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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

26
Dez23

Apontamento escangalhado

Sónia Quental

 

Um dos exercícios que mais me elevam é conhecer uma palavra que me deslumbre.

Manuel Monteiro 

 

        

O Medo acordou-me no escuro. Não posso dizer que tivesse dentes brancos ou o corpo quente, embora a jugular lhe palpitasse com vontade. Bichanava-me coisas malditas, perturbava-me o sono. Achei que o inseticida que tinha de atalaia não surtiria efeito, por isso fiz-me de morta, petrificada.

Ora me ATAZANAVA com a palavra que eu tinha deixado fora de lugar num texto, ora com os mais veementes motivos existenciais, ameaças de morte sempre veladas – assim, sem meias-medidas, em plena madrugada de Natal, quando as defesas estão relaxadas.

Mas os planos saíram-lhe furados, porque o que fez ao apontar-me a palavra fora de sítio, em vez de comichão, foi que me acudisse a outra que eu queria um pretexto para usar: “ESCANIFOBÉTICO”, que avistei num livro infantil, depois de longos anos de separação. Tal como há pessoas que sacam da carteira (ou do telemóvel) para mostrar a fotografia dos filhos, dos netos, do cão, eu gosto de sacar palavras, dar montra embevecida à sua beleza ou encanto, como se me pertencessem.

“Escanifobético” fez-me logo querer ESCANGALHAR de riso e, mais potente do que o inseticida, escangalhou num instante o Medo, que ficou fulminado ou SIDERADO com semelhante munição (outra palavra secreta que saquei em catadupa).

Foi assim, no embalo do dicionário, que o sono voltou e me encontrou, a mim e ao Medo, ÓSCULOS à parte, num AMPLEXO de trégua que restaurou o Natal.

 

17
Ago23

Valha-me a meia de leite

Sónia Quental

 

Gnosis is a moving target. Walking its path is a nomadic life. When night falls, you pitch your tent. In the morning, you pack it up, put in on your back and start walking again. Don't pitch it anywhere permanently. Be the infinite explorer.

Neil Kramer

 

 

Ouvi mais de uma vez pessoas que trabalhavam em cafés ou padarias fazerem comentários de desabafo sobre os hábitos dos clientes regulares. Exasperava-as que a mesma pessoa tomasse todos os dias o mesmo pequeno-almoço, a mesma meia de leite com o que quer que fosse a acompanhar, apesar da variedade de opções em oferta. Os motivos não são tão elementares quanto possa pensar-se, embora nem sempre sejam conscientes.

Os hábitos, por mais pequenos que sejam, são âncoras num mundo de incerteza e insegurança. Falando por mim, que convivo há muito com um grau de incógnita robusto: quase sempre, como trabalhadora independente, não me é possível saber se daqui a um mês vou ter trabalho ou ordenado, o que dificulta fazer planos. A ansiedade e o desgaste que esta situação vai naturalmente gerando ao longo dos anos são amplificados pela falta de uma estrutura familiar e afetiva de apoio. Somam-se as mudanças que vêm de fora, da sociedade, e as que irrompem de dentro, ditando-me viragens de rumo que me cabe apenas pôr em marcha. Uma consciência que não vive petrificada exige um sacudir de pele constante, um nunca pousar a cabeça duas vezes no mesmo leito.

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No meio disto, o que me vale é a meia de leite ao pequeno-almoço. Pode não ajudar a tornar mais interessante o dia de quem a serve, mas é das poucas coisas a que ainda me posso agarrar, tirando quando fecharam cafés e postigos. Aí, nem meia de leite havia.        

Acresce que a quantidade não simplifica a escolha. Quando há muito por onde escolher, a confusão é tanta que quase sempre se escolhe errado, a que se segue o arrependimento pela oportunidade perdida de tomar aquilo de que se gosta garantidamente. Alivia ter-se pelo menos uma preferência em que não é preciso pensar, que é imediata e não atraiçoa. Um pequeno prazer certo entre os tantos que falham.

Há ainda o conforto de ir a um estabelecimento onde se é conhecido. Ter alguém que sabe o que queremos e como gostamos de o tomar, sem ter de perguntar. A comunicação silenciosa e conivente que se estabelece num sítio que não é casa, mas que se torna um pouco mais como casa e que às vezes nos mima com rabanadas fora de época.

Mau grado os argumentos, sei que chegará um dia em que até este apego terei de deixar. Até lá, valha-me a meia de leite.

 

 

Fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0