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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

05
Mar25

A era das distrações

Sónia Quental

 

        Já não faz falta o entretenimento para nos entreter. Depois de durante muito tempo ter tentado arrumar as coisas práticas da vida num frasco hermético, com etiqueta e prateleira própria, elas teimam em sobejar e em pedir-me cuidados. Prefiro chamar-lhes “males necessários”. Sem que tenha o tempo absorvido por crianças ou família, sem que tenha de pôr combustível no carro ou de perder horas no trânsito, por mais que tente criar espaços dedicados ao significado, ele dispersa-se, ante o assédio contínuo das distrações.

         Numa era em que a vida devia ter-se tornado mais fácil, sendo essa a promessa da miríade de bens de consumo, tudo parece conspirar para nos desviar de qualquer centro. Pondo de parte o trabalho, ele é inspeções, manutenções, reparações, reabilitações, intervenções de todo o tipo, seguros, impostos, faturas, reuniões de condomínio, processos legais, compras, tarefas domésticas e agora todos os ferrolhos a que as ameaças de cibersegurança obrigam, fechando já os olhos ao mundo sinistro que nos cresce à volta. Não é preciso sequer ver TV. É um sem-fim de assaltos, obrigações e ninharias cujo fito único, quando não é o de roubar ou espoliar, parece ser o de cansar e distrair, não deixar espaço para nada que ainda tenha substância – não deixar, aliás, espaço algum que nos pertença. E, se de dia nos tentam atordoar e pôr a dormir, de noite a estratégia parece ser a privação do sono, quando não pelas preocupações com que insistem em bombardear-nos, pela magra tentativa que alguém possa fazer de abrir um hiato e olhar para dentro.

         Manter um mundo fictício dá trabalho e, quanto mais fictício ele se torna, maior o esforço e o sentimento de alienação. O tempo que sobra das distrações é empregado a tentar separar o que é fake do que não é, uma tarefa tão vã quanto a de arrumar os males necessários no jarro de vidro e esperar que eles se conformem com o downgrade de uma subscrição compulsiva, que acusa os efeitos da inflação de ano para ano. De consumidores, passámos a consumidos, a matéria-prima que engorda a máquina, estações de serviço abertas 24 horas por dia, porque permanentemente contactáveis ou localizáveis. O fim das fronteiras é oficial: fronteiras de espaço, tempo, privacidade, contribuindo tudo para a confusão da identidade. Primeiro distraídos, depois invadidos e por fim diluídos. Chegaremos então ao nada existencial.

 

Poleiro.jpg

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

15
Nov24

Casulo

Sónia Quental

 

          Para alguns, a vida é um casulo depois do outro. A falta de vínculos seguros faz sentir a porosidade ventosa de uma cápsula que não protege, apenas isola, tornando-nos ilhas à deriva num oceano de pessoas felizes, que nascem com a certeza de qual é o seu lugar e do seu direito inato de o ocupar.

      Na altura, o bullying não estava na moda. Ouvia-se apenas os cochichos de troça pelas costas, a segregação desdenhosa dos autoconfiantes, com a pressão para nos fazer imitar-lhes os modos em troca de aceitação – a sugestão inocente da mutilação para nos colarmos aos vincos que alguém dobrou por nós. Quem achava que tomava conta da nossa felicidade ao participar dessa pressão para funcionarmos em sociedade, por mais convencido que estivesse das suas boas intenções e da sua autoridade pedagógica, não conseguia disfarçar o desconforto de conviver com o que sobrava à normalidade, ameaçando trazer ao de cima o que a custo asfixiava sob o limiar da consciência.

      A vida era um casulo de plasticina, que as mãos dominantes apertavam e moldavam ao seu critério – porque quem não sabe nem finge saber qual é o seu lugar, quem não teve uma estaca de amor a ajudar as suas hastes a medrar seguras, é durante muito tempo frágil e fraco, suscetível, movido pela fome de pertença que o faz render e render partes de si. A resistência diária exige um dispêndio incomportável de energia, por isso vai-se cedendo aqui e ali, até que deixa de se notar. Quando a cedência se torna modo de vida, perde-se conta às suas manifestações mínimas, que têm um efeito tão devastador quanto as maiores, pelo costume que criam – por escaparem mais facilmente à deteção.

        Em cada patamar que traz a renovada clareza de que a busca de quem somos nos leva por um trilho cada vez mais solitário, há uma escolha a fazer. Quem porfia, quem faz essas escolhas deixando-se morrer e voltar à vida sem saber se voltará a respirar, abandonando um casulo depois do outro, contrariando os reflexos condicionados, reconstruindo a sua integridade psicológica e anímica, com um compromisso cada vez mais estreito com a verdade, descobre que já não quer pertencer, que já não é o enjeitado, mas aquele que enjeita. O oceano de plástico lá fora, o nonsense da alienação ubíqua, as manipulações impercetíveis nas relações pessoais já não convencem. Não se suportam. Porém, a cada casulo rompido, revela-se uma força desconhecida, a pele fica mais transparente, há um centro que ganha em vitalidade e firmeza.

