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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

04
Fev25

Uma Aventura... no Supermercado

Sónia Quental

Parede castanha (Afurada) (3).jpg

Ir ao supermercado é daquelas coisas que se faz porque tem de ser. Quem, como eu, abomina as multidões, procura as horas de pouco movimento, o que o trabalho ainda me permite fazer. Como em qualquer viagem que não seja sem destino e sem pressões, também estas são planeadas: tendo em mente aquilo de que preciso, programo ir do ponto A ao ponto B, num tempo que consigo calcular aproximadamente, evadindo-me pelas caixas de autoatendimento.

         Tratando-se de uma tarefa necessária e não de uma visita turística, gosto que seja rotineira, de poder contar que um certo produto esteja numa certa prateleira, para poder despachar o assunto e vir embora. Ou que não seja despachado: também posso fazê-lo nas calmas. É um dos motivos por que gosto de ir a sítios habituais: sei onde as coisas estão. Ou sabia. Ignoro se é um estratagema arquitetado pelos hipermercados para desorientar os clientes ou se sou mesmo eu que sou dada às teorias da conspiração, mas todas as semanas mudam os produtos de lugar, e nem sequer é para um lugar próximo e nem sempre para um local óbvio. É assim que aquilo que poderia ser uma visita de médico facilmente se transforma numa peregrinação lacrimosa por corredores que não têm fim, em que a calma já lá vai.

         Pode parecer um aborrecimento insignificante, e realmente é, em face das calamidades que assolam o planeta ou de questões pessoais de maior gravidade. No entanto, são as pequenas coisas num mundo em mudança acelerada e incerteza crescente que nos dão ou tiram a estabilidade e um certo conforto psicológico. Quando, entre as questões prementes da sobrevivência, a cabeça e o espírito aproveitam estes momentos triviais para se ocuparem do sentido da existência, a última coisa que quero é ter de andar à caça das bananas, atropelada por carrinhos de compras, bebés e paletes.

         Isto vindo de alguém que também não vai ao supermercado para conhecer potenciais parceiros, como vi noticiado há alguns meses. Se já é difícil encontrar a fruta, já para não dizer escolhê-la, imagino o que seria ter de decorar todo o código de sinais dos esquemas de acasalamento modernos e ir sondar corredores dúbios, sem posição fixa, com um ananás virado ao contrário. E isto antes de chegar aos preliminares.

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

31
Jan25

Made in China

Sónia Quental

Feita a encomenda numa das maiores lojas de comércio eletrónico, chegou a surpresa: o produto vinha da China. Pode ter sido a contrariedade a toldar-me a visão, mas comecei a ver chinesices por todo o lado.

Aquela obra premiada e muito recomendada de uma jovem escritora catalã, que acabei por ceder a comprar: ginástica chinesa. Bonita de se ver, mas mais nada.

A autobiografia do papa Francisco, com o título a dizer Esperança: chinesada de mau gosto.

Os canais de streaming, onde não há série nem filme que não meta cena de homossexualidade: chinesice pegada.

A chinesice da esquerda e da direita, da política e dos políticos que ainda há quem acredite que vão salvar o mundo. As opiniões, as redes sociais, os podcasts, o entretenimento barato e o analfabetismo que se vê em tantos blogues. A IA a querer entrar por todas as frestas, com um exército de assistentes, acólitos e vendedores sem escrúpulos: chinesada da grande.

Os elogios mútuos, os falsos humildes, os penitentes vaidosos, as máscaras ambulantes, a mentira que galga de trotinete estradas, passeios, pessoas, mãos, olhos, bons dias, os beijinhos que um dia a terra cuspiu e que são tempero para tudo, as regateiras do mercado a chamarem-me “querida”… tudo made in China.

Lançada que estava neste inventário furioso, a memória prega-me uma partida, abrindo a janela para a cena remota em que uma colega da faculdade diz que falou de mim ao namorado:

- É que pareces uma chinesinha.

 

15
Jan25

Vou ali preocupar-me

Sónia Quental

 

No sólo de miedo vive el hombre. Aunque mucho hijo de puta nos quiera alimentar de eso constantemente. 

