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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

31
Dez24

Identidades

Sónia Quental

 

         Se fosse agente de apoio ao cliente num balcão de atendimento virtual, é certo e sabido que teria um álbum de recortes com as selfies que os utilizadores tiram nos processos de verificação de identidade. Seria algo como uma bolinha antistresse mental para descomprimir no pingue-pongue trocado com toda a espécie de criaturas que me passassem pela retina, quando a munição de empatia estivesse em baixo (e prevejo que rareasse com alguma frequência).

         Desde o primeiro “Sorria”, “Pare de sorrir”, “Encaixe o rosto na oval” até à derradeira estocada: “Não reconhecemos um rosto”, não é difícil conceber a fúria expressiva que fica registada no instante despreparado em que a câmara resolve disparar, quando o olhar do alvo fulmina a voz mecânica que o manda fazer o pino e ainda lhe pede bis. Pensando positivo, como é de bom tom, a imaginação tem a oportunidade de se exercitar num catálogo subtilíssimo de posições para a cabeça dentro da oval que a transportam ao celebrado “pensar fora da caixa” que muitos julgariam estar além da sua capacidade. Todos os intervenientes saem enriquecidos de uma experiência que, mesmo com curadoria, seria capaz de encher uma galeria de arte mais concorrida do que a dos instantâneos para o cartão do cidadão e que deve fazer a alegria dos agentes que se encarregam das revisões manuais. Num modesto terceiro lugar, estariam as fotografias de tipo passe.

         Enquanto aguardo o resultado do que poderia ser uma formalidade efémera, mas que no nosso mundo de (in)eficiências burocráticas e excessos tecnológicos é mais um teste à placidez da compostura, não sei se quero ou não ser reconhecida – o que me traz à mensagem de final de ano. Há quem diga que a identidade se constrói, o que supõe todo um trabalho, se não de reconstrução, pelo menos de manutenção e reparação, num afã que não traz grande coisa de novo enquanto nada for demolido. Os pequenos embaraços diários que os imperativos de segurança vão fazendo aumentar em quantidade e despropósito mostram que a identidade nos leva a um confronto constante entre perceção, projeção e realidade, que só poderemos apreender gradualmente – por motivos de segurança de outra ordem.

         O difícil da identidade é estarmos sempre a perceber que não somos o que pensamos que somos, sempre a soltar e a raspar a pele. É o desgosto de descobrir que por baixo de uma camada há outra ainda, que continua escurinha de fuligem, e mesmo assim continuar a raspar na esperança de chegar à pele de bebé, com aquele cheirinho que apetece comer, em sentido inverso à casca de fora, que acusa os efeitos crescentes da gravidade. Não quero com isto sugerir que andemos atrás de bebés para comer, mas aproveitar a imagem para deixar um voto simples, desta que nunca deu valor ao Ano Novo nem aos protocolos da data, mas que o redescobre nas manifestações de bem-querença que encham o ar: Ano Novo, Pele Nova.

Parede rosa (2).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0