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Há 5 anos, era o papel higiénico; hoje, eram os garrafões de água - não duvido de que os mesmos.
Os impávidos borram-se mais, mas cansam-se menos.
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Há 5 anos, era o papel higiénico; hoje, eram os garrafões de água - não duvido de que os mesmos.
Os impávidos borram-se mais, mas cansam-se menos.
Desde que aprendi a escrever, vivi em busca da palavra mágica: a que abrisse a porta, desfizesse os nós e desse leveza. A que me transformasse de rainha de Espadas em rainha de Copas, essência recortada de todas as que estão a mais. A palavra exata e restauradora, que perdoasse e me fizesse nova, tão lírica quanto portentosa e quase por estrear.
Enfim vim a saber que o que impregna de magia a palavra é o silêncio, todo neblina, com as suas margens recônditas e sua mansa vertigem. Entre a espada e o cálice, o que muda é o molde. A feição varia: o amor é o mesmo.
Imagem: baralho Morgan-Greer
Gosto de sair cedo no dia de Natal e de Ano Novo: as ruas são íntimas, densas de silêncio. Procuro a intimidade com a mesma obstinação que antes de me apontarem essa falha: a de só querer relações íntimas. A diferença é que agora sou consciente disso e nem às ruas dou trégua.
O costume que se vê de aproveitar as festividades religiosas e os feriados à sexta-feira para tirar férias deu-me a esperança de que a Páscoa fosse igual, mas nem a chuva sossegou as pessoas em casa. Embora há anos não celebre Natal nem Páscoa e não simpatize com o fanatismo das dietas sem açúcar, não posso deixar de reparar em como os grandes feriados religiosos estão cobertos dele. A guloseima é a melhor forma de evitar que se pense no significado daqueles dias que se põem a jeito para um fim de semana maior.
Como as All Star e o vinil, o catolicismo voltou a estar na moda. O efeito decorativo é o mesmo, a vanglória dos novos convertidos igual à de quem passa a frequentar um clube exclusivo – só que neste todos podem entrar. Basta ajoelhar no palco e gritar o nome de Jesus para que os pecados se façam lã e os lobos de antanho virem cordeiros luzentes, já prontos a evangelizar.
Nem sempre apetecida, porque não há molho que a adoce, a relação com a cruz só pode ser íntima – esbarramo-nos com ela nas alamedas da vida, cada vez mais despidos de conceitos. No fio dessa nudez íntima, se nos ajudar o equilíbrio, repousa o berço prometido, com a sua amêndoa secreta de silêncio, mais maciça do que qualquer esperança vã.
O verbo acreditar é um dos ingredientes mais importantes da libertação humana da atração fortíssima de Deus. Se acreditamos, acreditamos, e podemos ir almoçar depois. A crença religiosa é o nosso bilhete para a liberdade. Os crentes são as pessoas mais preguiçosas que existem.
Manuel Curado
Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados
Alguns descobriram já que a felicidade não está em alcançar. Descontentes das metas, voltaram-se para os processos, vivem no caminho e a caminho. O meio parece mais promissor do que acabar e descobrir que não há finais felizes. É, pelo menos, garantia de ocupação. Mas também não é aí que se esconde o contentamento. Difícil é admitir que o temos à mão.
The whole world belongs to me, because I live in the last story, the last dream:
woman sitting in chair with cup of tea.
Byron Katie
No dia em que deixei de acreditar na palavra dos mestres, o encantamento desfez-se e comecei a nascer, com a violência de quem tira primeiro a cabeça, depois o corpo todo – e se desembaraça do cordão, disposta a morrer antes de o oxigénio chegar.
Imagem: baralho Morgan-Greer
Um dos momentos mais desconfortáveis por que já passei foram os dez minutos inteiros em que fui invisível. Estava no quarto do apartamento onde morava uma amiga, com um colega dela de faculdade, enquanto ela estendia roupa na varanda. Os móveis eram menos transparentes do que eu, um corpo de que o olhar do rapaz se conseguiu desviar com tamanha habilidade que me fez duvidar da minha existência ou de que estivesse ciente da minha presença, apesar do espaço exíguo que ocupávamos e de estarmos ambos a falar com a mesma pessoa.
Estender um olhar a alguém é um primeiro sinal de reconhecimento: a constatação de que essa pessoa existe, não apenas num espaço físico, mas no mapa de um outro – um mapa que nos põe em relação. Claro que muitas vezes não se quer que essa relação ultrapasse o nível da impessoalidade e por isso há momentos em que o olhar se resguarda e evita cruzar-se com o dos outros para segurar a distância. Há olhares que não se dão porque se quer traçar um limite; há-os que se escusam para castigar – afinal, não há castigo maior do que apagar os contornos de uma presença. Mas também há aqueles que não se erguem por pura vergonha. Cobrem-se de pálpebras, não por não quererem reconhecer os demais, mas pelo medo de ultrapassarem o limiar do invisível e serem apanhados. A isso leva o sentimento de inferioridade da pessoa que torna os outros ausentes para se negar primeiro a si.
Quando olhamos alguém nos olhos, estamos a erguer a face e a dar-nos a um olhar, o que não se faz com qualquer um. É por isso que a maioria esconde o olhar atrás de véus, num posicionamento feito dos fingimentos que o trato social normalizou. Olha, mas não vê nem se dá a ver. Já manter no olhar a essência e dirigi-lo a alguém, mais do que durante um instante fugaz, é aceitar ser-se desnudado. Esse é o olhar que é, não o que se limita a mapear o território ou a criar opacidades. É também o olhar que encontra.
Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados
Uma das artimanhas comuns a certa legião de demónios são as lições de humildade que não se cansam de dar. Não há vigário que não lhes conheça o trinado – essa bondade que tenta.
Imagem: baralho Thoth
O vício dos estrangeirismos, sobretudo de origem inglesa, aliou-se à aplicação desenfreada do princípio do menor esforço, que também atua na pragmática linguística e que parece ter ditado o regresso aos monossílabos. É disso exemplo a utilização generalizada de termos como blog, tag, post, link e cloud, que, ou têm tradução simples e direta para o português, ou já foram aportuguesados. É assim que, no faroeste do copywriting e da escrita digital, se encontram aberrações como “alojamento cloud”. Daqui extrapolo que, entre o Homo habilis e o Homo erectus, deve ter existido a espécie gutural do Homo stultissimus, a que parece que estamos a voltar.
À volta das cabeças, há uma nuvem que adquire diferentes tonalidades de pessoa para pessoa, feita da matéria turva do pensamento, tingida pelas emoções, sintonizada com lugares e tempos distantes. É uma bolha fina, mas impenetrável, um headset de realidade virtual que projeta o mundo onde cada um se vê, com as suas figuras e histórias imaginárias, as suas conversas de fazer de conta, em que os balões das personagens têm a tonalidade da própria nuvem.
Só de olhar, sente-se o zunido da frequência invisível e adivinha-se os diálogos que não chegam a transportar-se para o corpo, porque cada um fala sempre sozinho. Semblantes alheados percorrem as ruas numa valsa de braços sem abraços, tropeçando nos próprios pensamentos, simulando encontros à tangente das bolhas que enrijecem com a certeza de que cada mundo imaginário é o mais mundo de todos.
Projections change the world into the replica of our own unknown face.
Paul Levy
Imagem: baralho Morgan-Greer
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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0