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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

23
Fev25

Roda do tempo

Sónia Quental

 

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Não foram apenas as distâncias que as tecnologias vieram encurtar, mas o tempo na visão mais lata da existência humana, dando a sensação de hoje se poder viver várias vidas na mesma encarnação, em que se reencontram as mesmas personagens incansáveis, cavalgando as portas giratórias do mundo virtual como se tudo fosse um “até já” sem consequências. Inventada a internet, temos ao nosso alcance uma versão moderna e democratizada dos registos akáshicos, que qualquer um pode manusear.

        Tenho muito a sina de me descobrirem os encantos postumamente, às vezes passados anos de uma relação que não vingou, como foi o exemplo do pobre diabo que me assaltou o pensamento uma destas madrugadas, dando razão à sabedoria popular que diz que o primeiro nunca se esquece.

          Ele queria jogar à bola; eu, como todas as meninas de 12 anos, achava que o primeiro era para casar. Ele demorou até aos 22 para considerar as opções e decidir que afinal também queria. E não era um querer pequeno, visto ter vasculhado a internet e percorrido centenas de quilómetros para me achar no buraco enregelado onde me exilei no ano de estágio, ao lado do cemitério, na borrasca do inverno. Ia para me levar ao cinema e para casar, com a bênção dos pais, confidentes de todas as horas. Numa casa partilhada por quatro almas penadas, o quarto era o único recanto onde havia privacidade e foi com horror que desviei o olhar quando a criatura teve o à-vontade de se deitar na minha cama, agarrada à almofada onde eu dormia. Entre os três – ele, eu e a fantasia que tinha de mim –, era eu que estava a mais. Estive quase para sair de fininho e deixá-lo entregue à consumação de núpcias, não fosse o medo de encontrar uma lembrança debaixo dos lençóis.

         Já lhes chamaram Highlanders, os imortais. E que nome bem escolhido, porque o corte tem de ser de espada e pelo pescoço, e mesmo depois de defuntos demoram a perceber que passaram para o lado de lá. Estranhamente, são sempre eles que tentam ensinar-me o valor do perdão, da tolerância e do amor incondicional que parecem viver, a acreditar na pregação que ouço quando tentam voltar a girar a porta e a entrar no quentinho de onde acham que nunca saíram. Por correio, por telefone ou em perseguição cerrada pelas vielas cibernéticas, a atividade tornou-se profissão e eu, que não sou de opiniões, venho aqui dar a opinião de que merece sindicato e troféu de tenacidade – desde que não lhes deem subsídio de transporte e lhes tirem o material de escritório.

         A quem faz gosto em aprender, os imortais ensinam muitas coisas, entre elas como passar pelo tempo incólume ou caminhar por ele às arrecuas, num palco giratório com figuras de cera, congeladas num momento fugaz, ali reencenado, num purgatório que não tem como acabar. Por mim, aprendi que quem não aproveita a dádiva do tempo para se entregar a um devir consciente e mudar de lugar a cada instante nunca sairá da roda, e nem é preciso dar-lhe corda, porque ela gira por si.

         Quando o cowboy desata a galope na direção do horizonte, eu, que também não sou de dar conselhos, aconselho quem fica para trás a certificar-se de que o vê desaparecer no além. O mais certo é perceber que se enganou e resolver dar meia-volta, não porque tenha sido fulminado pelo arrebatamento da paixão ou tomado por um arrependimento sincero, mas porque não gosta de deixar coisas inacabadas. A casa ainda não ardeu até ao fim.

 

Imagem: baralho Rider-Waite

 

29
Dez24

Equilíbrio

Sónia Quental

 

          Emílio reprimira a memória de que fora imortal numa vida passada. Amante das lendas de monstros marinhos, partira a galope da curiosidade para o lago de Loch Ness, onde escorregara nas margens e caíra, acabando por perder a consciência. Acordara sobre o longo corredor de um dorso estranho ao seu corpo versado de garimpeiro, que lhe deixara na face esquerda a roseta áspera dos predestinados: a Falange Secreta de Loch Ness.

