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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

25
Jan25

O Pinga-Amor

Sónia Quental

 

Cavaleiro de Copas.png

O Pinga-Amor gostava delas tenrinhas, inocentinhas, praticamente sem trinca. Era para elas que guardava teias de aranha no bolso, material extensível, que lançava, aracnídeo macho, sobre as florzinhas viçosas que se passeavam sem saber que o eram. Pigarreando para expurgar a voz de intenções segundas, o Pinga-Amor chegava-se e colava-se-lhes todo, calculando de cabeça que alminhas pediam uma abordagem mais vagarosa. E era todo vagares. Mas o seu repertório, que cabia num caderninho de bolso, repetia-o sem variação, prometendo-lhes a capa da Vogue entre a meada de elogios, despistando-as com lições solenes sobre a importância do relaxamento ou discursando sobre o correr da vida, qual Epicuro com a auréola mais cândida do desapego. Sobre ânimos exaltados, vertia com o mesmo vagar cerimonial a fleuma adquirida após uma existência dedicada aos prazeres do estômago e da camaradagem.

         De bigode aperaltado, despido de preconceitos e pudores, insinuava ideia semelhante nos cerebrozinhos encantados com os seus galanteios, que se iam fechando na teia, não por falta de entendimento, mas por se acharem no dever de retribuir mesuras. A valentia com que o Pinga-Amor se atirava para a frente de batalha na caça de talentos era confirmada pelas substâncias estranhas que injetava no organismo, que não o impediam de contrair as moléstias contra as quais se inoculava, cujo sintoma persistente eram as evacuações intestinais. Às jovenzinhas deslumbradas, gostava de exibir as marcas das agulhas nos bíceps descaídos, enquanto lhes espremia os pecados mais íntimos, prometendo-lhes o sigilo do túmulo com a mesma convicção com que outros vendiam a continuidade no Além.

         No labirinto do Império, era figura de certa dignidade, chefiando o Gabinete das Manobras de Diversão, onde, além das teias que fazia para uso pessoal, tecia cortinas de fumo com a mesma habilidade de dedos com que as moiras enrolavam os destinos universais. Fosse pela presença constante de cortinas e cantigas, fosse por qualquer predisposição impossível de contrariar, gostava de adormecer a ouvir a história da Carochinha, sem saber que ele era a mosca na teia, o ratão apanhado nas tramas que urdia para pescar anjinhos doces nas suas redes pinceladas de mel.

 

Imagem: Tarot Cigano

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0