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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

27
Jun25

Janela

Sónia Quental

         As janelas não levavam à esperança: simplesmente não castigavam a solidão. Enquanto as orações da manhã e da noite, com récitas diferentes para o anjo de guarda, eram por obrigação, a janela era uma promessa que não me separava de mim. Levava para o infinito. Era onde o anjo da guarda se encostava quando queria saber dele e lhe pedia o serviço dos aflitos. Que as minhas aflições tendiam a ser muitas. Pedia-lhe paciência. Só o tinha a ele.

       Anjo da guarda, minha companhia… Embora fosse muito de reclamar por aquilo a que não me pouparam, fui tendendo a preferir as companhias invisíveis: as que não se veem nem se ouvem nem se sentem e se duvida de que estejam lá. Até que o círculo foi ficando cada vez mais estreito e sobrei apenas eu, a querer desvanecer-me como os anjos, a ouvir as orações dos aflitos. Ainda a gostar do encosto à janela.

 

 

23
Jun25

Unhas

Sónia Quental

      Contemplo com renovado assombro as unhas postiças que as mulheres sacodem no ar. Aprendi com os contos de fadas que, se havia coisa que identificava as bruxas, eram as unhas, embora duvide de que fizessem despesa com manutenção. Nunca descobri porque alguém havia de querer ser bruxa de propósito.

        Sei que o timbre da alma é nas mãos que se vê. Tão distraídas andam todas com os floreados das unhas e os hidratantes na mala que se esquecem do que levam no côncavo – do rasto que os gestos deixam no ar.

03.08.2018 - Mãos (9).jpg

Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Jun25

Pular a cerca

Sónia Quental

         O stalking é a nova pornografia, a um tempo privada e social – sempre clandestina. Um hábito pútrido, a que não se dá suficiente atenção antes de chegar aos noticiários, quando atingiu proporções dramáticas e já não é possível evitar-se as consequências. Numa era em que as tecnologias nos deixam cada vez mais expostos, não se fala o suficiente sobre o stalking cibernético – tal como não se discutem subtilezas como o direito moral de acesso a conteúdos públicos por parte de indivíduos a quem se transmitiu a vontade de um total afastamento.

        Com a generalização da internet e dos conteúdos digitais, é cada vez mais impraticável deixar-se pessoas para trás, no tempo e no espaço – dizer um adeus definitivo e fazer respeitar esse desejo. Porque há um motor de busca na ponta dos dedos; porque fomos colegas de escola, temos parentesco ou nalgum momento da vida nos cruzámos, há quem pareça achar que isso lhe dá direito de permanência e invasão, por mais recusas que lhe tenham sido dirigidas, verbalmente e/ou através de gestos explícitos. Vive, pois, a tentar contornar bloqueios e a pular a cerca, fazendo da perseguição carreira – o que significa que, se alguém que impôs certas barreiras quiser criar algo que lhe dê visibilidade pública, terá de arcar com os simplórios, chicos-espertos, parasitas e abutres que traz às costas desde nascença, que não largam o radar. Como se isso não bastasse, muitos – os piores – têm-se por bem-intencionados, acreditando agir para o bem da pessoa acossada e por graça de uma qualquer magnanimidade de que são dotados. A todos é comum o acharem-se simplesmente no direito, uma mentalidade prevalente, que perdeu todos os limites de exercício.

         A pergunta que deixo é: se alguém tem meios de aceder a conteúdos públicos de um terceiro que já deixou claro querer distância, terá essa pessoa o direito moral de utilizar os meios ao seu dispor para continuar a violar o limite imposto? A maior parte das mentes jamais se fará este questionamento, continuando a desobrigar-se da contenção, por ter uma noção tão rudimentar do que é o respeito quanto relaxados são os direitos de que julga gozar. Afinal, se pode, deve: há que usufruir em pleno das liberdades que tem. É assim que invade e se instala em casa alheia como se fosse sua. Não havendo nada a fazer em relação ao que é público, nem uma margem de privacidade a fazer valer dentro deste vasto campo aberto, restaria o apelo à consciência – não fosse esse acessório de luxo, que os ditos indivíduos não saberiam com que moeda pagar.

