"Slow motion"
E assim, não obstante a aceleração constante do ritmo de vida, arranjamos sempre maneira de nos deixar infiltrar pelas nossas lentidões.
Andrea Köhler
Varro vertiginosamente o chão com os olhos desde que caminhar na rua se tornou prova de obstáculos, demarcada por dejetos caninos e escarros da mesma ordem. A atividade desportivo-contemplativa foi, porém, sacudida pelo choque quando comecei a deparar-me com caracóis que tentavam a sua travessia, disputando a mesma medalha. Mais do que a concorrência, afligiu-me aquela fragilidade afoita, sumamente esmagável, e a lentidão anacrónica dos moluscos, alheia ao acelerar dos tempos e às pressas urbanas.
Não esmagar caracóis foi mais um constrangimento que passou a fazer parte da prática diária, com os seus sulcos evocativos de espaços naturais ou ajardinados, que pelas artes do acaso me conduziram a uma palestra de Robert Moore sobre os arquétipos do Masculino. Nela, o psicanalista junguiano, coautor de King, Warrior, Magician, Lover, referia-se à importância de integrar o arquétipo do Amante no nosso dia a dia, de abandonar a vergonha e voltar ao jardim, num jogo de palavras entre o play e o display que descrevia o modo de estar nesse recinto à parte, fora do tempo e do espaço comuns, onde o entusiasmo é livre de se expressar na experiência do sensual, a que também chamou a redescoberta do corpo do amor. Também o masculino tem os seus oásis de êxtase onde bebe da beleza que o sacraliza.
Se o amor e a sensualidade não são coniventes com atrasos, também não concordam com a pressa nem com o tempo contado. Ainda que desfasada da imagem que de imediato associaríamos a este quadro, a presença dos caracóis em paisagem inóspita lembra o valor de nos deixarmos infiltrar pela lentidão e o jogo de prazer necessário que desafia o asfalto do tempo.
Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados