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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

04
Abr24

Cura para a insónia

Sónia Quental

Lembro-me de quando aprendi a fazer aviões de papel (a versão simples e a elaborada), da bola que fiz pela primeira vez com a chiclete e do vizinho que me ensinou a assobiar com os dedos. Guardo a imagem fixa dos pirilampos que apanhava e agasalhava na mão, atinando já de pequena que precisava de secreta luz para me fazer notar. Fora essas estreias, todas antes dos 10 anos, as Peta Zetas na boca e o “f” minúsculo desenhado na perfeição, desde então tem sido sempre a descer. Não houve outra habilidade que me fizesse sentir igualmente capacitada nem primeira vez que voltasse a ser a primeira: a face da Terra era já conhecida e o poço do furor literário praticamente secou.

Foi por isso que atirei as febres lá para o alto e que passei a aspirar ao impossível: transformar chumbo em ouro, achar a galinha cor-de-rosa já aqui mencionada, encontrar o ponto certo do molho de mostarda e mel, curar a doença mental no mundo, conhecer a identidade do Batman. São esses os motivos da minha insónia. Com tanto que fazer, não esperem que me deixe deter por políticos a distribuir pevides na rua, quais testemunhas de Jeová convertidas à pressa.

Desde os tempos da Rua Sésamo que sei que é preciso alguém para martelar, visto não podermos ser todos astronautas nem mediadores imobiliários. Assimilei a mensagem e peguei no martelo, mas não escolhi madeira barata. Canso os braços nas noites brancas, porque é preciso torná-las mais brancas e as noites não são compassos de espera. É nelas que o trabalho se afunda, que a vigília se afia. Se caio no sono, há um cão que me morde as canelas para os olhos abrirem.

Os pirilampos viajaram comigo para alumiar a madeira enquanto cavo novos veios de luz. Tudo para que os olhos do Amor se voltem uma vez para mim: não me importo de ser invisível desde que brilhe no breu.

 

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Modelo da fotografia: Paulina

2016 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

31
Mar24

Batman

Sónia Quental

Em vez de jejuar, passei a Sexta-feira Santa a admirar o maxilar do Batman. Tenho vasculhado as ruas de Gotham à procura dele.

A Páscoa serve o mesmo prato de superficialidade que os outros dias, coberto de açúcar e ovos moles. Não há leituras de interesse para lá das opiniões sobre política, alterações climáticas e os rituais católicos que marcam a época, havendo quem proponha calar a alegria para trazer Jesus a nós. Não duvido de que a quantidade de negócios que passou a fechar no dia de Páscoa seja sintoma de uma revivescência súbita da religiosidade do povo, que vai para a neve receber Jesus.

A minha penitência é procurar o maxilar do Batman nas ruas inertes, enquanto os pés não fizerem bolha. Não tenho o treino de quem se arrasta a Fátima ou a Compostela para cumprir promessa: já não faço juras em voz alta e escolho as minhas romarias. À data, investigo um maxilar extinto com fervor igual ao de quem celebra a ressurreição com o glacé nos dedos.

Recorto no céu o SOS da minha descrença, que o gozo da chuva desmancha para abrir um arco-íris intermitente, anunciando o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Que o Batman me salve do melaço e das marchas que desfazem o cinzento da tradição. Dois mil anos depois, eles ainda não sabem o que fazem.

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Mar24

"Trivia"

Sónia Quental

        Sento-me, preparada para esperar, quando recebo um e-mail com um inquérito sobre o que é a beleza nos dias de hoje. Um estudo sobre a beleza “real”. Ocorrem-me fragmentos de um questionário que Luís Quintais promoveu a poema: “Em que medida o incomodam sentimentos de predestinação? Nada? Um pouco? Moderadamente? Muito? Muitíssimo?”

        Chega a minha vez. Perguntam-me se quero acelerador. O cronómetro grita em surdina: acelera, acelera. Digo: “Não”. Desacelera. 35 minutos com a tinta. Como se me ouvisse, na rádio uma música desatualizada fala de chamas eternas e destino. Ainda não sabe que o destino é um algoritmo. A beleza, estatística de cabelos brancos.

       Enquanto me torno mais carvão, a cabeça rascunha. Consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo e há que aproveitar quando o tempo desacelera, mesmo que as mãos crispadas nos joelhos ainda estejam a contar. Desassossego nos momentos de transição, principalmente se espremidos pela pressa. Queria ter comigo o Ensaio sobre a Espera, de Andreia Köhler, que vinha muito a calhar, mas ainda não o comprei.

