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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

28
Mar25

A revolta do galinheiro

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-28 103902.pngAinda me lembro do tempo em que a doença mental era estigmatizada e escondida dos olhos do público – um tempo distante do de hoje, em que a debilidade psicológica procura argumentos para se justificar, explora a vitimização em benefício próprio e recruta seguidores.

O interesse pelo desenvolvimento pessoal, pelos temas do feminino e do masculino e dos relacionamentos em geral trouxeram à minha atenção há alguns anos grupos como os dos MGTOW (Men Going Their Own Way), que fui acompanhando muito à distância e de olhos semicerrados, não fossem entrar salpicos de lama daquela chafurdice intelectual e moral, impermeável a qualquer tentativa de diálogo coerente.

         As referências repetidas à red pill e à black pill traduzem desde logo uma ignorância de base: os celibatários deviam saber que a pílula não lhes serve de nada e que o abuso de estupefacientes não dá bom nome à causa. Fui ler pela primeira vez os 12 passos dos Narcóticos e Alcoólicos Anónimos, que já tinha visto referidos de forma lisonjeira em obras de cunho espiritual e fiquei tão agradavelmente surpreendida que me atrevo a dizer que está ali a cura. O primeiro passo consiste em reconhecer a impotência face ao vício e a perda de controlo sobre a própria vida – a perda da razão, acrescento. O segundo, em reconhecer que existe um poder superior que pode devolver-lhes a sanidade – não há casos perdidos. O quarto, que recomendaria como requisito preliminar, corresponde ao inventário moral minucioso de si mesmo – isto é, ao assumir da responsabilidade contrário à vitimização masoquista com que estas seitas se masturbam publicamente.

         Mesmo entre influencers que não usam o rótulo “MGTOW” ou “Incel”, as perturbações de personalidade são evidentes. O ambiente de apoteose da adolescência começa logo pela legião de seguidores acéfalos, suspensos das lives e da sabedoria trémula de homens que recusam não só tornarem-se homens, mas tornarem-se adultos – que não andam à procura de mulher, mas de mãe; que à frente das câmaras enchem o peito de ar, mas na vida privada andam encolhidos e se oferecem para ser o capacho dos outros, acusando depois quem lhes passa por cima. É como se o galinheiro tivesse decidido revoltar-se contra as leis da selva e quisesse ser tratado como leão só porque acha ter direito à igualdade de cidadania. Senão amua ou pega numa metralhadora.

          Aposto que os Incel foram espezinhados na corrida ao chocolate do Dubai, sem dúvida por uma manada de mulheres. Sem saia onde se esconderem, porque elas agora usam calças, ficaram a chuchar no dedo. E que bem lhes faz.

 

Imagem: O Sono da Razão Produz Monstros, Francisco de Goya

 

26
Mar25

O diamante

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-26 205235.png 

 

No covil de salteadores, todos se julgam o ladrão astuto – traficando pensamentos como se fossem joias, enjeitando o diamante que não sabem apreçar.

Lascada, nem a metade do coração lhes pertence.

 

 

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

The test of progress is not how much intellectual knowledge you have added, but how many mental illusions you have discarded.

Vernon Howard

20
Mar25

Ser ou não ser

Sónia Quental

            O teste do desapego é quando se leva outra bordoada e o que nos vem à cabeça é este meme, que o sentido de humor saca automaticamente dos arquivos digitais, onde a memória temporária é ocupada por coisas mais permanentes do que deviam.

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         Disseram-me uma vez que eu era mais forte, que aguentava mais do que os outros. Era por isso que ficava com o meu fardo e o deles e que recebia mais pancada também: porque dava luta, morria, ressuscitava e passava de nível. Mas isso só dava gozo na Master System II, contra o meu irmão e o meu primo, quando eu era o Alex Kidd e aprendi a jogar o pedra, papel, tesoura. Na vida real, às vezes morro e nem sempre ressuscito, e ainda não encontrei ninguém com quem pudesse jogar o pedra, papel, tesoura e ser recompensada por isso. É cansativo recomeçar os mesmos níveis, mesmo quando sei fazê-los mais rápido e acabo com os adversários ao primeiro golpe, só para chegar um pouco mais longe antes de perder a próxima vida.

