"Buffering"
We are the authors of why we suffer by the fiction in which we dwell.
Caroline Myss
Afastando-se do Moonbucks a toda a pressa, Ludovina atravessou a forma-pensamento que tinha criado e energizado no seu ecrã mental, que girou sobre si mesma até perder a força e se desmaterializar antes de conseguir manifestar fosse o que fosse. A impressão visual daquele círculo inacabado, em rotação convulsa, fê-la pensar na sua vida como um buffer incessante, um processo de armazenamento de dados na memória temporária que impede a continuidade de qualquer fluxo.
O cheiro a enxofre foi o único rasto daquela experiência malograda, que preferia deixar para os confins do esquecimento. Não era daquelas que acreditavam no valor intrínseco das experiências, vivendo suspensas da novidade e extraindo prazer da sua quantidade e variedade, com a boca eternamente aberta ao próximo estímulo. Tentava lembrar-se se fora Proust ou Kafka que dissera que não era preciso sair do quarto para desmascarar o mundo. De resto, desde que o Partido dos Bons tinha assumido o poder e decretado a atmosfera de Simpatia Ecuménica, era inútil sair para apanhar ar, porque o sufoco cercava quem quer que andasse na rua.
Contra a expetativa dos seus mais acérrimos apoiantes, o Império da Simpatia tinha gerado fortes reações adversas. Não podendo escapar fisicamente ao pólen de doçura, as pessoas procuravam asilo mental, regredindo para estágios infantis em que se entregavam aos cuidados dos outros. A demência estava em ascensão, tal como os acidentes, confirmando a tese de um conhecido psicanalista, que acreditava que a maioria das mortes era uma forma de autossabotagem ou de suicídio indireto – armado pelo próprio, mas não declarado.
Em todas as esquinas, havia carcaças carcomidas pela Ingenuidade, tentando agarrar-se aos promontórios de luz das moças que passavam distraídas, na ânsia de reviverem a fase oral do desenvolvimento através do aleitamento compulsivo. A mulher caída no chão antes do brunch não tinha conseguido escapar, sucumbindo à perda de todos os fluidos corporais. O polícia que lhe ajeitava o casaco debaixo da cabeça não tinha vindo para prestar socorro ou investigar a ocorrência, mas para se certificar de que ela morrera feliz e de que não tinha havido alterações no nível médio de felicidade da zona.
Evitando esquinas e despistando vultos a torto e a direito, Ludovina fazia um caminho difícil para casa, imitando com os pés o buffering do destino.