        Faço antes uma leitura ligeira, mas esperançosa: como curar a dor de costas através da conexão mente-corpo, mas nem a desaceleração dá tempo para praticar. No telemóvel, uma fotografia de uma página do Tao Te Ching aberta ao acaso (faltou-me a paciência para a copiar à mão): “Quem se põe em bicos de pés não se mantém ereto./ Quem estica muito as pernas não pode andar”.

        Tudo o que precisava de saber sobre dores de costas e predestinação. Quanto à beleza, tendo a concordar – moderadamente, isto é.

 

13
Mar24

Domingo, manhãs

Sónia Quental

Saio nas manhãs de domingo à hora a que apenas os turistas japoneses cobrem de flashes a Capela das Almas. Nesse momento de transição, em que a luz e a sombra dão de ombros uma com a outra, a coexistência de fenómenos contrários está em evidência.

Ao lado da loja de manutenção de bicicletas, onde um grupo de ciclistas dispostos marca encontro todas as semanas, emerge de uma cave um bando de vampiros, sofrendo as dores do alvorecer com um montinho de erva na mão, que deduzo não será incenso nem mirra, contemplando-o como que esperando que a luz do dia também o ponha a fumegar. Não fico para ver, embora note que a indumentária daquelas que já não posso jurar serem do sexo feminino deixa pouco à imaginação.

O Facebook avisa-me que é dia de eleições. No Twitter (X), alguém brada que as mulheres não são nada sem a vocação da maternidade. Quase me engasgo com a torrada, mas consigo reunir forças para lhe enviar à distância a minha tísica compaixão maternal. Atravessa-me o pensamento a experiência do horrendo e do sublime no baile de domingo passado, sem saber o que esperar deste. Ao passo que o sublime é fugaz, o horrendo tem o hábito de se pegar, por mais que o sacuda.

Pelo caminho, a memória da semana traz-me ecos sumidos: encaixa a baciaaperta os glúteos. Pessoas com a chave na mão pedem duas vezes ajuda para lhes abrir a porta de casa, apontando-me a vocação a que sacrifiquei a maternidade: facilitar entradas.

Quisera seguir os passos de Sophia neste meu caminho da manhã, mas não é época de figos pretos no mercado, que tem hoje o seu dia de descanso. Aqui não há cigarras que cantem o silêncio de bronze – apenas homens que sacodem os tapetes do carro. Onde quer que a manhã pouse, o sublime chega-se com a sua lágrima de mel numa paisagem de azulejos, harmonias e contrastes. E o amor do Invisível pelas coisas visíveis afigura-se ralo só a quem precisa de altar para deitar os joelhos ao chão.

 

2019 © Francisco Amaral - todos os direitos reser

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Fev24

O lado negro da espiritualidade

Sónia Quental

Não sei precisar quando o conceito de “ego” entrou na moda nos meios espirituais e todos passaram a contar como o “seu” ego tinha feito isto e aquilo com toda a autonomia, num estranho exercício dissociativo que o transformou numa espécie de animal de estimação, separado do indivíduo que assim se expressava. A pessoa que falava parecia desempenhar o papel de mónada iluminada que descia por instantes à Terra para censurar o mau comportamento da mente que tinha ficado a animar aquele corpo, presa a tendências retrógradas que não eram de sua responsabilidade.

Nos grupos que tratavam o trabalho espiritual com marcada austeridade, o desconforto era constante, porque a tendência a vigiar o ego tinha planos de expansão e não se ficava pelo próprio: precisava de vigiar também o dos outros. Assim, a pessoa dita “consciente” tinha de andar em contrição permanente, com a culpa do pecado original gravada na testa, o semblante grave e os ombros curvados, não fosse alguém acusá-la de caminhar demasiado direita e querer amestrar-lhe o ego, lembrando-lhe todas as suas projeções, compensações e programações herdadas.

Debbie Ford, uma das autoras que trouxeram à ribalta o trabalho com a sombra, publicou no final dos anos ’90 o livro The Dark Side of the Light Chasers, em que expunha as pretensões dos "trabalhadores da luz", chamando a atenção para a importância da integração de todos os aspetos do Eu. Não seria um livro que Ramana Maharshi tivesse escrito, mas abriu espaço a outras vozes, que preferem trabalhar mais perto da terra, convidando-nos a sujar as mãos, a voltar ao corpo e a deixar de castigar o ego por crimes presumidos. Duas delas são as de Amoda Maa e Miranda Macpherson, que reconfiguraram a espiritualidade pela rendição do feminino – e não há como passar ao lado de Mātā Amritanandamayī Devi, ou simplesmente Amma, a propósito de quem, no documentário Darshan: The Embrace, alguém que se sentou perto dela durante as horas intermináveis que passa a abraçar pessoas dizia ter sentido que o tempo deixara de existir.