         Emergindo das águas do lago passados três dias, Emílio achou-se estranhamente propenso a acidentes, a que sobrevivia por milagre, o rosto corado pela metade, como se pedisse desculpa por ter a sorte do seu lado, e ainda por cima do lado esquerdo, que não havia cicatriz que marcasse. O dom carismático dividiu-lhe os flancos, que logo lutavam pela supremacia: um que puxava à violência, o outro à beatitude, este no prato errado da balança, inspirando-lhe atos de heroísmo com uma magnitude desproporcionada, como quando tentou salvar uma libelinha de se afogar e a esmagou com o peso do corpo. A busca constante de equilíbrio era a causa do seu passo manco, que quem via atribuía ao excesso de hidromel ou a defeito congénito.

         O calcanhar de Aquiles de Emílio era o coração, que lhe custou a imortalidade num dia em que Cupido praticava tiro ao alvo e uma das suas setas se perdeu, tocando-o de um amor que não teve tempo de escolher destino antes de se fazer tragédia. Era esse amor que lhe apagava o sopro vida após vida, em que errava atrás de olhares fatais, um prazer secreto no levedar de uma ferida que só baixava as pálpebras, sem adormecer nunca.

         A Falange Secreta de Loch Ness é a linhagem ancestral dos Emílios que sem se conhecerem continuam a habitar o globo, partilhando mais do que o nome e a extravagância de dormirem em piscinas e aquários, a roseta de serpente despontando em diferentes partes do corpo, disfarçada pelas tatuagens. O coração é o único músculo que continua sem enrijecer, contrastando com o exterior rude destes gladiadores, um flanco mais pesado do que o outro, na eterna demanda de equilíbrio que os atira para o calor de batalhas impossíveis.

       Depois de mergulharem em vulcões e enfrentarem bestas mitológicas, correm agora um perigo inimaginável: a ameaça de extinção. As setas de Cupido, que os encontram nos buracos mais sórdidos que procuram para hibernar, passaram a ser feitas de um material reciclado a que são alérgicos e que infetou a sua ferida invisível, perturbando todo um ciclo de encarnaçõess malogradas e nada menos que o equilíbrio planetário.

 

21
Out24

Parábola para os gentios

Sónia Quental

        

         A Verdade começou a pensar que talvez fosse feiinha ou tivesse mau odor corporal. Sempre que dobrava uma esquina ou estava prestes a cruzar-se com alguém, a pessoa atravessava desvairada para o outro lado da rua sem se lembrar de olhar para os dois lados, provocando toda a espécie de acidentes e caos na estrada. Ou então passavam a assobiar, fazendo de conta que não a conheciam, a admirar os chemtrails que golpeavam o céu. Quando chocavam diretamente com ela, era por distração e logo fugiam sem dar tempo de pedir os dados para o seguro.

         O Amor era mais popular, mas depressa descobriu que só gostavam da sua companhia quando se embriagava e ficava com a visão turva. A Verdade dava-lhe o braço nesses momentos, neutralizando-lhe o bafo incapacitante. Mas nem a companhia do Amor a tornava mais querida. Consolavam-se mutuamente.

 

26
Set24

Bicho do buraco

Sónia Quental

Uma autoestima isenta de fissuras traduz um amor-próprio mal informado.

Montse Barderi

 

 

         Cresci agudamente consciente da privação: privação de dinheiro, de qualquer conforto que desse mau nome à austeridade, de desejos de porta aberta, do consentimento. O amor era uma animal raro que acenava da ficção de livros e filmes, dos poemas de serial lovers como Pablo Neruda, com as suas metáforas em foguetes a céu aberto. Na vida real, não o encontrava senão em lapsos de curta duração, fogos teatrais, logo transformados no que parecia o oposto do amor, um campo minado onde nunca se sabia qual seria a próxima explosão nem quando o bicho atacaria as mãos que o queriam salvar.

         Disseram-me que o primeiro passo para o amor era a autoestima, solução pronta para os cabelos baços da vida, que ora caíam, ora davam nó. Como é que nunca me tinha lembrado disso?... Juntei esse fardo aos outros, entalado entre os planos de sessão e as fotocópias, a renda da casa, os recibos verdes. Invejava as pessoas que pareciam ter tudo fácil, autoestima incluída. Invejava até quem só tinha autoestima, porque a carência de substância nunca perdia popularidade. Mas a inveja era verde, como os recibos, e tão feia como eles – não a queria para mim. Já a “Autoestima” não passava de manual de páginas brancas que só trazia título, desses aparelhos de instalação automática e botão único, precursores de uma inteligência artificial que já então se aderia pouco, dispensando FAQ e a resolução de problemas comuns – pois que problemas poderia ter o utilizador de semelhante dádiva?