 

17
Jun25

Os Silvas

Sónia Quental

         No Condomínio Lunar, as manhãs começavam buliçosas. Muitos tinham a impressão não confirmada de que as paredes estavam cada vez mais próximas, acentuando o aperto dos cubículos habitacionais. Às sete da manhã, os moradores preparavam a sua estratégia para sair de casa sem cair nas garras dos Silvas: o esquadrão engravatado de monóculo térmico que lhes montava guarda nos arbustos das redondezas, composto maioritariamente por agentes imobiliários.

         O cerco tinha um duplo propósito: extorquir os apartamentos aos legítimos proprietários, para serem vendidos pelo quádruplo do preço original, até que não sobrasse nenhum no edifício, e alargar as suas fileiras, recrutando novos Silvas para a missão. Os freelancers eram as presas mais fáceis e apetecidas – e os recrutas mais convictos depois de trocarem as calças de ganga puídas pelo fato impessoal de gente com direito a ordenado, que só precisava de saber repetir coisas vagas, como: “O processo ainda se encontra em análise”.

         No lado que em tempos fora o crescente da lua, mas que agora também mingava, o Toni esfregava vigorosamente os braços e as pernas com óleo de cânhamo, na esperança de que o efeito combinado do cheiro e da oleosidade mantivesse os Silvas à distância. Por algum motivo, o crachá de Amigo Certificado, que tanto suor lhe tinha custado, não demovera os agentes, provocando-lhes antes uma sanha capaz de congelar qualquer pulsómetro da Felicidade. Talvez já não bastasse ser-se uma pessoa de bem naquele mundo, cogitava ele – ou então era o faro apurado dos Silvas que lhes dizia que o Toni ainda cedia ao pecado da gula.

         A barbatana improvisada fez o Emílio acordar dorido depois das práticas noturnas: andava a estudar o teletransporte e as projeções astrais, para uma fuga limpa, sem rasto e sem encontros indesejáveis, mas só conseguia fazer desaparecer o membro inferior (esse nunca tivera dificuldade em mingar). Como ainda não conseguira entrevistar o holograma de Jesus, a quem esperava extrair os mais avançados segredos esotéricos, continuava a vocação de autodidata que já o tinha transformado em escritor e poeta no seu longo percurso pela Universidade da Vida.

         Na ponte trémula que ligava as duas metades da lua, o Leitor Ufano descobrira que os novelos de cordel não serviam apenas para tricotar camisolas e treinar remates à baliza: podia lançá-los mais longe e prendê-los aos ramos das árvores, abrindo uma rota de fuga aérea, com o músculo do intelecto dispensando a força de braços. Mal podia esperar pela próxima disputa amigável, para esfregar a proeza na cara dos pavões dos Aferradinhos a Deus.

         Terminada a marmita para o almoço, a Maria das Dores era a única que saía pela porta da frente, afastando os Silvas à paulada, enquanto trauteava o Nessun Dorma e distribuía panfletos sobre os benefícios do mindfulness.

 

13
Jun25

Mudança de estado

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-06-13 133925.pngA repetição é um dos mecanismos da memória e da aprendizagem. Precisamos de ler, de refletir, de fazer e experimentar para saber. Mas muitas vezes o conhecimento fica-se pelo toldo do pensamento: é um saber que o escape do intelectualismo impede que desça ao corpo. É por isso que podíamos dar palestras e escrever livros sobre assuntos em que investimos a fundo ao longo dos anos sem termos mais do que um conhecimento puramente teórico a respeito deles. É por isso também que nos deparamos tantas vezes com situações já nossas conhecidas, esquinas que dobramos muitas vezes e que achamos saber contornar e desenhar de olhos fechados. Achamos que aprendemos a lição – e até podemos ter aprendido. Mas as imagens do mundo nem sempre acompanham o nosso ritmo, aparecendo às vezes com desfasamento, e ali estamos nós outra vez, a perguntar-nos o que falta aprender, qual é a alínea da sublição que nos escapou das outras mil vezes.

         Só que o que falta não é saber: é integrar. Não basta saber com a cabeça: é preciso uma mudança de estado, passar do saber ao ser, que representa o último estágio do conhecimento – aquele que dispensa a ação para criar. É um estado que não obedece de forma linear ao nosso esforço e vontade, encontrando-se fora do alcance de qualquer estratégia. Quando vem, nem sempre é de uma vez só: a instalação é faseada, com avanços e recuos sacudidos por momentos de exaltação e dúvida. Lemos ou ouvimos uma frase conhecida e há um clique que transmite um lampejo de compreensão transformador. Ou cruzamos aquela esquina manhosa e sentimos que ela continua lá, mas nós não. Estamos ali, mas não estamos ali – não da mesma maneira. Agora, o corpo também sabe. Não precisamos de continuar a repetir fórmulas para saber o que fazer. Sabemos responder, momento a momento, a cada esquina que encontramos. Deixamos de analisar se a esquina é a mesma ou se é diferente. A dada altura, elas desaparecem, porque o eixo do mundo mudou. Sempre que mudamos de estado, o mundo começa outra vez.

