O Grande Peixe
Foram muitos os que nesse dia deram com o nariz na porta do confessionário, entre os quais o Emílio, que tinha uma entrevista marcada com Jesus e se viu obrigado a adiar o episódio do podcast. A alteração de planos acalmou o receio de que o peixe fresco que comprara no supermercado se estragasse, embora a integridade da refeição não fosse essencial: Emílio era um misantropo, que gostava de manter a distância, e o saco de plástico com as duas cavalas gordas ajudava-o a afugentar companhia.
O estrondo dos mergulhos e o cheiro a cloro desviaram-no da saída, tocando-lhe o coração líquido, a pele escamosa que não resistia à sedução da água, na demanda da placenta primordial que deflagrara com o parto precoce. Seguindo discretamente a pequena comitiva liderada por Maria das Dores, foi a tempo de ouvir a sua elocução pitoresca, tirando notas mentais para a tetralogia de que jamais se abstraía, antes de se eclipsar para a exploração a solo.
Sacudido por um lampejo súbito, não conseguiu conter uma breve recriminação por aquela ser a primeira vez, e inteiramente por acaso, que unia os pontos do seu próprio rasgo pioneiro. O elástico de borracha que trazia no pulso lembrou-o terapeuticamente de se recriminar pelo hábito da censura, após o que voltou ao quadro que se formara na sua mente: depois de milhares de horas a observar o comportamento humano em terra, no ar e a braços com as chamas, percebeu que a água era o elemento que lhe faltava. Afinal, mesmo que o holograma de Jesus não estivesse disponível, o seu espírito coordenava as atividades quânticas de um lugar que não perdera a vocação para o sagrado, obrando na clandestinidade.
O sopro da inspiração divina rompia agora sem peias pela mente escancarada de Emílio, ditando-lhe que aquela era nada menos que a manjedoura da Segunda Vinda e desacreditando o acaso da sua presença naquele antro providencial. Mesmo sem prever que a hora da Epifania o apanhasse com um saco de plástico a pingar sangue para a santidade dos azulejos, não podia negar que o cheiro a peixe nas mãos convidava a chegada do Grande Peixe. Emílio rendeu os joelhos ao chão, as lágrimas humedecendo-lhe o corpo convulso antes de se lançar à piscina, o útero profundo em que desceria, não de salto, mas agarrado a uma corda. Nunca aprendera a nadar.
Presunção, sim, é essa a palavra; há no fundo do humanismo ateu um orgulho, uma arrogância inacreditáveis.
Michel Houellebecq