Isra Bravo

 

 

Captura de ecrã 2025-01-15 193408.png

A Preocupação era uma presença palpável na casa, o animal de estimação que não tínhamos, crescendo em tamanho ao mesmo tempo que a família aumentava em largura e o espaço encolhia. Mais vezes se esqueceram de mim do que da Preocupação, um colete salva-vidas sombrio que ia de férias ia connosco, não fôssemos afogar por excesso de descontração.

Por fim, quando à custa de tanta engorda a Preocupação atingiu proporções descomunais, começou a entranhar-se na pele, a infiltrar-se no ADN, até se instalar num pano de fundo mental, um véu que cobria tudo em que tocava. Eu, que era capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo, conseguia ter uma Preocupação familiar em funcionamento automático, uma defesa supersticiosa contra tudo o que pudesse correr mal, com atualizações diárias de todas as calamidades iminentes e prováveis.

          Com o tempo, e não satisfeita com a capacidade sobrenatural de pairar sobre tudo, a Preocupação começou a querer ser mais do que uma omnipresença fantasmagórica, exigindo tratamento de parente vivo. Comecei a ter de parar o que estava a fazer para me preocupar ativamente. Não posso falar: estou preocupada. Mais do que manifestar o poder de mobilização que as vedetas têm quando atravessam a passadeira vermelha, a Preocupação era como um buraco negro, que tudo sugava e contagiava de negrura.

          Encarei sempre com suspeição as pessoas despreocupadas. Invejava-lhes a leveza do otimismo, a facilidade com que sacudiam aquela caspa de ansiedade que não me largava, e tudo lhes corria bem na imprudência de não usarem colete salva-vidas. Por mim, quanto mais me preocupava, mais carregado me parecia o horizonte, mais motivos de preocupação tinha. Apesar dessa inveja, era fácil associar a despreocupação à superficialidade, porque verdade é que conheci muitos raios de sol sem grande coisa atrás da testa, sempre prontos a declamar clichês cintilantes nos momentos mais escusados.

         Já a sabedoria despreocupada é uma conquista menos comum: captar alguma coisa do que é a vida e escolher abdicar da preocupação sem naufragar é outra loiça. Não se trata da simples capacidade de gerir as emoções nem de controlar os pensamentos. Para deixar a Preocupação definhar e a expulsar do espaço que ocupou furtivamente, precisamos de ter bem estabelecido em que é que confiamos, o que queremos alojar em nós, uma atividade que merece mais a nossa energia do que ceder à Preocupação, que mais depressa nos leva ao fundo do que nos mantém à tona de água.

         Mais poderia dizer, mas hoje prefiro a ligeireza e está na hora de terminar: tenho de ir ali preocupar-me (ou não).

 

Imagem: Tarot Illuminati

 

31
Dez24

Identidades

Sónia Quental

 

         Se fosse agente de apoio ao cliente num balcão de atendimento virtual, é certo e sabido que teria um álbum de recortes com as selfies que os utilizadores tiram nos processos de verificação de identidade. Seria algo como uma bolinha antistresse mental para descomprimir no pingue-pongue trocado com toda a espécie de criaturas que me passassem pela retina, quando a munição de empatia estivesse em baixo (e prevejo que rareasse com alguma frequência).

         Desde o primeiro “Sorria”, “Pare de sorrir”, “Encaixe o rosto na oval” até à derradeira estocada: “Não reconhecemos um rosto”, não é difícil conceber a fúria expressiva que fica registada no instante despreparado em que a câmara resolve disparar, quando o olhar do alvo fulmina a voz mecânica que o manda fazer o pino e ainda lhe pede bis. Pensando positivo, como é de bom tom, a imaginação tem a oportunidade de se exercitar num catálogo subtilíssimo de posições para a cabeça dentro da oval que a transportam ao celebrado “pensar fora da caixa” que muitos julgariam estar além da sua capacidade. Todos os intervenientes saem enriquecidos de uma experiência que, mesmo com curadoria, seria capaz de encher uma galeria de arte mais concorrida do que a dos instantâneos para o cartão do cidadão e que deve fazer a alegria dos agentes que se encarregam das revisões manuais. Num modesto terceiro lugar, estariam as fotografias de tipo passe.

