Pós-nupcial
Atrevo-me a dizer que sou a cliente ideal das livrarias. Não dou trabalho, arrumo os livros fora de sítio, sou de namoros longos e consumações súbitas. Quando avisto alienígenas de máscara, fico com vontade de lhes pegar na mão e fazer festas na cabeça, como nunca quis a animais ou crianças. Só os destituídos me inspiram o instinto maternal. Sou toda cuidados, sabendo que não posso aproximar-me demasiado nem fazer movimentos bruscos, porque os potros estão sempre a ponto de saltar. Não é domesticá-los que quero – já se vê que o são. É dar-lhes refúgio como a mim dão os livros por estarem ali.
Foram sempre eles a acalmar-me. Forravam-me as noites no primeiro ano de ensino. Só o seu peso na cama me serenava o sistema nervoso, que sabia que eu não devia estar ali. Talvez devesse ter percebido pelo cemitério ao lado da casa onde arrendava quarto, por onde passava todos os dias a pé. O mundo é um livro aberto para quem sabe ler, mas eu estava ainda a aprender.
Era de longa data o meu caso amoroso com os livros, embora só naquele ano dividíssemos lençóis como manda o costume. Quando acordava, ainda lá estavam, sem as urgências dos amantes intermitentes. É a fidelidade que lhes devo que ainda me leva, cumpridora, às livrarias, mesmo que o amor já não tenha a sofreguidão da verdura. Depois de perceber que a Verdade estava numa prateleira mais alta, mas menos altaneira do que a mente, entrámos num relacionamento à distância, primos afastados em vez de consortes.
Endireito-os enquanto os funcionários se ocupam a fazer vénias a quem chega. Cavaqueamos mais em silêncio, lembrando tempos antigos. Se há algum que reluz com a promessa de raras vertigens, trago-o comigo. Mas procuro principalmente os volumes intangíveis, que não têm palavras que lhes deem forma, esses com o mesmo poder de despertar que os que me adormeciam outrora. Quando preciso de libertar a tensão, procuro as livrarias de papel, faço-me útil, deixo o corpo ir.
Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados