Ser um livro aberto
Foram mais de duas semanas à espera de um livro de que restam poucos exemplares em circulação e que veio de fora, chocolate branco para a alma. Antes de começar a dança de aproximação que terá o seu culminar numa leitura tempestuosa, o primeiro pensamento foi adicioná-lo à lista do Goodreads, mais por uma questão de organização do que de visibilidade.
Mas a visibilidade tornou-se a questão, quando se peca pelo excesso dela. Ora são as selfies tiradas no restaurante, no ginásio, na rua, no elevador, no cabeleireiro; ora é a vida no direto contínuo das lives; ora as “partilhas” que alimentam os sites e fóruns de comunidades gerados em torno de interesses comuns… Sem lhes negar o valor (ou cá não estaria), o seu crescimento desenfreado, por entre a teia das redes sociais e a exposição virtual de cada palmo de vida neste mundo virtual, em que se opina vigorosamente sobre todos os assuntos e mais alguns, sobretudo aqueles que se desconhece, acaba por transformar toda esta caldeirada numa boa posta de pescada que, no meu vocabulário, é código para “a evitar o mais possível”.
É relativamente inocente partilhar e recomendar leituras, para continuar o exemplo que me trouxe a este texto. Mas há livros que são só para nós e que só se nos revelam no segredo de uma relação fechada para o mundo. São livros que não se lê uma vez só, e não necessariamente por ordem. Fazem coisas dentro de nós, mesmo quando parecem resistir à decifração ou, pelo contrário, quando parecem simples, mas há um travão que não nos deixa ir além da sua aparente obviedade, insistindo em que fiquemos.
Talvez seja por isso que sinto algum pudor quando me perguntam qual o meu livro preferido. Foram volumes que viajaram comigo no tempo, ficaram desfeitos pelo uso e as leituras repetidas, que a vida ia revelando em novas camadas e ao mesmo tempo confirmando que me eram destinados. Há quem diga que cada um de nós tem um koan pessoal a descobrir, a que precisa de dar resposta. Acredito que os nossos livros preferidos façam parte desse koan e por vezes sinto que nomeá-los é expor-nos além da abertura necessária para expressar preferências, formular resenhas ou até escrever, como aqui ou nos próprios livros se faz, com tudo o que já exige de entrega.
No embalo desta divagação, acrescento que não me incomoda, por sua vez, identificar o livro mais intragável que alguma vez me passou pelas mãos: Ulisses, de James Joyce. Punha fé no nome, mas nem ele o salvou do naufrágio, com o cúmulo de o ter lido na praia: a) nos tempos em que tinha férias; b) quando me obrigavam a ir à praia. Nem lhe podia dar a conhecer a minha frustração física nem usá-lo para pousar a cabeça quando estava a apanhar sol deitada de barriga para cima, porque era um livro da biblioteca, que teve como única finalidade fazer-me questionar vocação, carreira e existência, tudo ao mesmo tempo (e consta que nem sequer é o “pior” do autor). Considerando os estragos, não foi nada mau que tenha levado apenas alguns grãos de areia para a prateleira.
Parece-me que não nos importamos de escrutinar e esquartejar ódios, dividir as carnes pela tribo até ficar só a carcaça. Os amores, embora nos deliciem na comunhão com os amadores que para eles gravitam, guardam uma margem de secretismo que não deve ser violada e que fulgura apenas no silêncio, como as pinturas de Georges de la Tour. São livros que não podem ser abertos a outros olhares, que pulsam e nos convidam entreabertos.