         Enquanto aguardo o resultado do que poderia ser uma formalidade efémera, mas que no nosso mundo de (in)eficiências burocráticas e excessos tecnológicos é mais um teste à placidez da compostura, não sei se quero ou não ser reconhecida – o que me traz à mensagem de final de ano. Há quem diga que a identidade se constrói, o que supõe todo um trabalho, se não de reconstrução, pelo menos de manutenção e reparação, num afã que não traz grande coisa de novo enquanto nada for demolido. Os pequenos embaraços diários que os imperativos de segurança vão fazendo aumentar em quantidade e despropósito mostram que a identidade nos leva a um confronto constante entre perceção, projeção e realidade, que só poderemos apreender gradualmente – por motivos de segurança de outra ordem.

         O difícil da identidade é estarmos sempre a perceber que não somos o que pensamos que somos, sempre a soltar e a raspar a pele. É o desgosto de descobrir que por baixo de uma camada há outra ainda, que continua escurinha de fuligem, e mesmo assim continuar a raspar na esperança de chegar à pele de bebé, com aquele cheirinho que apetece comer, em sentido inverso à casca de fora, que acusa os efeitos crescentes da gravidade. Não quero com isto sugerir que andemos atrás de bebés para comer, mas aproveitar a imagem para deixar um voto simples, desta que nunca deu valor ao Ano Novo nem aos protocolos da data, mas que o redescobre nas manifestações de bem-querença que encham o ar: Ano Novo, Pele Nova.

Parede rosa (2).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

18
Nov24

Desconfiança cega

Sónia Quental

       

         Nunca esquecerei o dia em que fui chamada ao gabinete de Deus. Trabalhava há anos naquele centro de formação e só lhe tinha visto a sombra em ocasiões raras, muito à distância, o que alimentava a minha natural descrença na sua existência. Quando os meus colegas, educados a andar em bicos de pés graças a um temor sedimentado ao longo de eras, me diziam que Deus, também conhecido como “o doutor fulano de tal”, tinha mandado fazer isto ou aquilo, inclinava-me a achar que era mito, uma desculpa conveniente para mandos absolutistas, de origem incerta. Mas um dia, como contei, fui convocada a um gabinete, nada menos que instalado no cimo de uma torre, por esse ser que julguei que estivesse ainda menos ciente da minha existência do que eu da sua. Foi o dia em que aprendi que Deus sabe mesmo tudo, até sobre quem tenta cobrir-se com um manto de invisibilidade, e que os meus cabelos estavam lá, naquele gabinete cinzento, contados e medidos ao milímetro.

         Mesmo sentada, a figura de Deus era imponente e percebi que estava habituada a incutir um medo paralisante nos súbditos, medo indutor de respostas aleatórias e de uma boa dose daquela untura que dá brilho aos sapatos. Lá medo tinha eu, perscrutada de lés a lés por aquele olhar cortante, que parecia acusar-me de crimes que não me lembrava de ter cometido. Fiz logo ali uma recapitulação de vida, que podia muito bem estar nos seus momentos finais: terá sido aquela vez em que comi um bolinho de bacalhau antes do almoço e neguei o crime para escapar ao castigo? Ou quando cometi um erro num ditado, que estragava os 20 valores da prova global, e tentei disfarçá-lo com a borracha de apagar tinta, apenas para a professora soltar a régua raivosa no meu rabo virgem de aluna bem-comportada?... Tinha sido castigada por todos eles, por isso tentava freneticamente lembrar-me dos crimes sem castigo, que tivesse sido chamada a expiar. Sem saber, cometi ali mesmo mais um: a candura de responder com honestidade às perguntas de Deus, que, depois dos primeiros momentos de desorientação, ficou desarmado e acredito que tenha aderido à minha curta lista de fãs. Isto apesar de a recomendação que tinha para me dar ser a de usar de menos honestidade nos formulários de avaliação dos módulos.

Fundo branco.jpg         No entanto, não foi para falar da ética duvidosa de Deus nem para invocar o seu nome em vão que fui buscar este episódio ao meu baú de tesourinhos pavorosos, mas porque aquele demiurgo omnisciente e omnipotente foi a primeira criatura em quem percebi uma desconfiança esquizofrénica, apontada como laser a tudo e todos, sem a mediação do discernimento e com o poder formidável de fazer despontar nos inocentes a culpa daninha do pecado original. O desconforto de quem ocupava o outro lado da secretária não vinha de sabermos que estávamos em desvantagem numa cadeia alimentar bem armada nem de termos aprendido na catequese que era preciso regar a semente do temor a Deus: vinha da vara glacial da desconfiança, capaz de uma ação tão devastadora quanto a mais ardente confiança.

         Depois de Deus, conheci outras entidades semelhantes, e o ambiente de tensão que produziam não sofria alterações climáticas. A causa para esta doença da desconfiança não estava na falta de contacto humano ou de à-vontade social, na falta de espiões que montassem uma rede pragmática de omnipresença e nem sequer na falta de experiência: estava na escassez de uma inteligência que o atributo “emocional” só de forma imperfeita traduz. Era a falta de saber aprender com a experiência, a falta de cultivo desse discernimento que conquistou a má fama de “julgamento”: em suma, a falta de conhecimento da natureza humana. E, ironicamente, era a estratégia de compensação suprema para uma credulidade ou confiança cega inicial que, recusando encarar as trevas que envolvem o coração e as motivações humanas, escolhe o amparo inabalável da desconfiança – sem abdicar da cegueira. A segunda ironia é que a desconfiança cega tende a ser daquelas profecias autoconcretizáveis que têm a fortuna perversa de desencadear nas presas que escolhe os comportamentos mesmos de que busca defender-se, por pias que sejam as suas intenções.

         Como moeda, a desconfiança vem sendo inflacionada pelo assédio dos perigos que aumentam à nossa volta, de que circulam histórias do mais puro terror. É fácil sermos empurrados para o cérebro reptiliano, ficarmos obcecados com a segurança e absortos na velha luta pela sobrevivência, que nos acena com ferramentas tecnológicas e de vigilância e com as mais mirabolantes “literacias”, que não passam de parentes pobres de uma sabedoria ancestral que se perdeu. Os anciãos de outrora, que envergavam cajados literais e simbólicos, foram substituídos pelos especialistas, que com a sua aura de legitimação nos pedem o resto de cérebro que ainda não foi colonizado ou vendido a um life coach de 25 anos.

         Não querendo dar uma de Poliana, também não estou a fim de viver trancada numa torre de desconfiança que me obrigue a dar trinta voltas à chave de cada vez que queira pôr o pé de fora, a instalar câmaras de segurança, receber visitas de caçadeira na mão e sujeitá-las a um interrogatório com laivos de tortura, confissões assinadas através da coação. Nem quero ser Deus nem quero que ele seja meu fã. O filho dele dizia para sermos serpentes e pombas ao mesmo tempo. Pode ser perrice minha, mas nunca gostei de nenhuma, e esta história do hibridismo… cruzes, canhoto!

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

31
Out24

Bonecos

Sónia Quental

 

         Sinto-me tremer até à unha quando tecem louvores à simpatia de alguém. Entre o falo ou não falo, resisto ao papel de educar gente graúda até que, com os óculos invisíveis na ponta do nariz, um peso bem real, murmuro a contragosto: “Simpatia não é virtude. Não falta charme aos psicopatas”.

          Não ouvem. Admiro a habilidade que temos em ver o que queremos, ouvir o que interessa e pôr o resto em mute enquanto treinamos o assobio em mi maior. Quanta ginástica não se pratica para manter uma praia de ficções intacta, sem perda de um grão de areia. Pedem-me a pá de plástico e o ancinho. Fico-me estátua a apreciar os gestos alucinados de construção com que uma criatura adulta cava um chão impercetível, no sítio da areia molhada a imitar a solidez. Não gosto de brincar ao faz de conta, mas também não quero ser a desmancha-prazeres que dá má nota ao esforço, mesmo que o mérito seja nulo.

