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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

28
Mai25

O corpo

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-05-28 183805.png O corpo é um álbum de fotografias raramente explorado. Emoções congeladas que se disfarçam de sintomas e continuam sem se dar a ver. Cemitério mal-assombrado, com datas e nomes e retratos em lápides de flores murchas, que se visita no Dia dos Mortos, com a língua das alcoviteiras a dançar à volta das campas.

O corpo não perde nada, embora aguente muito antes de começar a coreografar a sua mímica silenciosa. Todos os esqueletos do abandono continuam enterrados no corpo, sem deixarem de ser osso e de ocupar espaço. Sem se deixarem ser cinza.

Cada emoção proibida palpita ainda abaixo do solo, ouve-se sumida, confundindo-se com o vento que espalha este álbum de sombras.

O corpo tem a chave. No meio dele, há uma cadeira desocupada – não uma lápide, mas um trono. Como assusta sentar nele, rodar a chave, aprender a conduzir a assombração. Ser a resposta quando ele pergunta desde que se fez corpo, desde a primeira ferida: e quem cuida de mim?...

 

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

 

22
Mai25

O coração dorme de lado

Sónia Quental

 

         O coração dorme de lado. Desacompanhado. Aos soluços. Disseram-lhe que não se dormia de barriga para cima, mas ele dorme. E para baixo. Não há posição que seja cómoda para um coração amassado, sem direito nem avesso, a rebentar pelas costuras. Experimenta-as a todas. De todas se lamenta. Roça-se nos lençóis como animal obrigado, sem dar fé da pele que se solta.

         De lado, em carne viva, por último a paz.

 

16
Mai25

Onde está a Jane?

Sónia Quental

      Quando me desafiam a ser a minha melhor versão, apetece-me perguntar: a minha melhor versão de quê?... Mas ensinaram-me no estágio pedagógico que não se devia terminar perguntas em “quê”, porque confunde as cabeças das criancinhas. A gramática estaria desculpada se o conteúdo equilibrasse os lapsos, só que entre as selfies com os músculos a brilhar e os chavões que se repetem nas páginas de todos os personal trainers e mentores de vida, o plástico é o mesmo (ainda que reciclado).

         Força, empoderamento, superação, transformação pessoal, liderança, dominação: onde está a Jane, agora que todas querem ser o Tarzan?... Quanto maior o foco no corpo, maior a distância do centro. Mais desocupado ele fica. No caminho a que tantas vezes se compara a vida, agora transformado numa eterna prova de obstáculos, não somos apenas encorajadas a ser mais: somos intimidadas. Há um novo bullying do fitness e do autocuidado, que martela frases de motivação em bruto e tenta purgar a língua de todos os traços de negatividade, no pressuposto de que a reforma das palavras se transfira para o pensamento, onde se acredita residir o poder da mudança. Com tanta ênfase no ser mais – que se traduz em sermos a nossa melhor versão – o valor em oferta encolhe cada vez mais. Convence cada vez menos.

       Quem tanto insiste em adotar uma versão 2.0 da própria pessoa costuma falhar o que na dança se chama "passo-base": conhecer a atual. Aceita ainda que a melhor versão de todas tem os mesmos músculos de aço da conquista: física, profissional, social. É uma versão que nasce de uma lapidação tão transpirada quanto alienada – não do conhecimento, da sabedoria, do aprofundamento. Do desenvolvimento de uma luz própria, que nem sempre é toda luz, mas tem matizes de sombra. Ah, o prazer de dizer “não” quando me estendem uma liana e me atiçam a saltar de galho em galho na floresta colorida desta mesmice tonta!

 

 

10
Mai25

O lugar da mulher

Sónia Quental

           

         Ao intitular o seu artigo sobre a igualdade de género e a liderança “O lugar da mulher é onde ela quiser”, Carla Fernandes aponta-nos desde o começo o lugar a que, no seu entender, qualquer mulher aspira: a luta pela ascensão a cargos de liderança e pelo derrubar de preconceitos sociais. O vocabulário gasto daquilo que mais soa a panfleto político e me fez lembrar muito texto didático que tive de engolir na escola deu-me um pequeno choque na precisa semana em que deixei cair uma das minhas armaduras.

        Recebemos uma educação voltada para o intelecto e, pelo menos desde que entrei nela, empenhada em moer estereótipos e em vincar uma ideia deformada de igualdade. Ao crescer, sabia que era mulher pelo corpo, sem conhecer as implicações disso. Não tinha referências femininas – nem, a bem dizer, masculinas. O certo é que nos faltam modelos de virtude e honra. Desligada do corpo, da sua expressão primária, socorri-me daquilo em que era boa para compreender o mundo e para me defender enquanto ele se ia fazendo mais largo e perigoso: a mente. Para tentar exercer controlo cerrado sobre a meia dúzia de metros quadrados à minha volta, antecipar o futuro e, se possível, evitá-lo, por não o imaginar benévolo. A violência da emoção que não se prestava ao sufoco da racionalidade emaranhava-se nela, embora nascida das linhas da frente desta defesa, que julgava profunda quando era reativa, espigando das meadas de medo.

