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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

26
Mar25

O diamante

Sónia Quental

Captura de ecrã 2025-03-26 205235.png 

 

No covil de salteadores, todos se julgam o ladrão astuto – traficando pensamentos como se fossem joias, enjeitando o diamante que não sabem apreçar.

Lascada, nem a metade do coração lhes pertence.

 

 

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

The test of progress is not how much intellectual knowledge you have added, but how many mental illusions you have discarded.

Vernon Howard

16
Fev25

Mariposa

Sónia Quental

 

         Reparei nela porque estava encostada junto à porta e deu uma risada alta, sem companhia que lhe disfarçasse a doidice. Quando o metro parou, esta mulher que alguns chamariam “madura” passou por mim a correr e subiu a estrada na leveza da corrida e dos saltinhos, rematada pelos braços simulando um bater de asas. Só podia ir para o mesmo sítio que eu, ela marcando o ritmo por fora, eu balançando-me por dentro, conhecedoras ambas do mesmo segredo. Um sítio onde ainda há contrastes que encaixam, alguém que conduz, outro que se deixa conduzir. Simples assim, feliz assim. Também aí é o todo maior.

 

 

14
Fev25

O Ilusionista

Sónia Quental

 

Captura de ecrã 2025-02-14 200424.pngRasgaste-me o coração de forma meticulosa: dobrando bem os vincos e depois puxando cada parte na direção oposta, umas vezes lentamente, outras com decisão. Depois de teres repetido o processo mil vezes, o coração quase sem sobra que se notasse, escondeste os seus mínimos pedaços numa mão. Disseste-me que não a perdesse de vista e abriste os dedos, um de cada vez, mostrando-me como se regenera um todo sem partes.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

23
Jan25

Espadas, oito

Sónia Quental

8 de Espadas.png

À refeição, davam-me os calores na barriga e eu era obrigada a destapá-la. Mesmo sem poder, comia de barriga à mostra, o sítio exato onde me atacavam os calores que mais ninguém tinha. Antes de ser proibido chorar à mesa, era proibido mostrar a barriga e deixar comida no prato, ainda que desse vómitos. Foi assim que comecei a apanhar e a guardar no fundo dela toda a sorte de coisas que não o alimento, por falta de ventilação, entalada em mordaças que só me seguraram por décadas.

Entre a barriga e a garganta, esganando o coração, ficaram os frutos podres e as sementes boas, a torrente de palavras ralhadas quando eu escrevia e gostavam muito, mas só de algumas coisas. Mazinha não podia ser, e as minhas composições faziam as pessoas chorar e não era de alegria. Só não choravam quando eu escrevia para a escola redações e poemas sobre a mãe e era tudo mentira. A verdade era feia. A verdade não era para se dizer – era para enfiar na barriga e aferrolhar no silêncio. A verdade cheirava a bolas de naftalina.

 

Imagem: baralho Morgan-Greer

05
Jan25

Postiço

Sónia Quental

 

Quase deixei de ler poesia. São mais os livros que pouso do que aqueles em que me fico – basta uma mirada para lhes cheirar o vazio. Obras de malabaristas, prestidigitadores verbais, ilusionistas que não conhecem a magia e tiram coelhos de cartolas curtas.

Alguns dizem coisas como “gomo”, “retina” e “meu amor” e ainda esses são artifícios que nascem sem vida, enganando apenas os leitores que gostam de cartolas com o fundo à vista.

 

26
Dez24

Ablução

Sónia Quental

Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, 

das que jamais verão seu nome impresso e no entanto

sustentam os pilares do mundo (…)

Adélia Prado

 

 

         Perguntam-me o nome e talvez seja tarde. Durante muito tempo quis que o adivinhassem e me chamassem com um saber íntimo que se atravessasse até à alma pelo mero domínio do seu timbre, comandando-lhe que se abrisse. Mas vim a apurar que o nome era para dar às cinzas, a espalhar num ritual minguante, em que me apequeno para dar espaço ao que deslumbra.

 

         Gostava de ir com a minha avó para os campos, onde os morangos eram milagres mínimos que colhia das paredes de terra. Porquê procurar tesouros, quando se pode apanhar morangos?... No tanque, as mulheres eram anónimas, cobertas de preto, levavam carga à cabeça. Confundiam-se com o som da água em queda e, empunhando bacias e barras de sabão, sibilando entre si, esfregavam e esfregavam, protegidas pela geada. Hoje penso que a geada era cinza e que talvez aquelas anciãs extintas soubessem que o nome é para queimar e afundar na terra. Também serve para lavar a roupa.

 

02
Out24

Curvas

Sónia Quental

Our bodies are not designed to follow straight lines.

Angela Farmer

 

 

         O corpo expressa-se por linhas curvas. Conhece bem o ataque de retas e vértices, o castigo requintado de ocupar uma pose que não é a sua. O corpo não quer fazer acrobacias: quer ir para o chão amolecer dores incrustadas. Quer esticar-se, torcer-se e destorcer-se, moer devagar a recusa com que se fecha. O corpo conhece o cuidado que as aberturas pedem: a escolha certa do grau certo no momento exato. Fera subtil, não obedece a mandos. Sabe o que quer e o que talvez queira, mapa da memória que só quem não sabe atravessa a direito. Conhece melhor a sua astúcia do que quem o açoita, regime marcial em rotação contínua, vinte flexões e outras vinte e ainda não chega. Senhor dos seus ouvidos e só depois do nariz, o corpo reage à brutalidade que o agride, quebra o molde e vai embora.

 

A espreitar pelo buraco (2).jpeg

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

13
Set24

Ciclos

Sónia Quental

 

Have no link with the past, no link with the future, and look unto the in between.

H. W. L. Poonja

 

 

          Não vivemos de ano a ano: de passagem em passagem de ano, de aniversário em aniversário, com os cantos já dobrados de um calendário dividido em partes iguais. É por ciclos que nos derramamos, também eles às turras, como as estações, sem meteorologia que os ponha no sítio e nos deixe o vagar das preparações – como as que fazemos para as férias, o regresso à escola, a limpeza de Páscoa, as sextas-feiras 13.

          O momento entre um ciclo e o outro é o de ficar no ar, agarrado à cauda de um conforto conhecido, coberto de borbotos, que nos empurra para o sono de uma felicidade interrogada (que alguém interroga sem dar a cara).

       Quando adiante o chão é aberto, sem linhas que esclareçam o horizonte e marquem caminhos, constelações decalcadas em roteiros, os pés desinquietam-se da falta de coordenadas. Querem a segurança dos trilhos certos, a memória de uma coreografia ensaiada.

          Já não estar no que foi antes, não saber o que vem a seguir: assim é viver na corda do tempo. Quem sou entre o que fui e o que vou a ser?

          Mãos e pés agarram-se ao chão que treme e rasga, unindo as beiras que se afastam, até o corpo não ser ponte que chegue, o destino em queda certa. Neste meio vácuo, na garganta do que não se sabe, entre um pensamento e o quase, estica-se a vastidão do Possível. Dela sou o instrumento que se afina.

           Sexta-feira 13. Quem sabe o que descomeça aqui.

 

Macacão cor de laranja (7).jpg

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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