Crónica de uma desinfestação anunciada
Maria Benedita sempre quisera viver em tempos diluvianos. No dia da desinfestação geral, acordou tarde de um sonho em que inspecionava a Arca de Noé para garantir condições mínimas de salubridade.
Quando assinara a escritura do apartamento, mal podia prever que em breve veria concretizada a fantasia de pragas, inundações e assaltos numa zona até então pacata do Porto. À data funesta do controlo de pragas, já contava com dois pedidos de casamento de forasteiros que a tinham seguido da estação de metro, sinal de que o patriarcado continuava a ganhar terreno.
Coincidência ou não, os supramencionados tinham afluído em magote para o prédio que habitava, onde se espremiam num T1 sem varanda, deixando no elevador o cheiro entranhado de quem não vai a banhos, revezado pelo perfume a caril que penetrava nos apartamentos às quatro da tarde em ponto.
No assalto à garagem, felizmente, só tinha ficado sem o volante do automóvel, os óculos de sol de 500 € que tinha comprado em saldos e as moedas pretas que tinha posto de parte para dar aos pobres. Mas depois vieram os percevejos e as baratas.
Admitia que a princípio ficara contrariada com o verão passado em sobressalto. Chamou-se a Proteção Civil, que imitou o exemplo de Pilatos: encolheu os ombros e foi-se embora. O foco da infestação já fora intervencionado e baratas nem vê-las. Dos 18 apartamentos do edifício, só 17 estavam infestados. Os relatórios dos especialistas neste caso de nada serviram, nem os vídeos com a malandragem da bicharada. Sem baratas no Foco, nada a fazer. A higiene não podia ser mandada.
Como mulher do Norte, Maria Benedita sabia apertar limões para fazer limonada, que o mesmo é dizer: aproveitar os insetos para fazer batidos proteicos. Todos os desafios são uma oportunidade disfarçada, e a próxima experiência culinária era Barata à Gomes de Sá. Elas já se tinham afeiçoado aos tachos e ao frigorífico, e a veia empreendedora de Benedita tinha-lhe dado a ideia de lançar uma nova marca de insetos comestíveis. Foi então que marcaram a desinfestação geral, com fatura em nome dos condóminos.
É nesse dia que a encontramos, despenteada e a cambalear depois de perceber que o despertador já tinha tocado três vezes. Na mesinha de cabeceira estava a “Lista de Palavras a jamais Pronunciar” que o personal trainer lhe tinha dado. Quando cometia o pecado de pensar que já não podia mais, a penitência estava marcada: recitar 108 Om em posição de meia-lua. Era preciso pensar positivo e nunca aceitar derrota. Furado o plano A, havia sempre outra letra no alfabeto: lembrou-se de que tinha ouvido o presidente da Câmara anunciar na televisão que o Obélix doara à cidade o seu espólio de menires, construções jeitosas para habitação: T0 com kitchenette e varanda. Se tivessem tomada e internet, valia a pena investir, a menos que a obrigassem a pagar taxa turística. Tomou uma nota mental. De resto, já estava acostumada às aragens.
NOTA: Crónica baseada em factos reais, com efeitos de dramatização verídicos. Só o nome da vítima foi alterado, para evitar novas propostas de casamento.