Olhar para o teto
Antes de existirem os ecrãs, olhávamos para o teto. Isto é, já tínhamos um protótipo de ecrã para estabelecer contacto à distância e dizer “Estou a olhar para o teto”. Nesses tempos, ainda não se falava de mindfulness, não sabíamos nada de meditação. O mais que podíamos fazer nas noites de insónia, além de olhar para o teto, era olhar para a lua ou tentar adivinhar que música ia passar na rádio, numa altura em que ainda não tínhamos sido expropriados dos poderes telepáticos, que funcionavam com uma eficácia acima da média – um indício de que talvez pudéssemos vergar o futuro, embora o presente fosse mais difícil de deslocar.
A ideia de uma tão grande tela em branco, como o teto ou o futuro, assustava o nosso despreparo, mas merecia ser contemplada, não fosse apanhar-nos de surpresa enquanto fazíamos de conta que a vida era sempre em frente e que bastava acertar num curso com saída para se apanhar a via rápida. Literatura, filosofia, teologia, artes não faziam parte da lista.
A nossa era uma terra pequena – nós habituados a caminhar carregando orbes debaixo do sol. Conhecíamos os caminhos difíceis, embora não tão difíceis quanto os das gerações anteriores, que faziam questão de nos lembrar os seus pés descalços na neve e o leite que vinha da ordenha quando eram magras as vacas. Ainda havia férias grandes, momentos parados em que a vida nos obrigava a pensar nela, a procurar palavras que captassem as nuances de uma angústia existencial em que alguns ficaram a morar para sempre: presos no teto, onde ainda flutuam.
Iniciados na poesia, era incompreensível a pressão e a expetativa de quem nos queria ver simplesmente funcionais na sociedade, sem destoar demasiado, a não ser pelo lustro ou um lugar de influência. O sustento assegurado. Tanto martelaram que houve quem encaixasse por fora, mas ficasse perdido por dentro, eterno Peter Pan que não encontra saída da Terra do Nunca.
Olhando hoje ao redor, com a escalada da violência e a fragilidade quebradiça da saúde mental, oferecem-se-me duas explicações: é de quem nunca olhou para o teto ou nunca saiu de lá, rodopiando à toa na Terra do Nunca, os olhos fechados em caixão de vidro. Um beijo que nunca chega de fora.