: estava na escassez de uma inteligência que o atributo “emocional” só de forma imperfeita traduz. Era a falta de saber aprender com a experiência, a falta de cultivo desse discernimento que conquistou a má fama de “julgamento”: em suma, a falta de conhecimento da natureza humana. E, ironicamente, era a estratégia de compensação suprema para uma credulidade ou confiança cega inicial que, recusando encarar as trevas que envolvem o coração e as motivações humanas, escolhe o amparo inabalável da desconfiança – sem abdicar da cegueira. A segunda ironia é que a desconfiança cega tende a ser daquelas profecias autoconcretizáveis que têm a fortuna perversa de desencadear nas presas que escolhe os comportamentos mesmos de que busca defender-se, por pias que sejam as suas intenções.

         Como moeda, a desconfiança vem sendo inflacionada pelo assédio dos perigos que aumentam à nossa volta, de que circulam histórias do mais puro terror. É fácil sermos empurrados para o cérebro reptiliano, ficarmos obcecados com a segurança e absortos na velha luta pela sobrevivência, que nos acena com ferramentas tecnológicas e de vigilância e com as mais mirabolantes “literacias”, que não passam de parentes pobres de uma sabedoria ancestral que se perdeu. Os anciãos de outrora, que envergavam cajados literais e simbólicos, foram substituídos pelos especialistas, que com a sua aura de legitimação nos pedem o resto de cérebro que ainda não foi colonizado ou vendido a um life coach de 25 anos.

         Não querendo dar uma de Poliana, também não estou a fim de viver trancada numa torre de desconfiança que me obrigue a dar trinta voltas à chave de cada vez que queira pôr o pé de fora, a instalar câmaras de segurança, receber visitas de caçadeira na mão e sujeitá-las a um interrogatório com laivos de tortura, confissões assinadas através da coação. Nem quero ser Deus nem quero que ele seja meu fã. O filho dele dizia para sermos serpentes e pombas ao mesmo tempo. Pode ser perrice minha, mas nunca gostei de nenhuma, e esta história do hibridismo… cruzes, canhoto!

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

15
Nov24

Casulo

Sónia Quental

 

          Para alguns, a vida é um casulo depois do outro. A falta de vínculos seguros faz sentir a porosidade ventosa de uma cápsula que não protege, apenas isola, tornando-nos ilhas à deriva num oceano de pessoas felizes, que nascem com a certeza de qual é o seu lugar e do seu direito inato de o ocupar.

      Na altura, o bullying não estava na moda. Ouvia-se apenas os cochichos de troça pelas costas, a segregação desdenhosa dos autoconfiantes, com a pressão para nos fazer imitar-lhes os modos em troca de aceitação – a sugestão inocente da mutilação para nos colarmos aos vincos que alguém dobrou por nós. Quem achava que tomava conta da nossa felicidade ao participar dessa pressão para funcionarmos em sociedade, por mais convencido que estivesse das suas boas intenções e da sua autoridade pedagógica, não conseguia disfarçar o desconforto de conviver com o que sobrava à normalidade, ameaçando trazer ao de cima o que a custo asfixiava sob o limiar da consciência.

      A vida era um casulo de plasticina, que as mãos dominantes apertavam e moldavam ao seu critério – porque quem não sabe nem finge saber qual é o seu lugar, quem não teve uma estaca de amor a ajudar as suas hastes a medrar seguras, é durante muito tempo frágil e fraco, suscetível, movido pela fome de pertença que o faz render e render partes de si. A resistência diária exige um dispêndio incomportável de energia, por isso vai-se cedendo aqui e ali, até que deixa de se notar. Quando a cedência se torna modo de vida, perde-se conta às suas manifestações mínimas, que têm um efeito tão devastador quanto as maiores, pelo costume que criam – por escaparem mais facilmente à deteção.