There were times (...) when I was just like any other woman (...) at times feeling like a traumatized animal shivering on the floor. All of the models of spiritual realization I had worked with previously, which had been delivered through the masculine lens only, might have viewed my process as a failure to remain in the no self-state. However, the transmission of ego relaxation revealed a much more integrated, feminine approach to walking the path – to surrender in and through all that we encounter, including our animal humanity and all of our emotions.

Miranda Macpherson

 

De minha parte, recordo como, depois de vários dias de um curso de terapia alternativa que fiz em Madrid, o momento que mais me tocou foi quando o motorista do transfer que me levou do hotel para o aeroporto me contou o segredo da felicidade. Era um domingo de Páscoa e o atraso do avião fez-me lamentar a conversa abreviada pela pressa.

À semelhança dessa experiência, aprendi mais sobre espiritualidade a dançar do que a estudar teosofia. Conheci mais de perto o amor no olhar daquela monja do que em qualquer palestra que tenha ouvido. Ensina-me mais quem ocupa uma caixa de supermercado, as pessoas que vejo trabalhar com energia e alegria, sem contar os dias que faltam para chegar a sexta-feira, a professora que repara em quem não foi à aula e quer saber o que lhe aconteceu.

Foi talvez o mesmo que levou os reclusos, na última sessão de formação que dei no estabelecimento prisional masculino de Custoias, a entrarem na sala antes da hora, encurtarem o intervalo, com a formalidade voluntária da fila indiana, e fazerem em silêncio tudo o que lhes pedi, declarando finalmente o carinho que tinham por mim. Não que tivesse sido branda com eles (pelo contrário): era que me importava, e eles tinham-no testado vezes suficientes para se convencerem disso.

Nos dias que correm, mesmo que ainda não tenha largado a minha máquina de etiquetas e continue a fazer separações, nem todas essenciais, posso dizer que uma das que deitei fora foi a que dizia “espiritual/não espiritual”. Aprendi a deixar os intelectualismos de lado e a tomar posse de mim e da vida. Divisão por divisão, em vez de fustigar o ego, escolho dançar com a sombra que projeta. Acho graça quando me calca os pés: a sintonia é plena.

 

 

23
Fev24

Filosofia do lixo

Sónia Quental

 

Many of the trees along the way were hung with plastic bags or the remnants of sheets of polythene that flapped in the wind like Buddhist flags on a high Himalayan plain.

Theodore Dalrymple

 

         

Fiquei a burilar durante meses numa crónica que Tiago de Oliveira Cavaco publicou no Observador a propósito das mulheres que se maquilham nos transportes públicos, gesto que se dizia tentado a atribuir à humildade. Tendo eu este atributo na mesma categoria que o Big Foot e as famílias felizes (ouvem-se relatos, mas os avistamentos são raros), a explicação ficou-me atravessada, sem que alguma vez a aceitasse por completo, pela sua ingenuidade um tanto ou quanto perra.

Tão distinta é a origem que encontro para o fenómeno que não hesito em relacioná-lo com o lixo. Na breve passagem que fiz por Londres, no último ano, a impressão que a cidade me deixou foi de tremenda deceção, em parte devido à evidente falta de planeamento urbano, ao lixo e sujidade que vi nas ruas, que me levaram a pensar que o Porto, um concorrente de peso ao novo troféu de Cidade Imunda, teria de se esforçar um pouco mais para lhe chegar aos calcanhares.

Prova de que não me equivoquei é a análise que Theodore Dalrymple – descobri-o mais tarde – tem vindo a dedicar ao tema do lixo em Inglaterra, em artigos avulsos e na obra Litter, que lhe é inteiramente votada. A cultura em que Dalrymple enquadra a prática generalizada de deitar lixo para o chão corresponde à de uma nova geração em que os hábitos crescentes de consumo de fast food e o desprezo pelas tradições familiares se aliam à apoteose de uma autenticidade e espontaneidade desregradas. O retrato pintado é de uma população bárbara que, divorciada de valores históricos e religiosos, não pode senão prestar culto a si mesma (cabe aqui a vénia ao autor, que é ateu, mas reconhece o lastro da religiosidade).

