Chama violeta
O sorriso amanteigado do Toni brilhava como um sinal, segurando os balões para a festa. Estava tudo preparado para a demonstração de tecnologia ióguica que arriscaria a proeza de transformar ratos em abóboras a tempo do Halloween. A expetativa foi aumentando com a aproximação do grande dia, alimentada pelo departamento de marketing da Biblioteca de Cordel, que adjudicara os serviços do Centro de Bem-Estar Integral e convidara a comunicação social para transmitir o evento em direto.
Mas sobre ele pairava uma sombra de mau augúrio: a Associação de Defesa dos Bichos e Pragas ameaçava intervir com latas de tinta lançadas aos participantes, o que gerava alguma apreensão, uma vez que não se sabia se a cor da tinta ia condizer com os tapetes de ioga que revestiam os jardins da biblioteca, num padrão em que a desordem era apenas aparente.
A falta de colaboração dos manifestantes, que se fecharam em copas, não demoveu os convocados para o serviço, seres evoluídos decididos a fundir as suas auras cor de violeta para provar que não havia impossíveis. Se tudo corresse bem, a próxima etapa seria empurrar as nuvens com o pensamento, fazer braço de ferro com o vento e quem sabe desacelerar a rotação do planeta, na tentativa de atrasar os efeitos da idade sem o uso de cosméticos.
A presença do Toni e da sua t-shirt com a mensagem “Crer para ver” era estratégica. Estava ali no papel de agente à paisana, investido da missão de proteger os sentimentos dos participantes das palavras ariscas do público descrente. Para isso, tinha passado a madrugada a treinar o sorriso ao espelho, sem conseguir chegar ao ponto de caramelo, porque a lista de palavras que não podiam ser proferidas durante a atuação dos iogues era extensa e ele tinha de as decorar a todas, para que o frágil equilíbrio do momento presente não fosse perturbado pela blasfémia.
Com o sorriso em ponto de manteiga, os ouvidos sintonizados e o spray de pimenta no bolso, estava pronto a entrar em ação. Não tão pronto, porém, que não se sobressaltasse com o primeiro exercício de respiração de fogo, em que o sopro violeta de 30 pulmões, com a ajuda dos balões que segurava, o ergueu no ar, qual rolha atordoada desflorando a copa das árvores, primeiro sinal da bênção dos deuses.