         De meu lado, não havia banho de espuma nem afirmações que a materializassem, segredos femininos de mulheres com passo de deusa – e nada que me convencesse de que o que precisava era do toque mágico da yoni healing. O dedo que me apontavam dizia: bloqueada. Escrevi na minha lista: 1. Encontrar a autoestima, 2. Desfazer bloqueios, 3. Não me fechar em casa. Como sempre, fiz tudo ao contrário. E foi dentro de casa, com prognóstico reservado e contra o parecer dos especialistas, que encontrei o animal extinto, na mesma barriga onde a fome tinha feito um buraco que nunca fechava. Bastou deixar de bater com o martelo, de tentar encaixar em lugares e pessoas que não eram os lugares pro que eu sou. Deixei de pensar que o problema era eu. Não acreditei mais em bloqueios, nascimentos tortos, o fantasma de Saturno na casa 12. Deixei explodir todas as minas. O amor foi o que ficou intacto. Estava lá no início, ao mesmo tempo que Eu.

 

30
Ago24

Poliamor

Sónia Quental

(…) ele foi capaz de transmitir o horror de um mundo no qual ‘todos pertencem a todos’, um mundo no qual ninguém poderia construir qualquer ligação profunda com ninguém. O alvo principal da distopia de Huxley era a ideia de boa vida como gratificação instantânea dos desejos sensoriais.

 

Theodore Dalrymple

 

 

          Chamou-me a atenção uma capa de revista na montra da papelaria, sugerindo, de forma interrogada, que o amor romântico terá acabado e que a monogamia se tornou obsoleta. Se está impresso na capa de uma revista, deve ser verdade e não há perigo de desinformação, por isso acreditei no diagnóstico.

          Sabia-se já que a desconstrução da identidade sexual preparava a desconstrução da monogamia, um conceito reduzido ao seu caráter histórico e social, num momento em que até a biologia perdeu o estado de graça. A culpa, já se sabe, é do patriarcado, e os modos de viver o amor não passam de correntes do obscurantismo que percorreu as sucessivas épocas, até chegarmos ao presente esclarecido em que temos a felicidade de viver, preparados para acabar com as repressões, derrubar estereótipos e proclamar a liberdade de vida, que gravita em torno da liberdade sexual.

         Da definição de limites rígidos passamos à fluidez gelatinosa da identidade de género e de relação, em que se vive fundamentalmente para coçar comichões. Como propõe Regina Navarro Lins, autora de Novas Formas de Amar, em que se baseia em parte o artigo de revista a que aludo à entrada, chegou a altura de arejar as nossas ideias a respeito de amor e sexo – ou de levar a cama para a varanda, imagem que dá o título a outra das suas obras e que ilustra bem as correntes de ar que ventila.

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          Se o amor romântico é mito ou ilusão, é ilusão que encontra finalidade no crescimento pessoal, que dificilmente acontece numa existência isolada. Uma ilusão que pode levar-nos ao encontro da verdade do amor ou à sua sublimação como verbo. Trocar essa ilusão a dois pelo regresso à selva amorosa é preferir uma miragem serpentina, que não só não vem resolver os dilemas com que as pessoas se confrontam dentro da monogamia, sintoma de um vazio íntimo que se propaga, como vem exacerbá-los, iniciando uma espiral que só tem um sentido: descendente.

          A normalização das relações "abertas" consagra-as ao capricho do momento. “Infelizmente, os caprichos de duas pessoas raras vezes coincidem”, sinaliza Theodore Dalrymple, em A Vida na Sarjeta, um título que nos atira da varanda para a valeta, mas que introduz, desde esse nível rasteiro, uma reflexão bem mais profunda sobre o abismo existencial, o tédio e a degradação moral que marcam o grito do Ipiranga sexual: o grito do bárbaro moderno.

          Evocando o significado simbólico de um dos meus contos de fadas preferidos, enquadrado no ciclo do animal-noivo (“A Bela e o Monstro”), Bela perdeu nesta revolução sexual o poder de revelar o príncipe no monstro, sendo agora o monstro que a absorve e transforma num ser à sua semelhança: bem-vinda ao bacanal fluido do poliamor.

