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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

31
Jan25

Made in China

Sónia Quental

Feita a encomenda numa das maiores lojas de comércio eletrónico, chegou a surpresa: o produto vinha da China. Pode ter sido a contrariedade a toldar-me a visão, mas comecei a ver chinesices por todo o lado.

Aquela obra premiada e muito recomendada de uma jovem escritora catalã, que acabei por ceder a comprar: ginástica chinesa. Bonita de se ver, mas mais nada.

A autobiografia do papa Francisco, com o título a dizer Esperança: chinesada de mau gosto.

Os canais de streaming, onde não há série nem filme que não meta cena de homossexualidade: chinesice pegada.

A chinesice da esquerda e da direita, da política e dos políticos que ainda há quem acredite que vão salvar o mundo. As opiniões, as redes sociais, os podcasts, o entretenimento barato e o analfabetismo que se vê em tantos blogues. A IA a querer entrar por todas as frestas, com um exército de assistentes, acólitos e vendedores sem escrúpulos: chinesada da grande.

Os elogios mútuos, os falsos humildes, os penitentes vaidosos, as máscaras ambulantes, a mentira que galga de trotinete estradas, passeios, pessoas, mãos, olhos, bons dias, os beijinhos que um dia a terra cuspiu e que são tempero para tudo, as regateiras do mercado a chamarem-me “querida”… tudo made in China.

Lançada que estava neste inventário furioso, a memória prega-me uma partida, abrindo a janela para a cena remota em que uma colega da faculdade diz que falou de mim ao namorado:

- É que pareces uma chinesinha.

 

25
Jan25

O Pinga-Amor

Sónia Quental

 

Cavaleiro de Copas.png

O Pinga-Amor gostava delas tenrinhas, inocentinhas, praticamente sem trinca. Era para elas que guardava teias de aranha no bolso, material extensível, que lançava, aracnídeo macho, sobre as florzinhas viçosas que se passeavam sem saber que o eram. Pigarreando para expurgar a voz de intenções segundas, o Pinga-Amor chegava-se e colava-se-lhes todo, calculando de cabeça que alminhas pediam uma abordagem mais vagarosa. E era todo vagares. Mas o seu repertório, que cabia num caderninho de bolso, repetia-o sem variação, prometendo-lhes a capa da Vogue entre a meada de elogios, despistando-as com lições solenes sobre a importância do relaxamento ou discursando sobre o correr da vida, qual Epicuro com a auréola mais cândida do desapego. Sobre ânimos exaltados, vertia com o mesmo vagar cerimonial a fleuma adquirida após uma existência dedicada aos prazeres do estômago e da camaradagem.

         De bigode aperaltado, despido de preconceitos e pudores, insinuava ideia semelhante nos cerebrozinhos encantados com os seus galanteios, que se iam fechando na teia, não por falta de entendimento, mas por se acharem no dever de retribuir mesuras. A valentia com que o Pinga-Amor se atirava para a frente de batalha na caça de talentos era confirmada pelas substâncias estranhas que injetava no organismo, que não o impediam de contrair as moléstias contra as quais se inoculava, cujo sintoma persistente eram as evacuações intestinais. Às jovenzinhas deslumbradas, gostava de exibir as marcas das agulhas nos bíceps descaídos, enquanto lhes espremia os pecados mais íntimos, prometendo-lhes o sigilo do túmulo com a mesma convicção com que outros vendiam a continuidade no Além.

         No labirinto do Império, era figura de certa dignidade, chefiando o Gabinete das Manobras de Diversão, onde, além das teias que fazia para uso pessoal, tecia cortinas de fumo com a mesma habilidade de dedos com que as moiras enrolavam os destinos universais. Fosse pela presença constante de cortinas e cantigas, fosse por qualquer predisposição impossível de contrariar, gostava de adormecer a ouvir a história da Carochinha, sem saber que ele era a mosca na teia, o ratão apanhado nas tramas que urdia para pescar anjinhos doces nas suas redes pinceladas de mel.

 

Imagem: Tarot Cigano

 

23
Jan25

Espadas, oito

Sónia Quental

8 de Espadas.png

À refeição, davam-me os calores na barriga e eu era obrigada a destapá-la. Mesmo sem poder, comia de barriga à mostra, o sítio exato onde me atacavam os calores que mais ninguém tinha. Antes de ser proibido chorar à mesa, era proibido mostrar a barriga e deixar comida no prato, ainda que desse vómitos. Foi assim que comecei a apanhar e a guardar no fundo dela toda a sorte de coisas que não o alimento, por falta de ventilação, entalada em mordaças que só me seguraram por décadas.

