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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

03
Jul24

Cupão nosso

Sónia Quental

           

Produtos, serviços e aplicações marcham ao ritmo do tambor do inevitável, rumo à promessa das receitas de vigilância sonegadas aos espaços ainda selvagens que designamos por ‘a minha realidade’, ‘o meu lar’, ‘a minha vida’ e ‘o meu corpo’.

 

Shoshana Zuboff

 

 

Resisti até onde pude aos cupões e às apps que em toda a parte somos aliciados ou intimados a instalar no telemóvel. Afogado em impostos, o Português vive para os descontos, a validar e-faturas na internet, na esperança de ser um dos felizes contemplados no sorteio da Fatura da Sorte, e a colecionar cupões de supermercado e combustível. Agora, são as campanhas renovadas das lojas online, que nos acenam com descontos perpétuos, já não limitados às épocas de saldos, e embustes descarados, que não perdoam a quem não lê as letras miudinhas e se deixa ofuscar pelas imagens (como eu, que quis encomendar um jogo de lençóis e recebi UM lençol, como se fosse dormir enrolada nele, qual mortalha florida).

Não faltando motivos de distração, contar cupões é mais um, com um peso a não menosprezar, atiçando com a sugestão de um ganho, por mais pequeno que seja, o nosso instinto de sobrevivência e vaidade. O tempo, a energia e a atenção que a atividade consome não são perdas sujeitas a balanço. Por outro lado, as vantagens de termos todo um historial de compras gravado numa app, que é preciso instalar se queremos beneficiar de descontos exclusivos, esconde uma sombra que o ingénuo não aceita ver enquanto a ameaça não se tornar esmagadora e impossível de repudiar. O termo “grátis” é o “Abre-te, Sésamo” que lhe faz brilhar nos olhos a gula incontida, tal como a autoimportância, alimentada pelas promessas de relevância e personalização.

À distração amena criada pelos cupões vem juntar-se a utilidade, para os proprietários, da extração de dados dos utilizadores das apps. Cercados por câmaras no mundo físico e com as nossas atividades diárias cada vez mais rastreadas, decantadas e espremidas no virtual, o lucro comercial é apenas o objetivo mais imediato das marcas, que são as primeiras a beneficiar das novas formas de vigilância que a tecnologia põe ao seu dispor. A previsão, o controlo e a manipulação comportamental são a derradeira meta deste assalto gradual, que nem sentimos, de tão manso que é. Agradavelmente persuadidos a abdicar de uma autonomia e liberdade que nunca chegámos a conquistar, são sempre estas que estamos dispostos a entregar em troca de pontos ou de meia dúzia de patacos, quando não da ilusão de segurança. A isto nos conduziu o livre-arbítrio, fonte de orgulho dos donos de opiniões, que trabalham para engordar os aglomerados de dados que fazem os mosaicos da estatística do Big Data, parente do Big Brother.

Quando me lembro da estátua O Pensador, de Rodin, tão distante dos reflexos desta modernidade, inclino-me a achar que o indivíduo esculpido está a tentar decidir que cupão vai usar primeiro ou que aplicação vai apagar do telemóvel, porque já não tem espaço para mais. Não são tarefas pequenas.

 

Mercado de Amarante (21.06.2024) (12) - BOA.jpeg

A pensar nos cupões (versão femme)

 

2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0