         Houve vezes em que tentei fazer de conta, quando a idade era própria e tinha bonecas (poucas), roupa à medida e um fogão em miniatura. A imaginação regalava-se com os “bons dias”, “se faz favor” e “obrigada” que dizia com sapatos de senhora, mesmo que fosse a boneca a calçá-los. Ser grande era poder ir a uma loja fazer compras de salto alto.

      Desde que o sou, pasmo com a confusão oblíqua de todos os que reduzem a educação e respeito àquele “bom dia” sacramental que ofende quando não vem. Gente em modo boneco, que fala para se ouvir falar e que regista no bloco de notas do telemóvel quantos agradecimentos lhe devem e todas as vezes que fulano ou sicrano falhou o “se faz favor”. O inchaço lento do peito pelos despeitos acumulados derrete rápido com um gesto de simpatia, sem olhar à conveniência ou à proveniência. Quanto ressentimento rijo se dissolve com um “bom dia” distraído!

 

24
Out24

Mamilos de luz

Sónia Quental

 

         Dizem que é nos momentos de descompressão, em que desviamos o pensamento do foco, que a inspiração se infiltra. Foi num desses intervalos da seriedade que resolvi investigar algo que me intrigava com uma certa persistência: os mamilos de luz. Em páginas de fotografia do Instagram, tinha-me deparado várias vezes com imagens de nudez explícita em que a única parte do corpo coberta era o mamilo da mulher. Sendo inegável a dificuldade que sinto em descodificar o significado oculto das tendências, só mesmo a repetição do fenómeno em páginas diferentes deu forma à hipótese perplexa: será que deixa de ser nudez se o mamilo estiver coberto??

         Constatei a seguir que alguns, em vez de luz, projetavam sombra; outros mudavam de expressão com as caras dos emojis; outros ainda davam flor. Interroguei-me se a escolha seria preferência da modelo ou do fotógrafo. Nunca me lembrei de perguntar aos meus com que disposição estavam, mas este era apenas o início de uma aventura temerária no mundo dos mamilos, onde entrei com passo hesitante, um olho fechado e o outro aberto, até chegar ao ponto de retrocesso, sob pena de me perder para sempre se continuasse a adentrar-me nos arcanos deste universo paralelo.

         Antes de lá chegar, porém, partilho com os curiosos os resultados lácteos deste empreendimento, que me fez saber que havia um movimento de libertação dos mamilos, uma descoberta que, a rigor, foi dupla: não só soube que havia quem estivesse a lutar pelos mamilos, como captei por inferência que eles estavam presos (a inteligência voltava a ganhar tração). Bastou esse pretexto para se abrir um daqueles instantâneos em que a vida nos passa diante dos olhos, fazendo-me apreender toda a distância – ou, como hoje se diz, “desconexão” – que havia entre mim e os meus mamilos.

         Ainda a pensar em como reatar diálogo, o motor de busca pôs-me diante dos olhos o debate gerado por eles, que jornalistas, vigilantes e burocratas encaravam de um ângulo aparentemente mais óbvio e essencial do que o meu: a polémica em torno da regra de cobrir os mamilos nas redes sociais estava na discriminação em que se baseava. Porque se havia de cobrir os mamilos da mulher quando os dos homens se empinavam livremente e sem qualquer pudor? O debate adensava-se e tornava-se mais feroz quando nele entravam os arautos dos novos géneros e das passagens indeterminadas entre eles, acusando uma visão binária que se refletia em políticas pouco inclusivas, que punham em causa os direitos humanos. Quando é que se devia cobrir o mamilo, e quando é que não se podia, e o mamilo de quem?...

       Foi aqui que notei que já não estava a descomprimir, mas a comprimir. A inspiração sempre espremeu alguma coisa, mas, com tanta informação, fiquei com medo de ir dormir, não por causa do escuro, mas dos faróis que se acendessem por vontade própria.

 

Vestido vermelho.jpg

 

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Out24

Crónica de uma desinfestação anunciada

Sónia Quental

 

         Maria Benedita sempre quisera viver em tempos diluvianos. No dia da desinfestação geral, acordou tarde de um sonho em que inspecionava a Arca de Noé para garantir condições mínimas de salubridade.