         Deve ser castigo por ter levado o Boss AC para a sala de formação, quando tentava dar lições de moral pedantes às crianças. É com ironia mordaz que o mesmo sentido de humor que me fulminou com o meme canta agora sem afinação: “És forte, abanas mais não cais” ou “O que não mata engorda”. Não sei se o preço da fortaleza compensa nem se o presente estado de impassibilidade e desapego é uma conquista ou se é só perda da capacidade de reação. Tenho a impressão de que agora morro na mesma, mas morro feliz. Se é isso que é ser forte, se calhar passei de nível e não sei.

 

14
Mar25

O Oráculo

Sónia Quental

          Tantas vezes tenho encontrado recomendações relacionadas com o conceito moderno de “autocuidado” – um conjunto de práticas que parecem girar em torno dos banhos de imersão, dos cuidados com a saúde, a alimentação e o sono – que achei que tinha de voltar ao primeiro filme do Matrix. Não me perguntem porquê, mas algo me disse que precisava de revisitar a cena em que Neo se encontra com o Oráculo, que mora num prédio vandalizado, guardado por um cego, num apartamento cinzento, com uma porta igual à de tantos outros. Só me lembrava de que recebia as pessoas na cozinha, enquanto fazia biscoitos, e tinha a sensação de que não seria dada a estadias prolongadas na banheira, embora se movesse devagar – ou antes, de forma deliberada.

         A recapitulação da cena mostrou-me uma mulher de meia-idade que, além de cozinhar biscoitos, fumava, apontando para um letreiro acima da porta onde se lia a célebre frase de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Uma mulher radiosa, sábia, que não transmitia qualquer imagem de falta de amor-próprio, não parecia incomodada com o consumo de tabaco e açúcar nem sofrer de fadigas por servir primeiro os outros. (Acrescento de passagem que também não a imagino a engrossar os quadríceps e a transformar o corpo no de um homem, baseando nisso uma noção enganosa de autoestima que dividisse com o mundo no Instagram.)

         É nisto que se enganam os profissionais de saúde e a trupe entusiasta do desenvolvimento pessoal, ao confundirem os cuidados pessoais com a busca da saúde física e mental, quando não com a busca do prazer. Mesmo aqueles que reconhecem a importância da meditação, da dimensão espiritual ou das práticas sagradas fazem-no a título decorativo, tratando o sagrado como mais um hábito a incorporar num regime que se destina a reduzir o stresse e a ansiedade e a melhorar a “qualidade de vida” – uma expressão que ainda hoje não sei o que significa. Como se não fosse mais do que um utensílio a guardar no nécéssaire e a introduzir na higiene diária para a restauração pessoal, posto que não gere grandes perturbações – um pouco à semelhança dos romances policiais que alguns gostam de ler na praia, que entretêm e estimulam a mente até certo ponto, sem trazer inquietações metafísicas profundas.

         Segundo os preceitos modernos, o Oráculo do Matrix não parece praticar o autocuidado, nem sob a forma mais sofisticada do mindfulness, mas não vejo nada que lhe falte, antes parecendo sobrar. Talvez porque, com toda a sua singularidade, se tenha tornado aquilo que alguns preferem manter à distância de uma prática, tendo deixado de se distinguir dos outros e do que os transcende. Talvez porque seja uma mulher que se conhece e, tal como todos os que percorrem o caminho do autoconhecimento, não tenha medo de se deixar perturbar. Duvido que faça os biscoitos de receita na mão.

 

 

12
Mar25

Para desajeitados

Sónia Quental

         Depois de quase três anos no ioga, são estas as únicas posturas que sei fazer. Por coincidência, também são as únicas de que gosto e que qualquer um pode imitar com segurança em casa. Aconselho, antes dos momentos chatos da vida.

 

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08
Mar25

"Thy name is woman"

Sónia Quental

 

Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir.

