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Não foram apenas as distâncias que as tecnologias vieram encurtar, mas o tempo na visão mais lata da existência humana, dando a sensação de hoje se poder viver várias vidas na mesma encarnação, em que se reencontram as mesmas personagens incansáveis, cavalgando as portas giratórias do mundo virtual como se tudo fosse um “até já” sem consequências. Inventada a internet, temos ao nosso alcance uma versão moderna e democratizada dos registos akáshicos, que qualquer um pode manusear.
Tenho muito a sina de me descobrirem os encantos postumamente, às vezes passados anos de uma relação que não vingou, como foi o exemplo do pobre diabo que me assaltou o pensamento uma destas madrugadas, dando razão à sabedoria popular que diz que o primeiro nunca se esquece.
Ele queria jogar à bola; eu, como todas as meninas de 12 anos, achava que o primeiro era para casar. Ele demorou até aos 22 para considerar as opções e decidir que afinal também queria. E não era um querer pequeno, visto ter vasculhado a internet e percorrido centenas de quilómetros para me achar no buraco enregelado onde me exilei no ano de estágio, ao lado do cemitério, na borrasca do inverno. Ia para me levar ao cinema e para casar, com a bênção dos pais, confidentes de todas as horas. Numa casa partilhada por quatro almas penadas, o quarto era o único recanto onde havia privacidade e foi com horror que desviei o olhar quando a criatura teve o à-vontade de se deitar na minha cama, agarrada à almofada onde eu dormia. Entre os três – ele, eu e a fantasia que tinha de mim –, era eu que estava a mais. Estive quase para sair de fininho e deixá-lo entregue à consumação de núpcias, não fosse o medo de encontrar uma lembrança debaixo dos lençóis.
Já lhes chamaram Highlanders, os imortais. E que nome bem escolhido, porque o corte tem de ser de espada e pelo pescoço, e mesmo depois de defuntos demoram a perceber que passaram para o lado de lá. Estranhamente, são sempre eles que tentam ensinar-me o valor do perdão, da tolerância e do amor incondicional que parecem viver, a acreditar na pregação que ouço quando tentam voltar a girar a porta e a entrar no quentinho de onde acham que nunca saíram. Por correio, por telefone ou em perseguição cerrada pelas vielas cibernéticas, a atividade tornou-se profissão e eu, que não sou de opiniões, venho aqui dar a opinião de que merece sindicato e troféu de tenacidade – desde que não lhes deem subsídio de transporte e lhes tirem o material de escritório.
A quem faz gosto em aprender, os imortais ensinam muitas coisas, entre elas como passar pelo tempo incólume ou caminhar por ele às arrecuas, num palco giratório com figuras de cera, congeladas num momento fugaz, ali reencenado, num purgatório que não tem como acabar. Por mim, aprendi que quem não aproveita a dádiva do tempo para se entregar a um devir consciente e mudar de lugar a cada instante nunca sairá da roda, e nem é preciso dar-lhe corda, porque ela gira por si.
Quando o cowboy desata a galope na direção do horizonte, eu, que também não sou de dar conselhos, aconselho quem fica para trás a certificar-se de que o vê desaparecer no além. O mais certo é perceber que se enganou e resolver dar meia-volta, não porque tenha sido fulminado pelo arrebatamento da paixão ou tomado por um arrependimento sincero, mas porque não gosta de deixar coisas inacabadas. A casa ainda não ardeu até ao fim.
Imagem: baralho Rider-Waite