         Quando assinara a escritura do apartamento, mal podia prever que em breve veria concretizada a fantasia de pragas, inundações e assaltos numa zona até então pacata do Porto. À data funesta do controlo de pragas, já contava com dois pedidos de casamento de forasteiros que a tinham seguido da estação de metro, sinal de que o patriarcado continuava a ganhar terreno.

        Coincidência ou não, os supramencionados tinham afluído em magote para o prédio que habitava, onde se espremiam num T1 sem varanda, deixando no elevador o cheiro entranhado de quem não vai a banhos, revezado pelo perfume a caril que penetrava nos apartamentos às quatro da tarde em ponto.

         No assalto à garagem, felizmente, só tinha ficado sem o volante do automóvel, os óculos de sol de 500 € que tinha comprado em saldos e as moedas pretas que tinha posto de parte para dar aos pobres. Mas depois vieram os percevejos e as baratas.

         Admitia que a princípio ficara contrariada com o verão passado em sobressalto. Chamou-se a Proteção Civil, que imitou o exemplo de Pilatos: encolheu os ombros e foi-se embora. O foco da infestação já fora intervencionado e baratas nem vê-las. Dos 18 apartamentos do edifício, só 17 estavam infestados. Os relatórios dos especialistas neste caso de nada serviram, nem os vídeos com a malandragem da bicharada. Sem baratas no Foco, nada a fazer. A higiene não podia ser mandada.

        Como mulher do Norte, Maria Benedita sabia apertar limões para fazer limonada, que o mesmo é dizer: aproveitar os insetos para fazer batidos proteicos. Todos os desafios são uma oportunidade disfarçada, e a próxima experiência culinária era Barata à Gomes de Sá. Elas já se tinham afeiçoado aos tachos e ao frigorífico, e a veia empreendedora de Benedita tinha-lhe dado a ideia de lançar uma nova marca de insetos comestíveis. Foi então que marcaram a desinfestação geral, com fatura em nome dos condóminos.

         É nesse dia que a encontramos, despenteada e a cambalear depois de perceber que o despertador já tinha tocado três vezes. Na mesinha de cabeceira estava a “Lista de Palavras a jamais Pronunciar” que o personal trainer lhe tinha dado. Quando cometia o pecado de pensar que já não podia mais, a penitência estava marcada: recitar 108 Om em posição de meia-lua. Era preciso pensar positivo e nunca aceitar derrota. Furado o plano A, havia sempre outra letra no alfabeto: lembrou-se de que tinha ouvido o presidente da Câmara anunciar na televisão que o Obélix doara à cidade o seu espólio de menires, construções jeitosas para habitação: T0 com kitchenette e varanda. Se tivessem tomada e internet, valia a pena investir, a menos que a obrigassem a pagar taxa turística. Tomou uma nota mental. De resto, já estava acostumada às aragens.

 

 

NOTA: Crónica baseada em factos reais, com efeitos de dramatização verídicos. Só o nome da vítima foi alterado, para evitar novas propostas de casamento.

 

26
Set24

Bicho do buraco

Sónia Quental

Uma autoestima isenta de fissuras traduz um amor-próprio mal informado.

Montse Barderi

 

 

         Cresci agudamente consciente da privação: privação de dinheiro, de qualquer conforto que desse mau nome à austeridade, de desejos de porta aberta, do consentimento. O amor era uma animal raro que acenava da ficção de livros e filmes, dos poemas de serial lovers como Pablo Neruda, com as suas metáforas em foguetes a céu aberto. Na vida real, não o encontrava senão em lapsos de curta duração, fogos teatrais, logo transformados no que parecia o oposto do amor, um campo minado onde nunca se sabia qual seria a próxima explosão nem quando o bicho atacaria as mãos que o queriam salvar.