Entre a barriga e a garganta, esganando o coração, ficaram os frutos podres e as sementes boas, a torrente de palavras ralhadas quando eu escrevia e gostavam muito, mas só de algumas coisas. Mazinha não podia ser, e as minhas composições faziam as pessoas chorar e não era de alegria. Só não choravam quando eu escrevia para a escola redações e poemas sobre a mãe e era tudo mentira. A verdade era feia. A verdade não era para se dizer – era para enfiar na barriga e aferrolhar no silêncio. A verdade cheirava a bolas de naftalina.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

19
Jan25

Vícios

Sónia Quental

         Por motivos que pouca importa esmiuçar, tenho-me dedicado à leitura de manuais de instruções de frigoríficos, que fizeram mais por mim do que dizer-me que devia descongelar o meu antes que sejamos ambos tragados pelo gelo.

            O pasmo não foi pequeno ao ler as advertências para não se utilizar um secador de cabelo para secar o interior do frigorífico nem pôr lá dentro velas acesas para remover maus odores – o que sugere que ambas as proezas já foram tentadas. A ênfase que a repetição dá ao pedido de não deixar crianças entrar para o frigorífico ou para dentro das gavetas semeou o seu tanto de desassossego: sabendo embora que muitos pais gostariam de fazer freeze à prole destravada, não supus que recorressem a meios tão extremos e literais para o conseguir.

        Empolgada que estava com todas estas aprendizagens e com o português escorreito do texto, eis que tropeço numa daquelas pedras que são a razão de ser de poemas como “No meio do caminho”, de Drummond de Andrade: o emprego infatigável do pronome demonstrativo “o mesmo”:

 

“Não limpe o aparelho pulverizando água diretamente sobre o mesmo”.

“Mantenha todos os materiais da embalagem fora do alcance das crianças, porque os mesmos podem ser perigosos para elas”.

 

         Contrariamente ao que defendem alguns, a formulação não é erro, mas uma deselegância exacerbada pela falta de comedimento no uso, a que aderem até os que mais insistem na simplificação do discurso. Mais universal do que o verniz das unhas que une mulheres de todos os estratos sociais, “o mesmo” ouve-se e lê-se em toda a parte, em substituição de formas mais simples e naturais como “ele/ela”, “este/esta”, “dele/dela”, “seu/sua” ou da simples omissão, como se aconselharia no segundo exemplo acima e era prática comum até um passado recente.

        Senha não reconhecida de igualdade social e nivelamento cultural, infelizmente para baixo, este verdadeiro trambolho tanto se ouve em conversas de café como se lê em traduções literárias, de profissionais que mostram não ser imunes aos modismos da língua. É um dos exemplos infelizes do contágio psíquico que ocorre não só no campo das ideias, mas da linguagem, mostrando como pouco filtramos e refletimos sobre o que recebemos e propagamos. Pior do que isso, só mesmo rematar com “LOL”.

 

15
Jan25

Vou ali preocupar-me

Sónia Quental

 

No sólo de miedo vive el hombre. Aunque mucho hijo de puta nos quiera alimentar de eso constantemente. 

Isra Bravo

 

 

Captura de ecrã 2025-01-15 193408.png

A Preocupação era uma presença palpável na casa, o animal de estimação que não tínhamos, crescendo em tamanho ao mesmo tempo que a família aumentava em largura e o espaço encolhia. Mais vezes se esqueceram de mim do que da Preocupação, um colete salva-vidas sombrio que ia de férias ia connosco, não fôssemos afogar por excesso de descontração.

Por fim, quando à custa de tanta engorda a Preocupação atingiu proporções descomunais, começou a entranhar-se na pele, a infiltrar-se no ADN, até se instalar num pano de fundo mental, um véu que cobria tudo em que tocava. Eu, que era capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo, conseguia ter uma Preocupação familiar em funcionamento automático, uma defesa supersticiosa contra tudo o que pudesse correr mal, com atualizações diárias de todas as calamidades iminentes e prováveis.

