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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

02
Mar25

O dogma

Sónia Quental

What business have you with saving the world, when all the world needs is to be saved from you?

Nisargadatta Maharaj

 

 

 

Captura de ecrã 2025-03-02 035803.png

O Toni foi o convidado de honra para moderar o colóquio Porque É que Deus Permite o Sofrimento no Mundo: Contributos para uma Teima Ecuménica, que ia realizar-se clandestinamente nas catacumbas da Biblioteca de Cordel.

Esperava-se a comparência de personalidades eminentes do clube dos Aferrados a Deus, desde curandeiros locais a humanitários benévolos e aos mais altos dignitários da Igreja. E eles não desiludiram, num desfile ostentoso, munidos das suas samarras, charutos e bengalas. Havia os que em vez de apostarem nos acessórios e nos crucifixos de ouro seguiam a humildade minimalista, sendo a tanga uma das peças em voga, secundada por variantes mais literais, como o abnegado que tinha dado um braço para acabar com a miséria no mundo e o acamado que estava em greve de fome. Sem forças para se fazer ouvir, chamou-se uma especialista na leitura de lábios para que nenhum fio se perdesse da sua sabedoria silenciosa.

         Talvez fosse a inexperiência do moderador, a sua falta de pulso ou quem sabe as garrafas de Porto que rapidamente se escoavam, mas o debate logo se desviou do tema proposto, gerador de evasivas hesitantes, para o contributo que cada um tinha dado para a salvação do mundo. Para um desempate rigoroso, queriam legislar uma tabela que contabilizasse méritos como donativos monetários, voluntariado em hospitais ou prisões, orações diárias, jejum, velas acesas, registo de conversões, membros e órgãos doados, peregrinações a Fátima, bênçãos do papa, bandeiras da Ucrânia nos perfis sociais e a glorificação imorredoura da esperança.

         A discussão incendiou os ânimos já desavindos, fazendo com que todos perdessem a noção do decoro naquela que era quiçá a mesa de trabalho mais efervescente e ébria do submundo da Simpatia. Toni, que já tinha trocado de t-shirt duas vezes e continuava a transpirar profusamente, convidou-os esbracejando a coroarem o encontro com um passeio restaurador pela grande Montanha onde desembocavam as catacumbas. O efeito sobre a comitiva foi imediato, alguns diriam que bizarro até, levando a acessos de tosse e a uma dispersão súbita: um, explicava, tinha de ir rezar a missa, outro queixava-se da artrose, outro ia atirar moedas aos pobres, outro compor versos sobre a guerra, outro tinha o chicote à espera, outro ainda estava atrasado para o jantar (arroz de pato, por sinal).

         Foi assim que a Montanha, na sua paciência infinita, continuou à espera de um peregrino, um que não fosse com o mapa na mão – um que fosse para chegar.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0