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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

31
Out25

A margem e o centro

Sónia Quental

The personality vehicle I have incarnated into has mostly been fragile and frequently brought to its knees by life’s turmoil. But I see now that throughout it all there was (and continues to be) a disciplined mind and rebellious spirit. I have never been able to conform to society’s rules about family, work, or career (often to my own detriment). Throughout my life, I have chosen to sacrifice comfort and security for freedom.

Amoda Maa

 

 

         Para se andar com as costas direitas, é preciso caminhar muito pela margem, com elas voltadas para o centro. O meu centro é a margem dos outros, enquanto o deles para mim é quadrado. E aquilo, aqui tão longe, que pareceria exílio e deserto, é um jardim tão redondo que derrete o olhar, com flores que nenhum quadrado conhece. Aqui, o silêncio não é ermo nem vértice, mas maravilha por estrear, que a mudança de estação não estraga. Na margem, posso andar descalça, como Deus manda, e fechar os olhos quando durmo. Os animais são ímpares e majestosos, não dizem “bom dia” nem “obrigado” quando se comem, tão-pouco sentem a obrigação de retribuir favores. Imagine-se que nos jardins da periferia a consciência não pesa. Cada dia é menos dia, à medida que o tempo se desfaz. Da noite, só a memória resta.

 

24
Out25

Confundir para reinar

Sónia Quental

         Não tenho televisão há tanto tempo que já nem penso naquilo que é o meu normal. Em compensação, o computador faz horas extraordinárias e leva-me muitas vezes ao YouTube, de que a IA também tomou posse. De há meses para cá, têm-se multiplicado os canais que reproduzem ensinamentos de autores conhecidos, vivos e menos vivos, com vozes que imitam as originais e conteúdos suficientemente próximos para serem reconhecidos, embora nem sempre.

         Desde Jung – um dos grandes favoritos – até Alan Watts, Shi Heng Yi e Mel Robbins, muda a personagem, mas a mensagem é a mesma, às vezes palavra por palavra. Quanto mais clico em “Não recomendar este canal”, esperando que a plataforma se atenha às minhas preferências, mais profusamente eles brotam, manuseando os conceitos e o jargão que estiver na ordem do dia, e passando por cima de anacronismos óbvios. Os criadores dos ditos canais descobriram miraculosamente segredos nunca revelados dos vultos mais eruditos e influentes da nossa cultura e prestam-se a partilhar com o público as pepitas de ouro extraídas de baús misteriosos. Consta que os sábios de outros tempos tinham resposta enciclopédica para tudo e uma visão profética dos dilemas dos nossos dias, dominando a teoria do apego e as linguagens do amor de trás para a frente e da frente para trás. 

         Se numa fotografia gerada por IA ainda se consegue perceber que o Ronaldo só tem quatro dedos na mão, quem não conhece a obra dos autores mimetizados de forma grotesca por estes canais não tem à primeira vista como distinguir o verdadeiro do falso, com o falso a sobrepor-se cada vez mais ao que é autêntico. Desde a distorção aparentemente inócua do pensamento e das palavras do autor em causa até à mais pura fabricação, não falta por onde escolher. Que o YouTube permaneça impassível e faça possivelmente lucrar estes oportunistas, depois de nos anos da “pandemia” ter expulsado tantas vozes humanas que tiveram a ousadia de divergir da narrativa oficial, é de lastimar.

         A esta hora, muitas figuras do passado andarão às voltas no túmulo com a desfiguração do legado que deixaram. Os plagiados do presente, com um valor mais questionável, terão de se haver apenas com a azia no estômago, apesar de a publicidade não deixar de os beneficiar. A mim, o bigode omnipresente de Jung aproveitou hoje um momento de distração para me sussurrar num título que “ele” estava a pensar em mim, expondo o defeito da IA nessa peganhenta vontade de agradar. Os sinais vão ficando cada vez mais subtis, mas eis que se veem.