          Com o tempo, e não satisfeita com a capacidade sobrenatural de pairar sobre tudo, a Preocupação começou a querer ser mais do que uma omnipresença fantasmagórica, exigindo tratamento de parente vivo. Comecei a ter de parar o que estava a fazer para me preocupar ativamente. Não posso falar: estou preocupada. Mais do que manifestar o poder de mobilização que as vedetas têm quando atravessam a passadeira vermelha, a Preocupação era como um buraco negro, que tudo sugava e contagiava de negrura.

          Encarei sempre com suspeição as pessoas despreocupadas. Invejava-lhes a leveza do otimismo, a facilidade com que sacudiam aquela caspa de ansiedade que não me largava, e tudo lhes corria bem na imprudência de não usarem colete salva-vidas. Por mim, quanto mais me preocupava, mais carregado me parecia o horizonte, mais motivos de preocupação tinha. Apesar dessa inveja, era fácil associar a despreocupação à superficialidade, porque verdade é que conheci muitos raios de sol sem grande coisa atrás da testa, sempre prontos a declamar clichês cintilantes nos momentos mais escusados.

         Já a sabedoria despreocupada é uma conquista menos comum: captar alguma coisa do que é a vida e escolher abdicar da preocupação sem naufragar é outra loiça. Não se trata da simples capacidade de gerir as emoções nem de controlar os pensamentos. Para deixar a Preocupação definhar e a expulsar do espaço que ocupou furtivamente, precisamos de ter bem estabelecido em que é que confiamos, o que queremos alojar em nós, uma atividade que merece mais a nossa energia do que ceder à Preocupação, que mais depressa nos leva ao fundo do que nos mantém à tona de água.

         Mais poderia dizer, mas hoje prefiro a ligeireza e está na hora de terminar: tenho de ir ali preocupar-me (ou não).

 

Imagem: Tarot Illuminati

 

11
Jan25

"Nox, noctis"

Sónia Quental

‘Do you consider people to be basically sophisticated animals?’

With a straight face, Rose answered: ‘No, they’re not that sophisticated’. 

John Kent

 

 

 

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       As noites não eram de veludo para todos. Para alguns, tinham a rugosidade da serapilheira; para outros, eram quebradiças e ruidosas como o celofane dos rebuçados, sem o rebuçado dentro. Certo era que poucos dormiam durante o período noturno e que a insónia era a regra que o Império calava quando acendia a iluminação de rua.

       Duas da manhã. Do lado minguante da meia-lua do prédio de apartamentos onde morava, o Emílio experimentava um par de collants cor de beringela, com efeito escama, enquanto tentava enfiar os dois pés no mesmo sapato de salto alto. Havia duas coisas que sempre sonhara ser: sereia e super-herói e, num rasgo de génio, percebeu que podia ser ambas. O único equipamento que lhe faltava para trazer à tona a sereia que havia em si era o fato de super-herói. Já tinha um aquário de tamanho humano, hermético e espelhado, que construíra com as próprias mãos com materiais que recolhera dos contentores de lixo. Às duas da manhã de segunda-feira, o Emílio praticava o equilíbrio e a delicadeza diante da superfície espelhada. Declamava de improviso um poema a que dera o nome de “Crateras da lua”, expressando o romantismo atormentado que precisava de espremer todas as noites do coração flagelado pelo Cupido, com a mesma sofreguidão com que as mães de recém-nascidos bombeavam o leite orgânico para não encaroçar.

          Do lado crescente da meia-lua, o Toni era dos poucos que dormiam um sono inquieto. Fazia o seu treino de cárdio num pesadelo onde fugia de um instrutor de ioga. Satisfeito com o volume de transpiração e o número de passadas, só não contava com a casca de banana que o fez estatelar-se no chão quando já levava uma boa margem de vantagem. Ao levantar-se para matar a sede e apagar qualquer vestígio traumatizante da respiração de fogo, pensou na Ramona, a única mulher que o amava com amor de mãe. Com grande pena sua, as mãos trepadeiras com que fora abençoado tinham sido prontamente repelidas pela Ludovina durante a massagem da tarde. Não se podia esquecer de ligar à Ramona para marcar a sessão de sadomasoquismo e reparar os danos à autoestima, antes que se tornassem irreversíveis.

          No T0 da ponte invisível que unia as duas metades desavindas da lua, o Leitor Ufano aproveitava as horas da madrugada para tricotar uma camisola vintage com os seus novelos de cordel. A rotina continuava com os remates à baliza na varanda, um ensaio intensivo para o próximo confronto com os Aferradinhos. Nas três horas de sono que dormia, sonhava com notas de rodapé e letras miudinhas.

