(Im)permanecer
É-se item numerado num menu versátil, servido no drive-in ou em take-way, com talheres de plástico e molhos em pacote. Antigamente, havia nas casas louça boa, prenda de casamento, guardada só para ver e usar na Páscoa, quando o padre vinha benzer o antro. Agora, já não há louça fina e quase não vale a pena comprar talheres como deve ser. Os descartáveis servem – assim são as pessoas que passam, as companhias momentâneas que se entretém, num caleidoscópio em que o virtual e o real se confundem em cores de néon.
As histórias de vida viram roteiros reinventados de uma vez para a outra. Faz-se entrevistas e audições aos candidatos à permanência, mas, terminado o test drive, tudo não passa de mais uma experiência num catálogo de sensações, esquecidas após a ressaca do que impermanece, tempero leve para a solidão.
Sem compromisso.
Hoje, que a casa é minha, não recebo o padre nem espalho alecrim na rua para o ajudar a encontrar o caminho até à entrada. Não preciso de pôr a nota verde à vista debaixo da laranja no prato de porcelana azul, em que só os mandatários de Deus podem tocar. Outra coisa boa é que não tenho de beijar os pés de Cristo na cruz, diante de todos, nem de aceitar, agradecida, as amêndoas açucaradas e moles que o padre trazia no bolso. Dispensava-se de demorar e todos ficavam aliviados. Só vinha buscar a nota e espalhar “Aleluias” extintos.
Sem compromisso.
“Aleluia” é palavra que não se ouve na passarela de gente feita esquisso, serial daters em refeições indigestas de fast-food, procurando a receita infalível para o final feliz, num jiu-jítsu da mente em que a regra universal é não fazer drama e sorrir.
Companhia humana a um clique de distância. Tão perto, cada vez mais longe. Sempre, sem compromisso.
Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados