O metamorfismo
Ao despertar pela manhã de um sonho agitado, Gregório Sansão percebeu que talvez estivesse a exagerar na comida de insetos. O excesso de proteína arranhava-lhe o goto e provocava-lhe nevoeiro mental. Era isso ou as aulas de português neutro que estava a pagar a um explicador para ter positiva à disciplina de Cidadania.
Estremunhade, esqueceu-se de verificar nesse dia se era rapaz ou rapariga, mas tanto lhe fazia. O importante era saber se não tinha coisas a dizer, para não se engasgar e não ficar com a barriga esquisita. Na cabeceira da cama, estavam as vitaminas para a autoestima que faziam parte do plano de normalização. Ao lado, o termómetro da paciência, para que não desatasse a bater com o nariz na parede e deixasse a pancadaria para as aulas de judo.
Pegou no tablet onde estava a fazer o T.P.C.: escrever uma ode à diversidade, mas debatia-se com a gramática da neutralidade. Tinha dificuldade em encontrar rima perfeita para “todes”. Só se lembrava de “bodes”, “pagodes”, “bigodes” e uma outra palavra feia, que não vinha nada a calhar. Mas sabia que podia gritar e chorar à vontade, contra o conselho da avozinha, porque os homens eram bastante sentimentais – ou assim lho diziam, embora nas aulas de português só lhe tivessem explicado o predicativo do sujeito da frase, classificando o sujeito como indeterminado.
Elu também queria mudar estereótipos e contribuir para a riqueza da sociedade. Daí ter começado a comer larvas em pó. Talvez fossem elas que lhe pusessem a barriga esquisita. Era pergunta para fazer a um especialista.
Subitamente, começou a ouvir o som de sinos no telemóvel: eram chegados os 30 segundos de meditação, a que se seguia a compilação da Lista de Ofensas para a adoração dominical. Nesse preciso instante, alguém bateu ao de leve na porta.
- Gregório – chamou a progenitora número um. Falta um quarto para as dez. Já puseste a trotinete a carregar?
Logo se lembrou de que ainda não tinha mudado as faixas dos pés de lótus, tradição que tinha adotado para extinguir a pegada ecológica, embora não fosse muito à bola com tradições. Orgulhava-se do pensamento progressista e esclarecido que tinha brotado em si desde tenra idade.
Por falar nisso, não se podia esquecer de preencher a candidatura a Vigilante Social, cargo bastante concorrido. Esperava que a nota de Cidadania brilhasse no currículo. Se tudo o resto falhasse, restava-lhe sempre a arma do Amor (tinha licença de porte), com que lutava para tornar a sociedade mais segura e tolerante, dispondo-se a dar o corpo às balas contra a sombra que ameaçava os corações humanos. Apesar das pernas demasiadamente finas, mais aptas para o balé do que para o combate, sabia que só tinha de acreditar em si. Em si e em todes. Logo, logo ia ficar tudo bem.