       Com o hábito de analisar tudo, dissequei a vida de forma tão implacável como a literatura. Fiz do funcionamento mental uma identidade e uma barreira, sem me ocorrer que pudesse prescindir dele nem que estaria segura se fosse indefesa. Ironicamente, foram ele e a vontade de saber mais sobre o ser humano que me levaram a investigar também o que era ser mulher e que facetas estariam gravadas em mim, numa aprendizagem que continuava a ser guiada pela sonda rígida do intelecto. O corpo não reagia ao que ele sabia, ainda não o sentia. Até que, talvez por começar a ser escutado, começou a deixar escapar o seu perfume inato. Sem aviso, senti uma chapa cair por dentro e fiquei exposta sem correr a esconder-me. Descobri que não precisava dela para me proteger e posicionar – que a proteção não precisa de se tornar um modo permanente de ser e que isso não implica um regresso à ingenuidade. Nem por isso passei a gostar menos da palavra “não”. Como tal:

         NÃO creio que, com a sua militância e o seu afã de prolongar lutas imaginárias, a mulher tenha algo de qualitativamente diferenciado para oferecer como líder. Conheci pouco da empatia, inclusão e colaboração exaltadas por Carla Fernandes quando as avistava nos picos da liderança, que as deixaram mais destituídas do que coroadas. Choravam, batiam com portas, apunhalavam pelas costas e gritavam.

       Antes de querer ocupar qualquer lugar, a mulher precisa de se conhecer e de resgatar a sua natureza de mulher. Só então poderá escolher onde quer estar.

 

 

A happy woman is a woman relaxed in her body and heart: powerful, unpredictable, deep, potentially wild and destructive, or calm and serene, but always full of life, surrendered to and moved by the great force of her oceanic heart.

 

Women do not become free by analyzing themselves. They become free by surrendering into love. Not your love. Their love. They become free by surrendering to the immense flow of love that is native to their core and allowing their lives to be moved by this force in their heart.

 

David Deida, in The Way of the Superior Man

 

Catwoman (18.10 (10).jpg

(Foto de bastidores)

 

2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

07
Mai25

Caixa de furos

Sónia Quental

         A sorte, a surpresa, o sabor. Eram os ingredientes da caixa de furos de chocolate que tenho arrumada na infância, com as bolas coloridas que davam direito a dias raros de recompensa. O chocolate que saía tinha a sua importância, mas eram o jogo e o elemento do desconhecido que alimentavam a antecipação.

       Ficou-me a nostalgia da caixa de surpresas com o aroma a chocolate, misturado com o boletim do totoloto, os torrões duros de amendoim e o ambiente sombrio dos cafés onde o balcão era mais alto do que a minha cabeça – mas também a lembrança das surpresas felizes, sobretudo as que estavam associadas a pequenas aventuras gustativas.  No mundo físico, não é por terras que viajo, mas por cheiros e sabores. Se o chocolate é uma categoria propícia à exploração, o chá é outra. A tradição e a curiosidade levaram-me a investigar a oferta londrina quando a oportunidade se deu. Ao desconsolo inicial da falta de novidade seguiu-se o achado em Notting Hill, onde uma lojinha azul, como a felicidade, convidava a entrar, pela cor e pela miscelânea de aniversário que me acenava da montra (era dia de aniversário e já tinha recebido uma base para copos de um vendedor de rua). Foi assim que conheci a Bird & Blend: um catálogo de sabores insólitos, cujo encantamento começa, como manda a sabedoria, pelos nomes, palavras líquidas que dá vontade de saborear, seja como refresco de verão, seja no aconchego das noites alumiadas por um livro.

         Trouxe comigo a caixa de aniversário, onde, entre outras surpresas que não desiludiram, não faltava o chá a saber a bolo. Mas o regresso não foi uma despedida. A relação com a marca continuou à distância, quando descobri o clube de chá mensal: uma subscrição que traz a sorte, a surpresa e o sabor até casa e me deixa ser outra vez a criança à espera de um furo, com a confiança de quem ainda se dá ao desconhecido de olhos fechados.

 

1746631431825.jpg

 

03
Mai25

Sem título

Sónia Quental

Form changes. Wholeness remains in every crumb.

Georgi Y. Johnson

 

         É nos momentos em que a nossa humanidade animal fica exposta que percebemos o quanto tentamos controlar o movimento da vida, o quanto vivemos para nos proteger das catástrofes, segurando a mão que nos resolve o destino.

         Há coisas escondidas que emergem quando ganhamos a consciência de que não temos o controlo. A resistência não quer abandonar a fachada de racionalidade, entregar-se a essa matéria visceral, indigna da sua imagem de roupa vestida. As emoções revelam-se em bolsas e espasmos, o “eu” afunda, perde a definição, os limites que o separam do movimento mais vasto que o atravessa. Esperneia, com medo de perder a forma e deixar de ser coisa. Quer manter as comportas fechadas, morar no estado de contração contra o fluxo imprevisível da noite – como se fora mais do que um caroço escuro, um ponto minúsculo de contraste contra a imensa luz.

 

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Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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