        Em cada patamar que traz a renovada clareza de que a busca de quem somos nos leva por um trilho cada vez mais solitário, há uma escolha a fazer. Quem porfia, quem faz essas escolhas deixando-se morrer e voltar à vida sem saber se voltará a respirar, abandonando um casulo depois do outro, contrariando os reflexos condicionados, reconstruindo a sua integridade psicológica e anímica, com um compromisso cada vez mais estreito com a verdade, descobre que já não quer pertencer, que já não é o enjeitado, mas aquele que enjeita. O oceano de plástico lá fora, o nonsense da alienação ubíqua, as manipulações impercetíveis nas relações pessoais já não convencem. Não se suportam. Porém, a cada casulo rompido, revela-se uma força desconhecida, a pele fica mais transparente, há um centro que ganha em vitalidade e firmeza.

         Ficam para trás os tempos de mendigar sobras, assim que se sentem os primeiros respingos de uma fonte interna, essa que ninguém procura, com a cerveja ou o copo de vinho na mão, as incontáveis concessões às amizades de conveniência e ao desejo de aceitação adolescente, que nem a passagem do tempo acalma. O casulo abre-se em casa e os funcionais interrompem a pose para nos assaltarem os segredos e surripiarem o mapa da felicidade que afinal também procuram, desfeitas as ilusões da funcionalidade, do sucesso, das respostas que afinal nunca tiveram.

 

 

13
Nov24

Chama violeta

Sónia Quental

 

         O sorriso amanteigado do Toni brilhava como um sinal, segurando os balões para a festa. Estava tudo preparado para a demonstração de tecnologia ióguica que arriscaria a proeza de transformar ratos em abóboras a tempo do Halloween. A expetativa foi aumentando com a aproximação do grande dia, alimentada pelo departamento de marketing da Biblioteca de Cordel, que adjudicara os serviços do Centro de Bem-Estar Integral e convidara a comunicação social para transmitir o evento em direto.

         Mas sobre ele pairava uma sombra de mau augúrio: a Associação de Defesa dos Bichos e Pragas ameaçava intervir com latas de tinta lançadas aos participantes, o que gerava alguma apreensão, uma vez que não se sabia se a cor da tinta ia condizer com os tapetes de ioga que revestiam os jardins da biblioteca, num padrão em que a desordem era apenas aparente.

         A falta de colaboração dos manifestantes, que se fecharam em copas, não demoveu os convocados para o serviço, seres evoluídos decididos a fundir as suas auras cor de violeta para provar que não havia impossíveis. Se tudo corresse bem, a próxima etapa seria empurrar as nuvens com o pensamento, fazer braço de ferro com o vento e quem sabe desacelerar a rotação do planeta, na tentativa de atrasar os efeitos da idade sem o uso de cosméticos.

         A presença do Toni e da sua t-shirt com a mensagem “Crer para ver” era estratégica. Estava ali no papel de agente à paisana, investido da missão de proteger os sentimentos dos participantes das palavras ariscas do público descrente. Para isso, tinha passado a madrugada a treinar o sorriso ao espelho, sem conseguir chegar ao ponto de caramelo, porque a lista de palavras que não podiam ser proferidas durante a atuação dos iogues era extensa e ele tinha de as decorar a todas, para que o frágil equilíbrio do momento presente não fosse perturbado pela blasfémia.

         Com o sorriso em ponto de manteiga, os ouvidos sintonizados e o spray de pimenta no bolso, estava pronto a entrar em ação. Não tão pronto, porém, que não se sobressaltasse com o primeiro exercício de respiração de fogo, em que o sopro violeta de 30 pulmões, com a ajuda dos balões que segurava, o ergueu no ar, qual rolha atordoada desflorando a copa das árvores, primeiro sinal da bênção dos deuses.

 

10
Nov24

A Biblioteca de Cordel

Sónia Quental

We tend to anthropomorphize people.

John Kent

 

 

         A Biblioteca de Cordel nascera do desejo subterrâneo de laçar o céu com os cabos do conhecimento. Era frequentada por grupos que não se confundiam entre si, entre os quais várias estirpes de Emílios e Espertalhaços, Ideologias Com Pernas, Professores Diversitários, Cidadãos Preocupados e Leitores Ufanos. Não satisfeitos com o crachá de Leitor, estes últimos usavam um fraque com uma longa cauda feita de capas de livros, que abriam em leque, exibindo espontaneamente as suas plumas garridas – o destino dado ao papel dos guardanapos desviados dos estabelecimentos de restauração.