         À mesma hora funesta, a Miss Magnética fazia um lançamento de tarô para a Ramona, que tinha marcado uma consulta urgente depois de ter sido atingida com um novelo de cordel caído do céu, que lhe ficara preso ao cabelo. A combinação da Lua, do Diabo e da Torre fez a intuitiva arregalar os olhos para além da conta. Talvez tivesse sido o movimento súbito das pestanas em caracol a apagar a chama das velas, uma explicação perfeitamente natural para um fenómeno que a superstição poderia atribuir ao paranormal. A sua tenda inteligente, porém, não perdeu tempo a interpretar os sinais de fumo e a ativar o alarme sonoro: um grito de loba agudíssimo que a Maria das Dores tinha gravado num biscate para a empresa de alarmes Tique e Toque, que provocou um pequeno abalo sísmico na rua, onde uma Ramona espavorida corria com o empeno mal-azado do fato de cabedal.

         No pequeno anexo ao lado da Piscina dos Saltos Quânticos e ainda com os tampões nos ouvidos, a Maria das Dores tinha terminado a lição de canto lírico e enfiava a touca para saltear os grilos do rolinho primavera que ia levar para o trabalho no dia seguinte. Pelo sim, pelo não, achou melhor juntar-lhe uma farofa de formigas pretas, para aproveitar a matéria-prima do quintal – gostava de carregar na proteína.

        Ludovina era a única que dormia indiferente ao alarme que fazia balançar a rua, o corpo flutuando com uma leveza que não se importava de sustento nem dos três centímetros que a cama se moveu durante o sono. O toque da noite era de algodão.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

07
Jan25

Reler

Sónia Quental

- ou dos malefícios da leitura

 

When a person picks up a book to read, it is usually for some purpose: to while away an empty hour, for pleasure, for information, to find the answer to some problem, to fill an emptiness within, or to seek to understand the meaning of life. What is your purpose in reading this book?

 

         É com estas palavras que Lorraine Sinkler abre o prefácio da obra The Alchemy of Awareness, biografia de Joel S. Goldsmith, curador e místico do século passado – outro dos grandes autores largamente divulgados no Brasil, a que as nossas fronteiras editoriais ainda não deram passagem.

         As reflexões que tenho esboçado intimamente sobre o real valor da leitura, que encontraram um primeiro incentivo nas palavras de Sinkler e um eco de longa data nas de diferentes vultos do mundo espiritual, foram, uma vez mais, corroboradas por Theodore Dalrymple num dos últimos títulos dados à estampa: On the Ivory Stages. Neste compêndio de pensamentos inspirados pela leitura, o ensaísta britânico evoca três escritores que relevaram os prejuízos do excesso dela: Somerset Maugham, Aldous Huxley e Schopenhauer, o último dos quais achava que a leitura podia ser tanto um entrave quanto um estímulo ao ato de pensar. Do ensaio de Huxley, datado de 1936, transcrevo o trecho citado:

To a considerable extent, reading has become for almost all of us an addiction, like cigarette-smoking. We read, most of the time, not because we wish to instruct ourselves, but because reading is one of our bad habits… deprived of their newspaper or a novel, reading-addicts will fall back on… those instructions for keeping the contents crisp which are printed on boxes of breakfast cereal.

 

         A compulsão pela leitura, por inofensiva ou até vantajosa que possa parecer, como a compulsão por comer cenouras (mais saudáveis do que as bolachas, por exemplo), não deixa de ser uma compulsão: um impulso desregulado, uma fuga de si que é facilmente racionalizada e encorajada como vício benigno. Mesmo sabendo-se que nem todas as obras entram na gaveta das cenouras e que ficariam melhor no saco da farinha, a leitura adquiriu o estatuto de panaceia universal. A guerra no mundo é seguramente caso de subnutrição literária.