Tanques (3).jpg

Fotografia (recorte): 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

13
Out25

O novo galo de Barcelos

Sónia Quental

Nota: A saga doméstica das baratas terminou por cá há quase um ano, depois de os responsáveis pela infestação terem abandonado o edifício, mas lá fora parece iminente. Depois de ter começado há alguns meses a ver baratas mortas nas ruas de diferentes zonas do Porto, encontrei hoje a notícia de que os autocarros de Londres estão infestados delas.

            Não me parece que seja coincidência nem que o tema seja irrisório, mesmo para quem ainda não tenha tido a visita destes bichinhos crocantes. É assim que, depois de ter abandonado a sátira neles inspirada, trago da “gaveta” um texto interrompido que retoma o agravo. Agora, que a UE se mostra cada vez mais empenhada em punir o "discurso de ódio" e que a China se tornou uma das visitantes diárias deste blogue, prefiro não estabelecer nexos causais. Eles estão à vista e exalam odor.

 

 

O novo galo de Barcelos

 

         As baratas multiplicavam-se, graças a Deus, sem que Ele mandasse, marchando sobre o país de alto a baixo e de novo até cá acima. Com o êxito das primeiras experiências gastronómicas, Maria Benedita tinha lançado um canal de teleculinária, com página no Instagram e uma legião crescente de seguidores, todos ansiosos por experimentar a nova dieta recomendada pela UE.

         A matéria-prima era barata no duplo sentido da palavra e já tinha o hábito de se aninhar nos frigoríficos, poupando esforços de armazenamento. Com um sentido de oportunidade também ele providencial, a rede da Tuder Eats tinha começado a distribuir os ovinhos de inseto à refeição, por isso a população em peso já fazia criação em casa – a cavalo dado, não se olha o dente. Maria Benedita, uma babyboomer com veia empreendedora, não perdeu tempo a propor uma colaboração, oferecendo um livrinho de receitas com novos insetos a acompanhar as entregas. Mas o tempero do sucesso não lhe bastava: mais do que cozinheira, considerava-se criadora de tendências, uma visionária que queria fazer o país recuperar do atraso cultural.

         Sensível aos ventos que sopravam, Maria Benedita queria despedir o galo de Barcelos e adotar a barata como símbolo nacional, mais democrático e inclusivo – isto é, menos patriarcal. A cozinha parecia-lhe a ela que era ainda domínio da matriarca, e a barata era rainha. Mais do que renovar os ícones, era preciso reescrever o próprio hino, rasurar os arcaísmos do seu halo falocêntrico, substituindo-os por termos modernos, progressistas, no curto prazo em que hinos e bandeiras ainda perdurassem. Além de cozinhar, Maria Benedita agora escrevia, como todos os famosos, e não era só receitas. Quando lhe chamavam “poeta”, não corrigia para “poetisa”, declamando timidamente a versão revista do canto pátrio que ia propor ao Parlamento:

 

 

Filhos do mar, gentil povo,

Gente pacata, fenomenal,

Vacinai hoje de novo

O rabinho de Portugal!

 

Entre as brumas da memória,

Ó maiorais, ouve-se a voz

Dos que traíram os avós

Trocando as voltas da História!

 

Às baratas, às baratas!

Para o planeta salvar

Às baratas, às baratas!

Pelo ambiente bradar

Contra as nações,

marchar, marchar!

 

11
Out25

Malhas

Sónia Quental

 

         Era muito criança, ensinaram-me a fazer malha. Como é fácil imaginar, não havia outras meninas na pré-escola com tal ocupação, concentradas no ponto de liga e no ponto de meia – antes entretidas com as casas das bonecas. Tristemente, a malha não vingou e os dotes femininos terminaram aí. Talvez pela ocupação bizarra, foi a idade em que tive o primeiro cinturão de meninos à volta, dispostos a bater nas outras meninas por mim. A professora zangou-se. Pus-me de cócoras, decidida a treinar para ser invisível. Assim caminhei por penitência oferecida – até desmanchar a malha e o engano.

 

-

 

Tentaram muito

ensinar-me a ser humilde. Tentei

muito aprender e saber.

Só o cabelo aproveitou a lição, caindo-me

com uma alegria danada.

 

Ao fim e ao cabo, a humildade não pegou,

mas o cabelo renasce corado, de pé.

 

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