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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

07
Jan25

Reler

Sónia Quental

- ou dos malefícios da leitura

 

When a person picks up a book to read, it is usually for some purpose: to while away an empty hour, for pleasure, for information, to find the answer to some problem, to fill an emptiness within, or to seek to understand the meaning of life. What is your purpose in reading this book?

 

         É com estas palavras que Lorraine Sinkler abre o prefácio da obra The Alchemy of Awareness, biografia de Joel S. Goldsmith, curador e místico do século passado – outro dos grandes autores largamente divulgados no Brasil, a que as nossas fronteiras editoriais ainda não deram passagem.

         As reflexões que tenho esboçado intimamente sobre o real valor da leitura, que encontraram um primeiro incentivo nas palavras de Sinkler e um eco de longa data nas de diferentes vultos do mundo espiritual, foram, uma vez mais, corroboradas por Theodore Dalrymple num dos últimos títulos dados à estampa: On the Ivory Stages. Neste compêndio de pensamentos inspirados pela leitura, o ensaísta britânico evoca três escritores que relevaram os prejuízos do excesso dela: Somerset Maugham, Aldous Huxley e Schopenhauer, o último dos quais achava que a leitura podia ser tanto um entrave quanto um estímulo ao ato de pensar. Do ensaio de Huxley, datado de 1936, transcrevo o trecho citado:

To a considerable extent, reading has become for almost all of us an addiction, like cigarette-smoking. We read, most of the time, not because we wish to instruct ourselves, but because reading is one of our bad habits… deprived of their newspaper or a novel, reading-addicts will fall back on… those instructions for keeping the contents crisp which are printed on boxes of breakfast cereal.

 

         A compulsão pela leitura, por inofensiva ou até vantajosa que possa parecer, como a compulsão por comer cenouras (mais saudáveis do que as bolachas, por exemplo), não deixa de ser uma compulsão: um impulso desregulado, uma fuga de si que é facilmente racionalizada e encorajada como vício benigno. Mesmo sabendo-se que nem todas as obras entram na gaveta das cenouras e que ficariam melhor no saco da farinha, a leitura adquiriu o estatuto de panaceia universal. A guerra no mundo é seguramente caso de subnutrição literária.

         Foi ao perceber que o intelecto não me bastava que a vontade de ler literatura definhou de um modo súbito e irrevogável – diria que dramático até, uma vez que, passados 15 anos, ainda me dói a bagagem que deitei fora. Descobri, porém, que o alimento intelectual é como o açúcar: não faz mais do que produzir picos no sangue, aportando pouco valor nutricional e logo se chorando da próxima dose. Não é dele que vem o conhecimento nem dele que a alma extrai os seus sucos. A minha começou a pedi-los com urgência, ainda que na busca intensiva a que me lancei poucos autores achasse que pudesse espremer ou que soubessem mais do que fazer malabarismos com palavras ou enredos. Mesmo que não os deixassem cair ao chão e que a tenda do circo fosse alta, estava longe de chegar. No máximo, dava para um recorde no Guiness.

         No início desta peregrinação desolada, que cedo recuou para a leitura não literária, tive a boa fortuna de encontrar o nome de Mirra Alfassa, artista plástica, musical e mística que sistematizou os princípios da Educação Integral, baseados nos ensinamentos do Ioga Integral de Sri Aurobindo. Na sua definição de arte, aquela que a posteridade ficaria a conhecer como “A Mãe” acentua distintamente: “A habilidade não é arte; o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência”.

         Estabelecendo um paralelo entre os princípios fundamentais da arte e os do ioga, via em ambas as disciplinas a ligação a uma dimensão transcendente, ao serviço da autotransformação e da elevação da consciência. No nosso mundo evoluído, prostrado aos bezerros da ciência, da tecnologia e de um intelectualismo desvitalizado, esta noção são só se perdeu por completo, como não geraria mais do que um escárnio condescendente. Posso afiançar que não é o que se ensina nas universidades, que a única coisa que fazem é confundir e embotar as faculdades da alma.

         Respondendo à pergunta inicial de Lorraine Sinkler, leio acima de tudo para descobrir o significado da existência. Não há muitos que o tenham encontrado e que o saibam transmitir por palavras ou em forma literária, apesar de ser esta a linguagem que mais se presta ao que é da ordem do inefável. É por isso que, mais do ler em quantidade, me importa ler em qualidade e acima de tudo reler. Porque a leitura não é um fim em si, mas um caminho para mim mesma.

         Os mundos interiores não são presas dóceis, que se entreguem ao primeiro assalto. É preciso fazer muitas vezes a mesma viagem de ida sem regresso. No início, a maioria dos que se atiram à aventura vai de arrasto e, mesmo depois de ganhar lanço, avança com a lentidão de certos moluscos. Poucos são os saltos expressivos para a frente e para o alto, e apesar disso não há nada que se lhes compare. As obras de qualidade – as obras com profundidade – desdobram-se em camadas para nos acomodar em todos esses momentos, esperando com as suas janelas e quartos fechados para nos presentear com clarões inesperados, de paisagens que ninguém conhece.

         As obras dos verdadeiros escritores nunca acabam; os verdadeiros leitores nunca param de as reler. Não há tempo para mais.

 

 

 

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O erro dos artistas é acreditarem que a produção artística é um fim em si e para si mesma, independente do resto do mundo. A arte, tal como entendida por esses artistas, é como um cogumelo no vasto terreno da vida, como uma coisa fortuita e externa, não algo intimamente ligado à vida. Ela não alcança nem toca as realidades profundas e duradouras, não se torna parte intrínseca e inseparável da existência. A verdadeira arte tem a missão de expressar o belo em íntima proximidade com o movimento universal. As maiores nações e as raças mais cultas sempre consideraram a arte como uma parte da vida e a fizeram subserviente à vida. (…) Mas a maior parte dos artistas são como parasitas que crescem à margem da vida; não parecem saber que a arte deveria ser a expressão do Divino na vida e através da vida. Em tudo, em todo o lugar, em todos os relacionamentos, a verdade deve ser manifestada no seu ritmo omniabarcante, e cada movimento da vida deve ser uma expressão de beleza e harmonia. A habilidade não é arte, o talento não é arte. A arte é uma harmonia e beleza vivas que devem ser expressas em todos os movimentos da existência. Esta manifestação da beleza e harmonia é parte da realização Divina na terra, talvez mesmo a sua parte mais importante.

 

Mirra Alfassa

(Fotografia extraída daqui.)

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0