Equilíbrio
Emílio reprimira a memória de que fora imortal numa vida passada. Amante das lendas de monstros marinhos, partira a galope da curiosidade para o lago de Loch Ness, onde escorregara nas margens e caíra, acabando por perder a consciência. Acordara sobre o longo corredor de um dorso estranho ao seu corpo versado de garimpeiro, que lhe deixara na face esquerda a roseta áspera dos predestinados: a Falange Secreta de Loch Ness.
Emergindo das águas do lago passados três dias, Emílio achou-se estranhamente propenso a acidentes, a que sobrevivia por milagre, o rosto corado pela metade, como se pedisse desculpa por ter a sorte do seu lado, e ainda por cima do lado esquerdo, que não havia cicatriz que marcasse. O dom carismático dividiu-lhe os flancos, que logo lutavam pela supremacia: um que puxava à violência, o outro à beatitude, este no prato errado da balança, inspirando-lhe atos de heroísmo com uma magnitude desproporcionada, como quando tentou salvar uma libelinha de se afogar e a esmagou com o peso do corpo. A busca constante de equilíbrio era a causa do seu passo manco, que quem via atribuía ao excesso de hidromel ou a defeito congénito.
O calcanhar de Aquiles de Emílio era o coração, que lhe custou a imortalidade num dia em que Cupido praticava tiro ao alvo e uma das suas setas se perdeu, tocando-o de um amor que não teve tempo de escolher destino antes de se fazer tragédia. Era esse amor que lhe apagava o sopro vida após vida, em que errava atrás de olhares fatais, um prazer secreto no levedar de uma ferida que só baixava as pálpebras, sem adormecer nunca.
A Falange Secreta de Loch Ness é a linhagem ancestral dos Emílios que sem se conhecerem continuam a habitar o globo, partilhando mais do que o nome e a extravagância de dormirem em piscinas e aquários, a roseta de serpente despontando em diferentes partes do corpo, disfarçada pelas tatuagens. O coração é o único músculo que continua sem enrijecer, contrastando com o exterior rude destes gladiadores, um flanco mais pesado do que o outro, na eterna demanda de equilíbrio que os atira para o calor de batalhas impossíveis.
Depois de mergulharem em vulcões e enfrentarem bestas mitológicas, correm agora um perigo inimaginável: a ameaça de extinção. As setas de Cupido, que os encontram nos buracos mais sórdidos que procuram para hibernar, passaram a ser feitas de um material reciclado a que são alérgicos e que infetou a sua ferida invisível, perturbando todo um ciclo de encarnaçõess malogradas e nada menos que o equilíbrio planetário.