Britons now drop litter as cows defecate in fields, or snails leave a trail of slime.

Theodore Dalrymple

 

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Não me parece difícil encadear esta síntese com a reflexão sobre as mulheres que se maquilham nos transportes e que trazem espelhinhos consigo, como Obélix trazia o seu escudo, nesse belo paralelismo que Tiago Cavaco faz na sua crónica. Embora o nosso país viva outra realidade, aventuro que o seu desfasamento face à sociedade inglesa contemporânea já não será tanto quanto poderia imaginar-se, e o amontoado de lixo aí está para sugerir que seguimos no mesmo trilho e que não são apenas migalhas que deixamos para trás. A diluição entre as esferas do público e do privado, a apropriação abusiva dos espaços partilhados e o exibicionismo vulgar, que acompanha a perda da introspeção e da profundidade em que já aqui tenho insistido, explicam quer a desenvoltura com que certos atos, antes considerados íntimos, se desempenham agora em público quanto a forma descomplexada como o lixo e o barulho atravessam paredes, infestam condomínios e degradam cidades.         

Os espelhos que as pessoas carregam, esses, não são apenas acanhados em dimensão, mas afoitamente distorcidos. Tenho para mim que seremos sempre chamados a prestar contas de como os polimos, se os empregamos para efeitos cosméticos de ocasião, para uma contemplação narcísica ou para um real caminho de aperfeiçoamento que devolva à beleza a sua virtude. 

        

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

20
Fev24

Divisões

Sónia Quental

No negócio de família, não gostava de atender ao balcão, mas gostava de etiquetar os produtos e de os arrumar na prateleira, um dos gestos concretos com que dava ordem e significado ao mundo. Da mesma forma, rotulamos e dividimos objetos e pessoas em categorias para fazermos mapas que nos situem, para nos defendermos do perigo, mesmo quando ele nasce de ficções ou embirrações pessoais. Tal como divido o mundo entre quem usa cinto e quem não usa, quem toma a meia de leite escura ou clara, morna ou quente (o que tem vastas implicações), há quem o divida entre pessoas simpáticas e antipáticas, bem-dispostas ou maldispostas – eu divido-o ainda entre as superficiais, que fazem divisões destas, e as profundas, que são as raras.

A superficialidade faz-me crispar a pele. Uma das coisas que não deixam saudades da época em que me deslocava para um local de trabalho era o “Bem-disposta?” com que me recebiam ainda antes de pousar pé no recinto – levando a crer que o modo como uma pessoa se apresenta, a sua forma de estar e de ser andassem ao sabor do vento, que sopra aleatoriamente numa direção ou noutra, e fosse preciso fazer medições cautelosas para os restantes adotarem a distância necessária durante o dia. Era a forma de nos dizerem que, se algo corresse mal, a razão não era outra além da má-disposição do culpado. Para quem gosta de dividir o mundo como os polos das pilhas, não haveria outra causa, mais substancial, para uma reação negativa do que a pessoa não se ter disposto como devia.

O mesmo quando vieram as “distâncias de segurança” e tentavam cumprimentar-me com o cotovelo. No dia em que decidi dizer não, obrigada, a pergunta que logo veio, “Acordaste maldisposta?”, ajudou a virar o resto que faltava de umas tripas que costumam portar-se melhor. Como se houvesse sanidade em andar a dar cotoveladas às pessoas e a evitar-lhes o bafo, com aquele ar gorduroso e pífio de “Chega-te para lá, mas somos amigos na mesma”. Também divido o mundo entre esses e os outros.

Há dias em que gostava de pousar a máquina das etiquetas, permitir uma certa desordem durante 5 minutos inteiros, misturar os preços, trocá-los até (arrepio-me só de pensar!). São as divisões que nos fazem sentir seres separados, saber onde começamos e acabamos, responder continuamente à pergunta “Quem sou eu?” na construção de uma identidade que se vai refazendo ao longo da vida. Acontece que tendemos a levá-las longe de mais. Eu levo: esqueço-me de como estar sem a labuta mental de rotular, dividir, embalar, como se não pudesse ser segura sem deixar de cartografar o território, e coisas e pessoas não pudessem mudar de categoria (não costumam, mas haja fé). Como se o mundo se desmanchasse se eu não lhe desse ordem.

Quando me visitam as vozes dos sábios realizados que passaram pelo planeta, soprando-me o seu neti-neti circunspecto (“nem isto, nem aquilo”), é impossível ignorar o fascínio das etiquetas fluorescentes e da máquina com um rolo novo já pronta a imprimir: de um lado, os iluminados; do outro, os remediados!

