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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

04
Set24

Selvagem

Sónia Quental

 

         Estava no meu primeiro exílio, a colónia de férias, quando a primeira banda sonora me fechou a infância, entranhando-se no nevoeiro de um abandono com hora marcada. Todas as tardes, o bar da praia fazia soar a música “Nasce selvagem”, toada para uma cria que não fazia parte da ninhada e não sabia que “selvagem” era palavra que lhe descrevesse a vergonha.

         Compreendo agora que foi a forma mais fácil de me dizer que vinha para atravessar a lonjura, deixar família, amigos, trabalho, vocação para trás. A forma mais melódica que havia de me contar que ia passar a vida a ir embora, a mim, que tinha medo de bruxas, gente desdentada e mulheres com pelos nas pernas (a minha mãe era esteticista, por isso eu reparava sempre nos pelos). Não se podia recorrer aos profissionais dos oráculos para entregar a mensagem, por isso ela veio cantada pelos ares de um verão sem sol nem azul.

         Virgem de passado e com o coração mais ou menos ileso, estava longe de compreender palavras como “rotina” ou “profissão”. Mas nos Perdidos e Achados nunca disseram o meu número e eu despertencia cada vez mais. Não era de ninguém, também não era minha. E não parava de nascer, prematura, de encontrar novos exílios que cantavam a mesma canção, até que parei para ouvir. E descobri-me selvagem no “não” que trago pendurado na boca desde que aprendi a falar. Todas as vezes que aprendo a falar, o começo é com a mesma palavra, a que me tentaram fazer engolir, com medo da sombra que as palavras projetam. É nela que me enrosco, outra vez feto, cada vez mais minha.

 

 

04
Abr24

Cura para a insónia

Sónia Quental

Lembro-me de quando aprendi a fazer aviões de papel (a versão simples e a elaborada), da bola que fiz pela primeira vez com a chiclete e do vizinho que me ensinou a assobiar com os dedos. Guardo a imagem fixa dos pirilampos que apanhava e agasalhava na mão, atinando já de pequena que precisava de secreta luz para me fazer notar. Fora essas estreias, todas antes dos 10 anos, as Peta Zetas na boca e o “f” minúsculo desenhado na perfeição, desde então tem sido sempre a descer. Não houve outra habilidade que me fizesse sentir igualmente capacitada nem primeira vez que voltasse a ser a primeira: a face da Terra era já conhecida e o poço do furor literário praticamente secou.

Foi por isso que atirei as febres lá para o alto e que passei a aspirar ao impossível: transformar chumbo em ouro, achar a galinha cor-de-rosa já aqui mencionada, encontrar o ponto certo do molho de mostarda e mel, curar a doença mental no mundo, conhecer a identidade do Batman. São esses os motivos da minha insónia. Com tanto que fazer, não esperem que me deixe deter por políticos a distribuir pevides na rua, quais testemunhas de Jeová convertidas à pressa.

Desde os tempos da Rua Sésamo que sei que é preciso alguém para martelar, visto não podermos ser todos astronautas nem mediadores imobiliários. Assimilei a mensagem e peguei no martelo, mas não escolhi madeira barata. Canso os braços nas noites brancas, porque é preciso torná-las mais brancas e as noites não são compassos de espera. É nelas que o trabalho se afunda, que a vigília se afia. Se caio no sono, há um cão que me morde as canelas para os olhos abrirem.

Os pirilampos viajaram comigo para alumiar a madeira enquanto cavo novos veios de luz. Tudo para que os olhos do Amor se voltem uma vez para mim: não me importo de ser invisível desde que brilhe no breu.

 

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Modelo da fotografia: Paulina

2016 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

01
Jun23

Quero um amor com fios

Sónia Quental

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I, too, had the natural impulse to want to be seen, to want to meet some other human being in this damn life, full of gains, and idiocy, and superficiality, and insanity - to meet another human being in the Deepest. What greater blessing is there than that? Not for self, but for Love.

Kavi Jezzie Hockaday

           

Quero um amor analógico, revelado com paciência na câmara escura do coração. Nada de imagens instantâneas, que aparecem no momento, e da gratificação fácil, enganosa que dão.

Quero um amor com fios onde o wireless reina supremo. Um amor como as cassetes, que é preciso virar para ouvir o lado B, cuja fita se embaraça e pede destrinça. Quero um amor denso, que se possa ver e tocar, com episódios semanais por que é preciso esperar – não dessas séries que se vê de uma assentada, em maratonas de madrugada e de fim de semana, e que se esquece logo que acabam.

Quero um amor apurado, que não seja mera fast food; um amor que leve o seu tempo a cozinhar, com ingredientes exóticos e simples, misturados a olho por uma mão que conhece. Um amor que venha com brinde e lance pega-monstros comigo.

         Quero um amor novo, não em segunda mão, comprado na Zara ou made in China. Quero um amor digno, roupa de cerimónia que se veste todos os dias, que não tenha de guardar para a missa de domingo. Quero um amor que persista. Um amor vintage, que não saia de moda e a que possa sempre voltar, a peça básica sem a qual nenhuma funciona.

Quero um amor que não precise de lançar cartas para adivinhar sortes nem desfolhar malmequeres. Um amor de criança, eterno e inocente, que me estale na boca, como as Peta Zetas das tardes em que o tempo não se movia.

Um cubo mágico, com a dose certa de desafio, mas que sempre se refaça depois do desalinho. Um amor que aperte uma pestana nos dedos e peça o mesmo desejo de olhos fechados.

Quero um amor peregrino, assombrado pelas mesmas perguntas que eu, que acerte o passo comigo e ouça o silêncio comigo. Que me lave os pés e eu a ele. Talvez seja inveja de quem teve um Tamagotchi, mas quero um amor de que possa cuidar.

Quero um amor que me leia em braille e conheça as linhas com que me coso. Só lhe vou pedir que me passe a ferro. 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0