         Foi ao perceber que o intelecto não me bastava que a vontade de ler literatura definhou de um modo súbito e irrevogável – diria que dramático até, uma vez que, passados 15 anos, ainda me dói a bagagem que deitei fora. Descobri, porém, que o alimento intelectual é como o açúcar: não faz mais do que produzir picos no sangue, aportando pouco valor nutricional e logo se chorando da próxima dose. Não é dele que vem o conhecimento nem dele que a alma extrai os seus sucos. A minha começou a pedi-los com urgência, ainda que na busca intensiva a que me lancei poucos autores achasse que pudesse espremer ou que soubessem mais do que fazer malabarismos com palavras ou enredos. Mesmo que não os deixassem cair ao chão e que a tenda do circo fosse alta, estava longe de chegar. No máximo, dava para um recorde no Guiness.

         No início desta peregrinação desolada, que cedo recuou para a leitura não literária, tive a boa fortuna de encontrar o nome de Mirra Alfassa, artista plástica, musical e mística que sistematizou os princípios da Educação Integral, baseados nos ensinamentos do Ioga Integral de Sri Aurobindo. Na sua definição de arte, aquela que a posteridade ficaria a conhecer como “A Mãe” acentua distintamente: “A habilidade não é arte; o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência”.

         Estabelecendo um paralelo entre os princípios fundamentais da arte e os do ioga, via em ambas as disciplinas a ligação a uma dimensão transcendente, ao serviço da autotransformação e da elevação da consciência. No nosso mundo evoluído, prostrado aos bezerros da ciência, da tecnologia e de um intelectualismo desvitalizado, esta noção são só se perdeu por completo, como não geraria mais do que um escárnio condescendente. Posso afiançar que não é o que se ensina nas universidades, que a única coisa que fazem é confundir e embotar as faculdades da alma.

         Respondendo à pergunta inicial de Lorraine Sinkler, leio acima de tudo para descobrir o significado da existência. Não há muitos que o tenham encontrado e que o saibam transmitir por palavras ou em forma literária, apesar de ser esta a linguagem que mais se presta ao que é da ordem do inefável. É por isso que, mais do ler em quantidade, me importa ler em qualidade e acima de tudo reler. Porque a leitura não é um fim em si, mas um caminho para mim mesma.

         Os mundos interiores não são presas dóceis, que se entreguem ao primeiro assalto. É preciso fazer muitas vezes a mesma viagem de ida sem regresso. No início, a maioria dos que se atiram à aventura vai de arrasto e, mesmo depois de ganhar lanço, avança com a lentidão de certos moluscos. Poucos são os saltos expressivos para a frente e para o alto, e apesar disso não há nada que se lhes compare. As obras de qualidade – as obras com profundidade – desdobram-se em camadas para nos acomodar em todos esses momentos, esperando com as suas janelas e quartos fechados para nos presentear com clarões inesperados, de paisagens que ninguém conhece.

         As obras dos verdadeiros escritores nunca acabam; os verdadeiros leitores nunca param de as reler. Não há tempo para mais.

 

 

 

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O erro dos artistas é acreditarem que a produção artística é um fim em si e para si mesma, independente do resto do mundo. A arte, tal como entendida por esses artistas, é como um cogumelo no vasto terreno da vida, como uma coisa fortuita e externa, não algo intimamente ligado à vida. Ela não alcança nem toca as realidades profundas e duradouras, não se torna parte intrínseca e inseparável da existência. A verdadeira arte tem a missão de expressar o belo em íntima proximidade com o movimento universal. As maiores nações e as raças mais cultas sempre consideraram a arte como uma parte da vida e a fizeram subserviente à vida. (…) Mas a maior parte dos artistas são como parasitas que crescem à margem da vida; não parecem saber que a arte deveria ser a expressão do Divino na vida e através da vida. Em tudo, em todo o lugar, em todos os relacionamentos, a verdade deve ser manifestada no seu ritmo omniabarcante, e cada movimento da vida deve ser uma expressão de beleza e harmonia. A habilidade não é arte, o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência. Esta manifestação da beleza e harmonia é parte da realização Divina na terra, talvez mesmo a sua parte mais importante.

 

Mirra Alfassa

(Fotografia extraída daqui.)

05
Jan25

Postiço

Sónia Quental

 

Quase deixei de ler poesia. São mais os livros que pouso do que aqueles em que me fico – basta uma mirada para lhes cheirar o vazio. Obras de malabaristas, prestidigitadores verbais, ilusionistas que não conhecem a magia e tiram coelhos de cartolas curtas.

Alguns dizem coisas como “gomo”, “retina” e “meu amor” e ainda esses são artifícios que nascem sem vida, enganando apenas os leitores que gostam de cartolas com o fundo à vista.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0