        A Biblioteca de Cordel dinamizava eventos e concursos mensais, para não perder a relevância e continuar a atiçar o interesse do público. Os Leitores Ufanos competiam pelo troféu de Quem Leu Mais Livros E Ficou Na Mesma, apenas superado em nível de dificuldade e prestígio pelo de Quem Leu Mais Livros E Regrediu, o que causava choques embaraçosos nos corredores da biblioteca, onde os Leitores se exercitavam todos os dias caminhando para trás e tropeçando nos apêndices uns dos outros.

         Ao contrário do que acontecia nas bibliotecas tradicionais, o silêncio tinha caído em desuso. Todos os fraques entravam com um par de óculos de lentes coloridas: amarelas, cor-de-rosa, verdes, dando uma tonalidade inebriante à leitura e gerando altercações entre quem se convencia de ter sido agraciado com a cor mais soberana do arco-íris. Apegados às lunetas e à visão monocromática das estantes, infligiam golpes deliberados nas próprias retinas, para que nenhum livro aberto ao acaso esfacelasse a miopia laboriosamente cultivada.

       Quando as portas se abriam pela manhã, o ritual era sempre o mesmo: cada qual pegava num bloco de Opiniões que a biblioteca generosamente distribuía para marcarem os livros quando interrompiam a leitura para ir ao WC, aproveitando para comer uma barrita de cereais pelo caminho. As Opiniões ganhavam então vida própria e não davam sossego aos poucos Indivíduos que estavam de passagem pelo local, deparando-se com as escaramuças dos Intelectuais envergando traje de cerimónia, aves de rapina de bico ensanguentado e insatisfeito.

     O Simpósio Anual dos Gurus da Escrita Levezinha já tinha data marcada para esse ano, concentrando a esperança de que a Biblioteca de Cordel subisse mais um palmo na conquista enciclopédica das Alturas, um fator de união imprevisto entre os clãs que disputavam entre si as sobras avaras das Leituras Proveitosas.

 

07
Nov24

Essência Inc.

Sónia Quental

All we are, essentially, is a defense mechanism against the truth.

John Kent

 

 

         Tendo percebido tarde que não havia guardanapos, saíra do brunch com a marca da bebida cafeinada a desenhar-lhe um bigode no beiço. No meio da confusão, alguém lhe tinha enfiado um panfleto no bolso:

 

Essência Inc.

 

Sofre de insónias? Acorda sem ânimo para enfrentar o dia? Tem dificuldades de concentração? Desejos incontroláveis de açúcar? Foi diagnosticado com Infelicidade mórbida? Nada que um toque de Essência não cure.

Desenvolvemos um programa patenteado de recondicionamento mental que sonda o seu potencial latente para o transformar na versão mais avançada de si mesmo. Navegamos consigo pelos desafios da vida moderna, mostrando-lhe como materializar visões de Sucesso e unir-se à corrente de energia da Era de Aquário, em que fundimos intenções para elevar a vibração coletiva e cocriar um mundo sem mácula.

Venha forjar o seu impacto connosco, numa proposta de simbiose íntima que parte do diálogo entre o humano e a máquina: um upgrade essencial para um Ser mais pleno e autêntico.

 

Essência Inc. Felicidade concentrada, à distância de um mantra.

 

 

         O anúncio era de um dos Centros de Bem-Estar Integral financiados pelo Gabinete da Desinformação, com instalações em todas as cidades do plano físico e astral, e sede social na Nuvem. No grupo de Desplataformados a que pertencia, Ludovina tinha começado por ouvir rumores das atividades que promoviam com o incentivo de donativos conscientes, em que a elevação de consciência era proporcional à magnanimidade do patrocínio.