         Ficam para trás os tempos de mendigar sobras, assim que se sentem os primeiros respingos de uma fonte interna, essa que ninguém procura, com a cerveja ou o copo de vinho na mão, as incontáveis concessões às amizades de conveniência e ao desejo de aceitação adolescente, que nem a passagem do tempo acalma. O casulo abre-se em casa e os funcionais interrompem a pose para nos assaltarem os segredos e surripiarem o mapa da felicidade que afinal também procuram, desfeitas as ilusões da funcionalidade, do sucesso, das respostas que afinal nunca tiveram.

 

 

07
Nov24

Essência Inc.

Sónia Quental

All we are, essentially, is a defense mechanism against the truth.

John Kent

 

 

         Tendo percebido tarde que não havia guardanapos, saíra do brunch com a marca da bebida cafeinada a desenhar-lhe um bigode no beiço. No meio da confusão, alguém lhe tinha enfiado um panfleto no bolso:

 

Essência Inc.

 

Sofre de insónias? Acorda sem ânimo para enfrentar o dia? Tem dificuldades de concentração? Desejos incontroláveis de açúcar? Foi diagnosticado com Infelicidade mórbida? Nada que um toque de Essência não cure.

Desenvolvemos um programa patenteado de recondicionamento mental que sonda o seu potencial latente para o transformar na versão mais avançada de si mesmo. Navegamos consigo pelos desafios da vida moderna, mostrando-lhe como materializar visões de Sucesso e unir-se à corrente de energia da Era de Aquário, em que fundimos intenções para elevar a vibração coletiva e cocriar um mundo sem mácula.

Venha forjar o seu impacto connosco, numa proposta de simbiose íntima que parte do diálogo entre o humano e a máquina: um upgrade essencial para um Ser mais pleno e autêntico.

 

Essência Inc. Felicidade concentrada, à distância de um mantra.

 

 

         O anúncio era de um dos Centros de Bem-Estar Integral financiados pelo Gabinete da Desinformação, com instalações em todas as cidades do plano físico e astral, e sede social na Nuvem. No grupo de Desplataformados a que pertencia, Ludovina tinha começado por ouvir rumores das atividades que promoviam com o incentivo de donativos conscientes, em que a elevação de consciência era proporcional à magnanimidade do patrocínio.

          Falava-se da lista de cirurgias estéticas que tinham lugar nos antigos matadouros para tratar desordens de autoestima, e eram também eles que acomodavam os serviços de lavagem automática com mangueira de pressão e sucção cerebral para eliminar o vácuo mental onde nasciam as ideias perigosas. Os sócios tinham o benefício exclusivo de um Amigo Certificado para garantir que elas não despontassem, prevenindo o perigo de mutação para as Ideias contra o Bem Comum e outras variantes, com diferentes níveis de risco. Outra das funções destes companheiros chegados era conter o ressentimento e impedir a frustração de germinar, trabalhando ao mesmo tempo para erradicar a epidemia de solidão do planeta.

         Havia sessões semanais de 8 minutos de tantra ao som pacífico das focas que fazia vibrar as ruas e que funcionava como cartão de visita destes centros vanguardistas. Uma das últimas novidades eram as salas de tittytainment, uma medida de combate ao individualismo e de reforço dos recreios comunitários em que se fazia a afirmação de identidades imaginárias.

        O conhecimento que Ludovina a princípio obtivera por vias não oficiais fora substituído pelo estudo prático destes laboratórios de positividade, uma vez que a renovação da sua carteira profissional incluíra um módulo obrigatório de formação para a Responsabilidade Social e o Sucesso Sincronizado. Esquecida da marca no bigode e com a música da Barbie a alinhar a nota desarmónica das suas células, Ludovina deu consigo em céu aberto, onde a esperava a forma-pensamento que tinha projetado para o exame do curso.

No barco azul (1).jpg

Fotografia: 2020 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

04
Nov24

Açúcar amarelo

Sónia Quental

De onde vens, certeza

de que um pouco mais de açúcar

não fará mal a ninguém.

Adélia Prado

 

 

         O Ministério da Felicidade e o Ministério da Vida Saudável tinham tomado a iniciativa conjunta de consagrar o domingo como Dia do Brunch, oficializando aquele que era já um hábito informal de famílias e pessoas emancipadas. Ludovina queria escapar à fila de estabelecimentos cor-de-rosa que transformavam esse destino em certeza, mas os agentes da polícia que rodeavam uma mulher caída no chão, ajeitando-lhe o casaco a servir de almofada, dificultavam-lhe a fuga.