 

(A propósito de compulsões, aqui fica a torrente poética inspiradora de um obsessivo-compulsivo:)

14
Fev24

Quanto mais me bates

Sónia Quental

NOTA: Publiquei este texto em 2021 num blogue anterior. Republico-o aqui, após breve revisão, por conta da efeméride, com a recomendação de leitura do ensaio "Um amor de valentão" em A Vida na Sarjeta, de Theodore Dalrymple.

 

Só um amor frouxo é compatível com uma vivência pequena em que amar se torna um ato de modéstia.

 Montse Barderi

  

           

Ei-la com os olhos marejados, a coxa pisada, um relato aparatoso metendo polícia e a vergonha da credulidade com que acabara vítima de violência doméstica, depois de várias relações falhadas que a encheram de um temor que impunha distância. Entre a indignação e a dor, contava agora hesitante como durante o dia ainda lhe tinha ido comprar carne ao talho para deixar no apartamento que o pobre continuava a ocupar (o dela), porque não tinha onde ficar. Enquanto ela passava a noite no salão de cabeleireiro onde trabalhava, à espera de vaga na própria casa.

Pensei que fosse o fim da novela, que a vocação criminosa e as ações deletérias do indivíduo em causa fossem agora inquestionáveis até para quem se deslumbra com diamantes em bruto, que se afoita a lapidar. Um “amor” de mulher que se torna mãe, fazendo jus aos sacrifícios da incondicionalidade, que dá sem esperar pelo troco.

O ar de durona ferida com que narrava o seu epílogo e pedia segredo deu lugar, poucos dias depois, a publicações nas redes sociais em que se juntava ao coro de quem condena “julgamentos”, suplicando para o coitado empatia e amor. A dissonância cognitiva, assim preparada, instalou-se em pleno com a fotografia de Natal de uma família feliz em que o rosto do agressor ocupava, sorridente, o primeiro plano, desobrigando desde logo a minha consciência de silêncios prometidos e conivências para com quem assim traía a própria dignidade e me fazia também a mim sentir enganada. 

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O caso está longe de ser raro. Nem todas as formas de abuso são físicas, mas a variante psicológica é flagrantemente comum, tal como a cumplicidade que a vítima cede ao ofensor. Há um vínculo mórbido de lealdade que leva o objeto de abuso a encobrir e proteger o seu perpetrador, com quem se une contra quem quer que tente um apelo à razão.

Se o papel de “vítima” não tem género, falando desta vez de mulheres, estas são aquelas a quem Robin Norwood, na sua obra homónima, chama “mulheres que amam de mais”, cumprindo-me dizer que a descrição pertence ao foro da doença. Não se trata de pureza de sentimento, bondade nem abnegação sadia: o que nos faz correr atrás de quem nos maltrata ou faz do amor uma experiência de penitência, em que se é submetido a um jejum e privação constantes, é tudo menos amor.

Há cautelas a empregar quando se conclui pela inocência das “vítimas” que, numa relação parasítica e destrutiva, recebem também o seu alimento. Há uma gratificação subtil no papel do codependente, sofredor involuntário que não deixa de eternizar o próprio drama, mesmo correndo o risco de acabar em tragédia: o tango dança-se a dois. Não é que peça que lhe batam, mas é isso que se vê merecer e foi o hábito que criou - hábito não isento de provocações astutas. Até que a compulsão ganha vida própria e dá azo ao prazer masoquista da vida na iminência do perigo.

É preciso mais do que consciencializar e decidir para nos desenredarmos do ciclo do abuso: são muitas tomadas de decisão, um caminho de tentativa e erro em que se cai demasiadas vezes para o lado do erro, ao ponto de achar que na nossa história aquele é o único enredo. Os instintos ficam desregulados, vive-se no avesso das relações: fechamo-nos em copas para quem nos quer bem e damos alvarás a quem não tem esse bem em conta, com uma couraça que tenta esconder um coração estuprado, que escancara portas só para quem vem de assalto. A esse nos convencemos a entregar joias, contrato, domicílio permanente. No fim de contas, é a sensação familiar que nos moldou: quanto mais me bates, mais gosto de ti.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

11
Fev24

Pós-nupcial

Sónia Quental

Atrevo-me a dizer que sou a cliente ideal das livrarias. Não dou trabalho, arrumo os livros fora de sítio, sou de namoros longos e consumações súbitas. Quando avisto alienígenas de máscara, fico com vontade de lhes pegar na mão e fazer festas na cabeça, como nunca quis a animais ou crianças. Só os destituídos me inspiram o instinto maternal. Sou toda cuidados, sabendo que não posso aproximar-me demasiado nem fazer movimentos bruscos, porque os potros estão sempre a ponto de saltar. Não é domesticá-los que quero – já se vê que o são. É dar-lhes refúgio como a mim dão os livros por estarem ali.