 

Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. (…). Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?) O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.

R. M. Rilke

 

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

14
Ago24

Miss Magnética

Sónia Quental

 

     Olá a todas, eu sou a Miss Magnética, coach intuitiva do amor, como podem ver pela minha farta cabeleira. Atrás de mim, está a minha equipa de anjos 24/7, que me convenceu a fazer este vídeo para celebrar o aniversário dos meus 10 anos de carreira e mais de 50 000 horas de experiência, que me permitiram dar o salto quântico. Só não me qualifiquei para as Olimpíadas porque os anjos estavam de férias nas Plêiades e se esqueceram de dar aquele empurrãozinho que faltava.

         Mas enfim, hoje estou super triste e trago uma mensagem que nem todas vão gostar de ouvir… Tenho de confessar que estou super sensível e preciso de ser super honesta com vocês. Este é um momento super vulnerável, porque como sabem a vulnerabilidade é o ingrediente secreto do amor. Por isso, vou abrir-me e ser super transparente com vocês.

         Tentei criar um espaço seguro, um espaço de empatia e compaixão que vos ajudasse a superar desafios, a saírem da vossa zona de conforto e a criarem resiliência para se empoderarem como deusas que são. Mas a verdade é que fui abusada. Vocês disseram que queriam, mas afinal não queriam. O amor, isto é.

         São más e manipularam-me, quando eu até de madrugada estava disponível para canalizar as mensagens dos anjos e para vos aturar. Os outros coaches cobram balúrdios e nem fazem atendimento personalizado, quando tudo o que eu pedia era um pequeno investimento de 4999 €, que iam acabar por recuperar, mas parece que nem dado. E as que se comprometeram e disseram que queriam afinal não queriam. Mentiram-me. São más e inseguras, e tentaram usar-me para manipular os homens.

         Vou ser ainda mais transparente e atirar-vos à cara que os anjos ficavam com 90% de comissão e cobravam 200% à hora de madrugada e aos fins de semana. No fim, sacrifiquei a minha saúde e ainda saí prejudicada. Claro que isso não seria nada se vocês quisessem MESMO e estivessem dispostas a sair da vossa zona de conforto para vibrarmos em sintonia. Mas são demasiado ingratas e não estão dispostas a trabalhar para atrair a vossa alma gémea.

         Por causa de vocês, experienciei carradas de energia negativa e um ambiente tóxico. Ainda estou a cambalear. Mesmo assim, esforcei-me ao máximo, com toda a minha empatia, por enviar amor e luz para a vossa ruindade, mas ela foi mais forte do que eu. Não tenho vergonha de admitir. Dei tudo de mim apenas para ser traída, como Cristo.

         Mas olhem, para as que quiserem MESMO, estou prestes a lançar o novo curso Descubra a Deusa Irresistível que Há em Si, que vai ajudar a reprogramar as vossas crenças limitantes e ainda oferece uma pulseira magnética que muda de cor e um áudio com afirmações subliminares. Pagamento adiantado e não reembolsável. Para testar a vossa seriedade.

           Namastê!

 

15
Jun24

Para sempre

Sónia Quental

           

Torna-se claro que vivemos no fim dos tempos quando já não é de uso dizer-se “para sempre”. Se a rotação da Terra desacelera e os dias crescem, contra a impressão de aceleramento que a maioria informa, só os ingénuos ainda trazem na boca juras eternas. Os ciclos passaram, de séculos, a meses, dias, horas, cortados em descontinuidades cada vez mais curtas. Somos seduzidos com o mantra do momento presente como antídoto contra os corredores da memória, onde o futuro também tem quarto. Há que apagar os vestígios da cronologia, ser-se pessoa sem sombra na vertigem do instante, que não poupa noites à insónia.

No piano da estação de metro, alguém toca a “Canção de engate”, de António Variações, que me entra sempre na cabeça. Resisto ao ímpeto de a cantar, pelo comezinho da letra, antítese da eternidade ou apoteose de um “agora” impostor: o amor como aventura dos sentidos, um momento em que duas solidões se entregam, sem pedir continuidades ao tempo. Que “o amor é o momento” é daquelas frases que soam bem e que fazem eco naqueles de nós que gostam de citar frases sonantes sem se demorar muito nelas – mas é frase que mente.