Paul Valéry

 

 

         O movimento de diluição das diferenças de género que ganhou expressão nos últimos anos foi precedido nalgumas décadas por uma fação a dado ponto paralela, de redescoberta dessas mesmas diferenças, em que se baseiam muitas mentorias de relacionamento. É assim que hoje se vê uma afluência de coaches que vendem os segredos não só dos relacionamentos, mas do que é, em essência, a feminilidade e a masculinidade. A par da estreiteza de certas generalizações, a visão de cada um traduz, como não podia deixar de ser, a própria maturidade, fazendo circular novos estereótipos que refletem diferentes graus de miopia. Foi neste contexto que me deparei com o vídeo abaixo, em que uma coach desfila na rua, descrevendo-se como modelo de feminilidade e elegância. Consigo depreender porque é que os olhares se voltam para ela, mas deixo a interpretação a cada um.

         A pretexto deste vídeo e da efeméride, aproveito para expressar aquilo que não tenho como marca de feminilidade: feminilidade não é usar sapato de salto alto; não é pintar as unhas nem carregar a pele de maquilhagem; não é o menear de ancas que se vê aqui. Esta manhã, depois de ter sido recebida numa loja por uma pessoa que me desejou feliz Dia da Mulher com um sorriso treinado e uma voz estridente (daqueles votos que agradeço e não devolvo), fui atendida logo a seguir por outra que me ofereceu ajuda exalando uma feminilidade natural, apesar do excesso de peso e das calças de ganga que usava.

         Se em textos anteriores propus que a afirmação do feminino não passa pela exibição relaxada de deformidades, em nome da aceitação e protesto contra a ditadura de uma imagem social de beleza, ela também não reside na artificialidade decorativa nem na neurose. Conheci ao longo da vida várias mulheres deslumbrantes cuja insegurança as despia de toda a beleza. Conheço quem viva a contar calorias e só consiga usar leggings pretas, para que não se notem as imperfeições. A perfeição que conheço não é de vidro e não é tirana. Por agradável que tenha sido, a seguir à democracia dos jeans, redescobrir as saias e os vestidos, hoje sei que não é o vestido que faz a mulher, mas a mulher que faz o vestido.

         Depois de crescer num ambiente em que não se reconheciam diferenças entre o modo de ser masculino e o feminino – o que, em vez de aumentar a compreensão entre ambos os sexos, a dificultava – foi extremamente curativo redescobrir-me como mulher, mesmo que não me reveja na forma de estar da maioria das mulheres que me rodeiam. Nesse percurso, aprendi também que a maturidade de homens e mulheres os leva a conhecer e a dominar crescentemente, e de modo consciente, a polaridade oposta. No entanto, antes de aspirarmos à androginia, sugiro que comecemos por ser aquilo que a natureza nos fez.

 

 

Always a paradox. Always tangible, but also, somehow, elusive and just out of reach. Always present, and yet, somehow, removed, the true female seems for ever, strangely, inexplicably, a wonderful and unfathomable mystery!

Théun Mares

 

05
Mar25

A era das distrações

Sónia Quental

 

        Já não faz falta o entretenimento para nos entreter. Depois de durante muito tempo ter tentado arrumar as coisas práticas da vida num frasco hermético, com etiqueta e prateleira própria, elas teimam em sobejar e em pedir-me cuidados. Prefiro chamar-lhes “males necessários”. Sem que tenha o tempo absorvido por crianças ou família, sem que tenha de pôr combustível no carro ou de perder horas no trânsito, por mais que tente criar espaços dedicados ao significado, ele dispersa-se, ante o assédio contínuo das distrações.

         Numa era em que a vida devia ter-se tornado mais fácil, sendo essa a promessa da miríade de bens de consumo, tudo parece conspirar para nos desviar de qualquer centro. Pondo de parte o trabalho, ele é inspeções, manutenções, reparações, reabilitações, intervenções de todo o tipo, seguros, impostos, faturas, reuniões de condomínio, processos legais, compras, tarefas domésticas e agora todos os ferrolhos a que as ameaças de cibersegurança obrigam, fechando já os olhos ao mundo sinistro que nos cresce à volta. Não é preciso sequer ver TV. É um sem-fim de assaltos, obrigações e ninharias cujo fito único, quando não é o de roubar ou espoliar, parece ser o de cansar e distrair, não deixar espaço para nada que ainda tenha substância – não deixar, aliás, espaço algum que nos pertença. E, se de dia nos tentam atordoar e pôr a dormir, de noite a estratégia parece ser a privação do sono, quando não pelas preocupações com que insistem em bombardear-nos, pela magra tentativa que alguém possa fazer de abrir um hiato e olhar para dentro.