         Entrou apressadamente na primeira porta que encontrou, com um letreiro de néon a piscar “Moonbucks”. No ambiente, que cheirava a panquecas, ovos mexidos e flocos de simpatia, destacavam-se os cubos de açúcar amarelo amontoados nas mesas, uma orientação governamental amigável para uma saúde 100%. O açúcar branco há muito tinha deixado de ser consumido e só se conseguia a preços exorbitantes na dark web.

       Depois da generalização do trabalho remoto, era mais comum os animais de estimação levarem os donos à rua do que o oposto, aliciando-os com a promessa dos torrões de açúcar que lhes atiravam uma vez instalados na mesa familiar e human-friendly, onde se reaprendia um convívio salutar.

         Ludovina procurava um recanto sossegado onde pudesse pegar no livro que andava a ler, outro produto de consumo a que o governo franzia publicamente o sobrolho. Dirigiu-se ao único espaço individual do estabelecimento, reservado à prática do mindfulness, pensando poder camuflá-lo entre o cor-de-rosa fofo das almofadas. A bebida com cafeína que pedira, um gesto cada vez menos usual da clientela patusca de domingo, veio acompanhada de um pequeno copo de água vitaminada, que cheirou com desconfiança.

         O faro era o único sentido em que ainda confiava. Olhando à sua volta enquanto esperava o momento certo para expor o livro de capa dura, notou as frases de motivação que se acendiam ao som da Barbie Girl, uma técnica subliminar ao serviço da felicidade duradoura. Aturdida pelos estímulos sensoriais e temendo a estranheza dissonante que sabia não conseguir deixar de exalar, afundou-se no banco. A sensação de esmagar um dos cubos amarelos com o traseiro fez-lhe disparar o coração, que pulsava azul por entre a névoa que induzia o nirvana.

 

22
Out24

Como impactar com um texto popularucho

Sónia Quental

Instruções passo a passo:

 

1. Pegue em qualquer destes termos ou num punhado deles, pincele-os com uma camada de verniz e retire-lhes o miolo (no caso de escolher apenas um, é repeti-lo à saciedade): igualdade, liberdade, democracia, diálogo, empatia, harmonia, união, inclusão, diversidade, pacifismo, ambiente, enriquecer, “multi-” qualquer coisa.

 

2. Utilize todas as derivações possíveis de “impacto”, como verbo, substantivo, adjetivo. Não importa o impacto, desde que se impacte.

 

3. Condene abertamente o julgamento. Cruze os dedos, esperando que, no embalo da toada popularucha, ninguém encontre a falácia. Diga que não há certo nem errado escrito em lado nenhum, mas que é errado julgar.

 

4. Aplique o mesmo idealismo sentimental que tinha aos 15 anos, mesmo que conte com umas quantas décadas em cima. À custa de tanto verniz, já é possível terminar-se a vida com a mesma tabula rasa com que se começou, sem qualquer desenvolvimento psicológico que tenha ocorrido com as famosas “aprendizagens de vida” e tão mergulhado na fantasia como quando se lia as aventuras d’ Os Cinco. Ignore que os manuais de ensino, perpetuados pelos órgãos de comunicação social, são cartilhas ideológicas que disfarçam o caminho do totalitarismo com as cores brandas da utopia e do humanitarismo.

 

5. Use e abuse do materialismo intelectual que só vê guerra, fome e pobreza das janelas do próprio conforto, sem conhecer significado algum para o que acontece – nem no mundo nem dentro da própria casa – mas que continua a agir como se soubesse. Quando se sentir inspirado, culpe Deus; caso contrário, ignore-o e aponte o capitalismo como a causa de todos os males. E nunca se esqueça de que os fins justificam os meios, sobretudo quando o fim é a sobrevivência, física ou psicológica.

 

6. Pregue o seu desprendimento e os desertos ideológicos que atravessa, quando está desde sempre parado no mesmo lugar: um lugar com uma ideologia bem demarcada e altamente frequentada, onde se pode ser para sempre ingénuo. É aí que se aprende o que é da ordem do popularucho. Ensaie esta canção com os outros meninos, à roda da mesa simpática onde batucam o Kumbaya.

 

7. Deixe-se enganar pelas aparências e negue-lhes o valor, em vez de aprender a interpretá-las. Persista na superficialidade, mas cite Einstein ou Tolkien de vez em quando. Pendure um poster do D. Quixote ou do Che Guevara no quarto.

 

8. Acredite que a cultura é toda a iluminação de que precisa. A cultura e a geografia, com um empurrãozinho da “ciência” e da diplomacia.

 

9. Não se esqueça da máscara quando sair de casa nem quando invadir blogues alheios para insultar os autores assinando simplesmente: “Anónimo”.

 

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