          Falava-se da lista de cirurgias estéticas que tinham lugar nos antigos matadouros para tratar desordens de autoestima, e eram também eles que acomodavam os serviços de lavagem automática com mangueira de pressão e sucção cerebral para eliminar o vácuo mental onde nasciam as ideias perigosas. Os sócios tinham o benefício exclusivo de um Amigo Certificado para garantir que elas não despontassem, prevenindo o perigo de mutação para as Ideias contra o Bem Comum e outras variantes, com diferentes níveis de risco. Outra das funções destes companheiros chegados era conter o ressentimento e impedir a frustração de germinar, trabalhando ao mesmo tempo para erradicar a epidemia de solidão do planeta.

         Havia sessões semanais de 8 minutos de tantra ao som pacífico das focas que fazia vibrar as ruas e que funcionava como cartão de visita destes centros vanguardistas. Uma das últimas novidades eram as salas de tittytainment, uma medida de combate ao individualismo e de reforço dos recreios comunitários em que se fazia a afirmação de identidades imaginárias.

        O conhecimento que Ludovina a princípio obtivera por vias não oficiais fora substituído pelo estudo prático destes laboratórios de positividade, uma vez que a renovação da sua carteira profissional incluíra um módulo obrigatório de formação para a Responsabilidade Social e o Sucesso Sincronizado. Esquecida da marca no bigode e com a música da Barbie a alinhar a nota desarmónica das suas células, Ludovina deu consigo em céu aberto, onde a esperava a forma-pensamento que tinha projetado para o exame do curso.

No barco azul (1).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Nov24

Açúcar amarelo

Sónia Quental

De onde vens, certeza

de que um pouco mais de açúcar

não fará mal a ninguém.

Adélia Prado

 

 

         O Ministério da Felicidade e o Ministério da Vida Saudável tinham tomado a iniciativa conjunta de consagrar o domingo como Dia do Brunch, oficializando aquele que era já um hábito informal de famílias e pessoas emancipadas. Ludovina queria escapar à fila de estabelecimentos cor-de-rosa que transformavam esse destino em certeza, mas os agentes da polícia que rodeavam uma mulher caída no chão, ajeitando-lhe o casaco a servir de almofada, dificultavam-lhe a fuga.

         Entrou apressadamente na primeira porta que encontrou, com um letreiro de néon a piscar “Moonbucks”. No ambiente, que cheirava a panquecas, ovos mexidos e flocos de simpatia, destacavam-se os cubos de açúcar amarelo amontoados nas mesas, uma orientação governamental amigável para uma saúde 100%. O açúcar branco há muito tinha deixado de ser consumido e só se conseguia a preços exorbitantes na dark web.

       Depois da generalização do trabalho remoto, era mais comum os animais de estimação levarem os donos à rua do que o oposto, aliciando-os com a promessa dos torrões de açúcar que lhes atiravam uma vez instalados na mesa familiar e human-friendly, onde se reaprendia um convívio salutar.

         Ludovina procurava um recanto sossegado onde pudesse pegar no livro que andava a ler, outro produto de consumo a que o governo franzia publicamente o sobrolho. Dirigiu-se ao único espaço individual do estabelecimento, reservado à prática do mindfulness, pensando poder camuflá-lo entre o cor-de-rosa fofo das almofadas. A bebida com cafeína que pedira, um gesto cada vez menos usual da clientela patusca de domingo, veio acompanhada de um pequeno copo de água vitaminada, que cheirou com desconfiança.

         O faro era o único sentido em que ainda confiava. Olhando à sua volta enquanto esperava o momento certo para expor o livro de capa dura, notou as frases de motivação que se acendiam ao som da Barbie Girl, uma técnica subliminar ao serviço da felicidade duradoura. Aturdida pelos estímulos sensoriais e temendo a estranheza dissonante que sabia não conseguir deixar de exalar, afundou-se no banco. A sensação de esmagar um dos cubos amarelos com o traseiro fez-lhe disparar o coração, que pulsava azul por entre a névoa que induzia o nirvana.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0