         Manter um mundo fictício dá trabalho e, quanto mais fictício ele se torna, maior o esforço e o sentimento de alienação. O tempo que sobra das distrações é empregado a tentar separar o que é fake do que não é, uma tarefa tão vã quanto a de arrumar os males necessários no jarro de vidro e esperar que eles se conformem com o downgrade de uma subscrição compulsiva, que acusa os efeitos da inflação de ano para ano. De consumidores, passámos a consumidos, a matéria-prima que engorda a máquina, estações de serviço abertas 24 horas por dia, porque permanentemente contactáveis ou localizáveis. O fim das fronteiras é oficial: fronteiras de espaço, tempo, privacidade, contribuindo tudo para a confusão da identidade. Primeiro distraídos, depois invadidos e por fim diluídos. Chegaremos então ao nada existencial.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

02
Mar25

O dogma

Sónia Quental

What business have you with saving the world, when all the world needs is to be saved from you?

Nisargadatta Maharaj

 

 

 

Captura de ecrã 2025-03-02 035803.png

O Toni foi o convidado de honra para moderar o colóquio Porque É que Deus Permite o Sofrimento no Mundo: Contributos para uma Teima Ecuménica, que ia realizar-se clandestinamente nas catacumbas da Biblioteca de Cordel.

Esperava-se a comparência de personalidades eminentes do clube dos Aferrados a Deus, desde curandeiros locais a humanitários benévolos e aos mais altos dignitários da Igreja. E eles não desiludiram, num desfile ostentoso, munidos das suas samarras, charutos e bengalas. Havia os que em vez de apostarem nos acessórios e nos crucifixos de ouro seguiam a humildade minimalista, sendo a tanga uma das peças em voga, secundada por variantes mais literais, como o abnegado que tinha dado um braço para acabar com a miséria no mundo e o acamado que estava em greve de fome. Sem forças para se fazer ouvir, chamou-se uma especialista na leitura de lábios para que nenhum fio se perdesse da sua sabedoria silenciosa.

         Talvez fosse a inexperiência do moderador, a sua falta de pulso ou quem sabe as garrafas de Porto que rapidamente se escoavam, mas o debate logo se desviou do tema proposto, gerador de evasivas hesitantes, para o contributo que cada um tinha dado para a salvação do mundo. Para um desempate rigoroso, queriam legislar uma tabela que contabilizasse méritos como donativos monetários, voluntariado em hospitais ou prisões, orações diárias, jejum, velas acesas, registo de conversões, membros e órgãos doados, peregrinações a Fátima, bênçãos do papa, bandeiras da Ucrânia nos perfis sociais e a glorificação imorredoura da esperança.

         A discussão incendiou os ânimos já desavindos, fazendo com que todos perdessem a noção do decoro naquela que era quiçá a mesa de trabalho mais efervescente e ébria do submundo da Simpatia. Toni, que já tinha trocado de t-shirt duas vezes e continuava a transpirar profusamente, convidou-os esbracejando a coroarem o encontro com um passeio restaurador pela grande Montanha onde desembocavam as catacumbas. O efeito sobre a comitiva foi imediato, alguns diriam que bizarro até, levando a acessos de tosse e a uma dispersão súbita: um, explicava, tinha de ir rezar a missa, outro queixava-se da artrose, outro ia atirar moedas aos pobres, outro compor versos sobre a guerra, outro tinha o chicote à espera, outro ainda estava atrasado para o jantar (arroz de pato, por sinal).

         Foi assim que a Montanha, na sua paciência infinita, continuou à espera de um peregrino, um que não fosse com o mapa na mão – um que fosse para chegar.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0