 

Balance and strength come from being grounded in reality whilst reaching for the stars.

Amoda Maa

 

Imagem: baralho Rider-Waite

07
Jun25

Palato

Sónia Quental

         Ensinaram-me a calar-me para manter a paz. A engolir o que sentia, embrulhado com o arroz seco de domingo, que durava a semana toda. Ensinaram-me a sorrir para a fotografia (mas isso não aprendi). Ensinaram-me a falar baixo, a não incomodar. Não ocupar espaço. Ensinaram-me a ser responsável, a levar às costas o meu fardo e o dos outros, tal era a minha eficiência. Ensinaram-me que esse era o preço da responsabilidade. Ensinaram-me a ser a minha própria mãe e o meu próprio pai – e os dos outros também. Ensinaram-me que precisava de adoecer se queria que cuidassem de mim. Ensinaram-me que tinha de ser a melhor para merecer uma aprovação sumida. Ensinaram-me que mesmo assim os outros seriam sempre melhores. Ensinaram-me que só a crítica merecia voz, porque os elogios estavam implícitos. Ensinaram-me a ser boazinha, a não reclamar. Ensinaram-me que a verdade não era para se ver, menos ainda para se dizer. Ensinaram-me a ser bem-educada, a aguentar mais, exigir menos.

         Habituaram-me a ficar para depois. Habituaram-me a ser esquecida: num tanque, numa eira, no meio de gente que falava alto e reclamava e não se importava de incomodar. Gente que tinha mãe e pai de seu próprio direito, que não se cansavam de fazer vénias à própria prole. Assim cada um ocupava o seu lugar: os que escondiam os quilates que lhes sobravam e os que empolavam os predicados que não tinham.

         Educaram-me para ser palatável, uma palavra que me ficou a ecoar no pensamento quando a ouvi por estes dias. Depois de tanta pedagogia, tem sido uma vida a redescobrir a minha paleta de sabores, desmanchar tudo o que não devia ter aprendido. Agora sei que não basta desaprender uma vez e que é preciso lembrar muitas vezes que não tenho de agradar a outros palatos. Amor que o peça não é digno de mim.

 

Juncos verdes - B&W.jpg

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

03
Jun25

Queda livre

Sónia Quental

         Era demasiado o esforço para não cair. Não fazia mais do que segurar-me de pé, tentar não cair outra vez de bicicleta, não tropeçar nos próprios pés, não esfolar os joelhos, não andar toda pisada. Escolher sapatos que não magoassem e me deixassem andar sem bolhas nos pés.

         Gostava de caminhar, mas não de cair. Gostava de caminhar para sempre, sem chegar a lugar algum, embora achasse que queria. Transpirava debaixo do sol imaginando procurar alguma coisa séria, mas o que gostava era só de andar. Mas não de cair.

         Se me desmoronasse por acidente, em que bocado estaria eu? Seria a soma das partes ou estaria engastada nalguma? Continuaria a ser a mesma se perdesse alguma delas?

         O esforço de evitar as quedas antes as trouxe dobradas. Continuava a mesma criança de joelhos esfolados e algodão com água oxigenada, a limpar as feridas teimosas, sempre triste, sempre zangada. Tentaram empurrar-me para a felicidade de fazer de conta que todos traziam vestida, sem conseguir.

         O que aconteceu foi que deixei de me importar com as quedas. Passei a cair com mais graça, com mais intenção – às vezes ainda triste, às vezes zangada ou as duas coisas ao mesmo. Descobri que estou em todas as partes e em nenhuma. E quando a felicidade vem tratamo-nos por 'tu'.

 

 

Once the tempest has moved through you, you are left clean and naked, stripped of the burden of pretending to be who you are not. And in this naked awareness, you see that you’re not really falling apart – you are falling open.

 

Amoda Maa, in Falling Open in a World Falling Apart

 

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