Foram sempre eles a acalmar-me. Forravam-me as noites no primeiro ano de ensino. Só o seu peso na cama me serenava o sistema nervoso, que sabia que eu não devia estar ali. Talvez devesse ter percebido pelo cemitério ao lado da casa onde arrendava quarto, por onde passava todos os dias a pé. O mundo é um livro aberto para quem sabe ler, mas eu estava ainda a aprender.

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Era de longa data o meu caso amoroso com os livros, embora só naquele ano dividíssemos lençóis como manda o costume. Quando acordava, ainda lá estavam, sem as urgências dos amantes intermitentes. É a fidelidade que lhes devo que ainda me leva, cumpridora, às livrarias, mesmo que o amor já não tenha a sofreguidão da verdura. Depois de perceber que a Verdade estava numa prateleira mais alta, mas menos altaneira do que a mente, entrámos num relacionamento à distância, primos afastados em vez de consortes.

Endireito-os enquanto os funcionários se ocupam a fazer vénias a quem chega. Cavaqueamos mais em silêncio, lembrando tempos antigos. Se há algum que reluz com a promessa de raras vertigens, trago-o comigo. Mas procuro principalmente os volumes intangíveis, que não têm palavras que lhes deem forma, esses com o mesmo poder de despertar que os que me adormeciam outrora. Quando preciso de libertar a tensão, procuro as livrarias de papel, faço-me útil, deixo o corpo ir.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Fev24

De quatro folhas

Sónia Quental

           

Acredito nos amores à primeira leitura como nos amores e desamores à primeira vista. Infalíveis, uns e outros, ao olhar aguçado da experiência, à intuição que nas mulheres apura o passar do tempo, quando chegam a descobrir que não é cego o amor, mas vê bem ao longe.

Como a poesia de Adélia Prado, amei à primeira leitura o talhe dos versos de Amalia Bautista, que me persuadiram a comprar-lhe o Trevo. Não sendo feminista, há um sentir do feminino ao mesmo tempo selvagem e delicado que esparsamente me chama ao seu resgate. Estes vultos na poesia, outros na pintura e nas coisas do espírito, cativam-me pela violência simples e crua da emoção a caminho da transfiguração, de um corpo devocional do feminino com uma fisiologia distinta em cada uma delas, oscilando entre a adoração e o esconjuro.

Num mundo dominado por pretensões de racionalismo, lembram-nos que é no escuro que caminha a mulher, que por lá a leva uma fome primordial que resiste a planos, estratégias, à mais residual tentativa de controlo. Para apaziguar essa fome, há o ato de um canibalismo amoroso que não procura desculpas, o instinto acirrado de uma presa antiga, mantida a pão e água, como Amalia Bautista no seu “Em dieta”:

Deitei-me sem jantar e nessa noite

sonhei que te comia o coração.

Deveria ser por causa da fome.

Enquanto eu devorava aquela fruta,

que era doce e amarga ao mesmo tempo,

tu beijavas-me com os lábios frios,

mais frios e mais pálidos do que nunca.

Deveria ser por causa da morte.

 

           Acudiu-me por estas linhas a lembrança de um colega que, quando foi promovido a diretor, se propôs o desafio de ver quantas mulheres conseguia fazer chorar no gabinete. Eu também chorei uma vez, tenho as lágrimas como preciosas e atirei-lhas quais pérolas de Virgem contrariada, que ele não saberia apreçar, apesar da cobiça que tinha por elas. Lágrimas que uns querem ganhar, erguer como troféus, e a outros espantam.

Há-os como ele, que não sabem que é com as lágrimas que a mulher se regenera e segura o mal à distância: “(…) há algo na pureza das lágrimas verdadeiras que anula o poder do demónio”, diz Clarissa Pinkola Estés no seu formidável Mulheres que Correm com os Lobos.

Depois da minha oferta, fiz o que outras não fizeram: juntei o resto das lágrimas e vim embora. Ainda são elas que me salvam quando fico sem jantar e me apetecem os corações que um dia me deixaram à míngua.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0