Quem procura o Agora para escapar ao peso do tempo, ao seu prolongamento, é aprendiz de feiticeiro, tentando com moedas roubadas comprar as dádivas da eternidade. Conscientemente, já não podemos dizer “para sempre”: entre este segundo e daqui a uma hora, podem passar eras, tudo mudar. Se estamos vivos, passamos com elas, não resistimos ao tempo: não o deixamos transcorrer, mas percorremo-lo sem reservas até acabar. Só no fim do tempo pode existir o Agora onde o “para sempre” dorme e o Amor funda o seu lastro.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

25
Abr24

Da marmelada e de outras compotas

Sónia Quental

           

Apesar de termos deixado de nos reduzir ao desempenho de papéis sociais, com a noção de felicidade pessoal e autorrealização ao leme da nau das liberdades individuais, o resultado não parece apontar para um aumento da saúde mental, da satisfação e da felicidade em si. E não, desta vez a culpa não é do governo.

A abundância de possibilidades e as facilidades materiais que nos foram abertas nem por isso trouxeram vidas e relacionamentos mais significativos. Pelo contrário, igualmente fartas são a desorientação e a impermanência, com as pessoas saltando de emprego em emprego, de casa em casa, de relacionamento em relacionamento, de diversão em diversão, despedaçando a sanidade já vacilante contra o relaxamento sedutor dos valores morais, que não cumpriu a promessa de lhes sossegar a alma.

Havendo ainda quem lucre com a propaganda, tudo indica estar condenado à extinção o mito obsoleto das “almas gémeas”, em todas as suas variantes criativas (soulmates, twin flames, ...), dividindo-se as alternativas entre uma visão cínica e amargurada do sexo oposto, e o investimento em parcerias funcionais, segundo a lógica objetificante do comércio. Quando se torna demasiadamente fácil o acesso a relações físicas, e o conceito de intimidade emocional baixa cada vez mais o preço, é tentador sonhar com o unicórnio que se diferencie, reabilitando o que parece já não ter defesa: a pureza, a confiança, a lealdade, a constância – impermeáveis à degradação reinante. É uma ânsia remota, que adquire os contornos esfumados da fantasia e soçobra contra os números dos divórcios e das famílias desfeitas, a normalização dos deslizes e das relações “abertas”, do sexo casual, das situações sem rótulo e sem compromisso, das permutas leves em ambientes de limites também eles esbatidos.

Como os produtos perecíveis e de consumo, as relações têm ciclos cada vez mais curtos, prazos de validade impiedosos. A fluidez insensível dos encontros e das salas de chat já não deixa que se pense em alguém como “especial”. Nesta impessoalidade sem contratos, estamos todos de passagem – no strings attached. Os finais escrevem-se em aberto, o destino pesa: deixá-lo fluir.

 

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Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

15
Abr24

Metacoração

Sónia Quental

Ensinaram-me que o amor era transgressão: 10 minutos roubados contra o muro.

 

Cheirava a tabaco e a Hugo Boss, toca de bicho no relento da chuva. Usava toalha de praia e fazia urticária,  tentação tremeluzente de esperas, testamento a vermelho até a tinta acabar.

Palavras raspadas do dicionário para dizer o proibido: que o amor havia. Era pentear poemas e saber que amor era mais hipálage do que metáfora, cravejado de antíteses.

O amor não podia andar de mão dada (ensinaram-me isso quando me mostraram que o amor batia). Eram cartas escondidas em envelopes disfarçados, telefonemas mudos, traições, denúncias. Se havia coisa que o amor trazia, era sempre castigo.

O amor era sombra que caminhava na frente quando não tinha pernas para lhe chegar. Era peixe que não mordia o isco e que fugia, escorregadiço. Nunca segurei o amor na mão: vinha para comer e logo se ia, antes que pudesse amansá-lo.

O amor era do reino das fomes e dos impossíveis. De noite, fantasia, fantasmagórica insónia – pesadelo de dia. Procurado pela justiça com recompensa avara. Era mísero e magro o amor, inclemente. Crescia de sustos, perseguido de morte. Sobrevivia a pão e água, pescada cozida a acompanhar.

 

Era só espinhas. Uma faca no escuro.

 

Serial bully, eclipse permanente do sol. Era eu a ir embora, quando o amor era promessa que o tempo amargava, cavalo alado descontente das asas. Metassuspiro.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0