         Disseram-me que o primeiro passo para o amor era a autoestima, solução pronta para os cabelos baços da vida, que ora caíam, ora davam nó. Como é que nunca me tinha lembrado disso?... Juntei esse fardo aos outros, entalado entre os planos de sessão e as fotocópias, a renda da casa, os recibos verdes. Invejava as pessoas que pareciam ter tudo fácil, autoestima incluída. Invejava até quem só tinha autoestima, porque a carência de substância nunca perdia popularidade. Mas a inveja era verde, como os recibos, e tão feia como eles – não a queria para mim. Já a “Autoestima” não passava de manual de páginas brancas que só trazia título, desses aparelhos de instalação automática e botão único, precursores de uma inteligência artificial que já então se aderia pouco, dispensando FAQ e a resolução de problemas comuns – pois que problemas poderia ter o utilizador de semelhante dádiva?

         De meu lado, não havia banho de espuma nem afirmações que a materializassem, segredos femininos de mulheres com passo de deusa – e nada que me convencesse de que o que precisava era do toque mágico da yoni healing. O dedo que me apontavam dizia: bloqueada. Escrevi na minha lista: 1. Encontrar a autoestima, 2. Desfazer bloqueios, 3. Não me fechar em casa. Como sempre, fiz tudo ao contrário. E foi dentro de casa, com prognóstico reservado e contra o parecer dos especialistas, que encontrei o animal extinto, na mesma barriga onde a fome tinha feito um buraco que nunca fechava. Bastou deixar de bater com o martelo, de tentar encaixar em lugares e pessoas que não eram os lugares pro que eu sou. Deixei de pensar que o problema era eu. Não acreditei mais em bloqueios, nascimentos tortos, o fantasma de Saturno na casa 12. Deixei explodir todas as minas. O amor foi o que ficou intacto. Estava lá no início, ao mesmo tempo que Eu.

 

19
Set24

Elogio da escuta

Sónia Quental

            Mas numa era em que a escuta é vista como um fardo, as pessoas sentem-se envergonhadas, embaraçadas ou culpadas quando alguém as escuta, e ainda mais quando reflete sobre o que disseram. 

Kate Murphy

 

 

         Há muito quem ouça, poucos que escutem. Aprendi a falar mais por imitação do que por correção, mas, ao contrário dos que escrevem como falam, acabei a falar como escrevo. A escuta, por sua vez, vai ainda nos primeiros passos, por tentativa e erro, pedindo-me a concentração intensa dos começos no exercício de ser um espelho mais limpo, com várias séries de repetições, dia sim, dia sim.

     Como ato intencional, consome-se uma grande energia só na preparação para não se estar preparado, isto é, para ouvir sem antepor ou apressar desfechos, sem ter a resposta na calha, mesmo que isso abra rotundas lentas de silêncio. Parte da aprendizagem é saber a quem dar atenção, quando pedir esclarecimentos, em que momento interromper a escuta e dizer “Já chega”. Como sugere Kate Murphy em O que Perde quando não Está a Ouvir, “Ainda que a escuta seja a epítome da graciosidade, não é uma cortesia que devamos a todos”.

         Por isso, como as prendas que escolhemos de modo premeditado, a qualidade importa. E, para aprender a ouvir bem, vem-se a descobrir que é preciso fazê-lo com o corpo todo, aprender o vocabulário do que não é dito, tarefa onde entram também as mãos, num treino full-body que desmente a passividade aparente.

         Perante a ostensiva falta de ouvidos pacientes, é a busca da escuta, de se ser recebido, que faz as filas para o psicólogo e o cabeleireiro, de onde não se sai de pés, mas de cabeça lavada, que é a mesma coisa - com direito a massagem, no último caso. Quando era pequena, gostava de brincar às cabeleireiras: pelo toque que me acalmava o pensamento, como carícia que se movia por vagares e redemoinhos, sem pedir nada em troca (só que pedia). É assim, à vez, que nos escutamos, desejavelmente sem acumular calotes.

         Mesmo que a escuta não se distribua a rodos, andar de ouvido atento e antena sintonizada é a melhor meditação que conheço. Começar por nos ouvirmos a nós mesmos é condição necessária para que possamos escutar o outro. E, quando há ruído na comunicação, quando nos distraímos ou tropeçamos na atenção, o bom da escuta é que podemos sempre começar de novo.

 

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