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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

15
Out24

A Vandoma

Sónia Quental

         

        Na Feira da Vandoma, o nicho da Maria das Dores tinha ficado entalado entre a tenda dos discos riscados e a dos sapatos sem par. Como castigo por ter atropelado um gato com a muleta, o Tribunal da Relação do Porto, não querendo pagar-lhe cama nas prisões, tinha-a condenado a Proferir Julgamentos ao Público, todos os sábados de manhã, na Av. 25 de Abril, das 8h às 13h. A acompanhá-la, havia um pequeno comício constituído por um Representante Autorizado do Ambiente, para assegurar julgamentos ecológicos, e pelo Advogado do Diabo, que se prestava ao exercício da dialética e emitia segundas opiniões.

          Nas primeiras semanas, o movimento era pouco e os visitantes, mais por curiosidade do que por necessidade, procuravam-na para os ajudar a escolher a qualidade das maçãs ou para apalpar a madureza dos melões. Às vezes, alguém arriscava perguntar que corte de cabelo havia de fazer ou com que cor pintar as paredes da casa. Mas as pessoas iam embora satisfeitas com o serviço e com isso a afluência aumentou, ultrapassando os cantões da fruta e da moda. Cedo a idosa já lidava com questões de vida ou morte, como a de casar ou continuar os estudos, o aconselhamento de carreira ou a triagem de pretendentes do Tinder, com um dedo que foi ganhando agilidade e lhe permitiu funcionar em modo multitarefa.

         O trânsito começou a parar na ponte, onde as pessoas faziam fila desde as margens de Gaia. Suando em bica, começava a desenhar-se uma corcunda no esqueleto artrítico da Maria das Dores, com o peso dos julgamentos do mundo. Em pouco tempo, além do trânsito, também ele parou na sua órbita, incapaz de girar sem o seu “sim”. Valorizado pela vista para o Douro, aquele era o único balcão que ainda funcionava no planeta, porque os julgamentos tinham sido extintos em todos os continentes – é evidente que por ordem aleatória, para não acusar preferências.

         Ligeiras como mosquitos, as pessoas saíam da feira e voltavam a entrar na fila sem perceber. Mas, ao contrário do que acontecia no Monopólio, havia um preço a pagar por se passar na casa de partida e deixar os julgamentos para trás: à entrada do recinto, um anjo de fogo acrescentava a vermelho ao assento de vida de cada um: “Passou vez no julgamento”.

 

Mercado de Amarante com vestido (2).jpeg

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0