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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

15
Nov24

Casulo

Sónia Quental

 

          Para alguns, a vida é um casulo depois do outro. A falta de vínculos seguros faz sentir a porosidade ventosa de uma cápsula que não protege, apenas isola, tornando-nos ilhas à deriva num oceano de pessoas felizes, que nascem com a certeza de qual é o seu lugar e do seu direito inato de o ocupar.

      Na altura, o bullying não estava na moda. Ouvia-se apenas os cochichos de troça pelas costas, a segregação desdenhosa dos autoconfiantes, com a pressão para nos fazer imitar-lhes os modos em troca de aceitação – a sugestão inocente da mutilação para nos colarmos aos vincos que alguém dobrou por nós. Quem achava que tomava conta da nossa felicidade ao participar dessa pressão para funcionarmos em sociedade, por mais convencido que estivesse das suas boas intenções e da sua autoridade pedagógica, não conseguia disfarçar o desconforto de conviver com o que sobrava à normalidade, ameaçando trazer ao de cima o que a custo asfixiava sob o limiar da consciência.

      A vida era um casulo de plasticina, que as mãos dominantes apertavam e moldavam ao seu critério – porque quem não sabe nem finge saber qual é o seu lugar, quem não teve uma estaca de amor a ajudar as suas hastes a medrar seguras, é durante muito tempo frágil e fraco, suscetível, movido pela fome de pertença que o faz render e render partes de si. A resistência diária exige um dispêndio incomportável de energia, por isso vai-se cedendo aqui e ali, até que deixa de se notar. Quando a cedência se torna modo de vida, perde-se conta às suas manifestações mínimas, que têm um efeito tão devastador quanto as maiores, pelo costume que criam – por escaparem mais facilmente à deteção.

        Em cada patamar que traz a renovada clareza de que a busca de quem somos nos leva por um trilho cada vez mais solitário, há uma escolha a fazer. Quem porfia, quem faz essas escolhas deixando-se morrer e voltar à vida sem saber se voltará a respirar, abandonando um casulo depois do outro, contrariando os reflexos condicionados, reconstruindo a sua integridade psicológica e anímica, com um compromisso cada vez mais estreito com a verdade, descobre que já não quer pertencer, que já não é o enjeitado, mas aquele que enjeita. O oceano de plástico lá fora, o nonsense da alienação ubíqua, as manipulações impercetíveis nas relações pessoais já não convencem. Não se suportam. Porém, a cada casulo rompido, revela-se uma força desconhecida, a pele fica mais transparente, há um centro que ganha em vitalidade e firmeza.

         Ficam para trás os tempos de mendigar sobras, assim que se sentem os primeiros respingos de uma fonte interna, essa que ninguém procura, com a cerveja ou o copo de vinho na mão, as incontáveis concessões às amizades de conveniência e ao desejo de aceitação adolescente, que nem a passagem do tempo acalma. O casulo abre-se em casa e os funcionais interrompem a pose para nos assaltarem os segredos e surripiarem o mapa da felicidade que afinal também procuram, desfeitas as ilusões da funcionalidade, do sucesso, das respostas que afinal nunca tiveram.

 

 

02
Out24

Curvas

Sónia Quental

Our bodies are not designed to follow straight lines.

Angela Farmer

 

 

         O corpo expressa-se por linhas curvas. Conhece bem o ataque de retas e vértices, o castigo requintado de ocupar uma pose que não é a sua. O corpo não quer fazer acrobacias: quer ir para o chão amolecer dores incrustadas. Quer esticar-se, torcer-se e destorcer-se, moer devagar a recusa com que se fecha. O corpo conhece o cuidado que as aberturas pedem: a escolha certa do grau certo no momento exato. Fera subtil, não obedece a mandos. Sabe o que quer e o que talvez queira, mapa da memória que só quem não sabe atravessa a direito. Conhece melhor a sua astúcia do que quem o açoita, regime marcial em rotação contínua, vinte flexões e outras vinte e ainda não chega. Senhor dos seus ouvidos e só depois do nariz, o corpo reage à brutalidade que o agride, quebra o molde e vai embora.

 

A espreitar pelo buraco (2).jpeg

Fotografia: 2024 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

21
Ago24

Confessionário

Sónia Quental

 

         A alternativa à glamorização da imagem nas redes sociais, que faz parecer que todos vivem de férias, a viajar, se alimentam de pratos exóticos e passam o tempo em aventuras radicais, é o momento do confessionário. É o nome que dou a quando alguém ouve falar nos atrativos da vulnerabilidade e decide experimentar, com a mesma tónica na transparência em que se empenhava até aí – com a diferença de que o que antes era a “transparência” enfeitada do hall de entrada é agora a transparência hiperbólica da cave de horrores.

         Afinal, nem tudo eram rosas. A pessoa não estava a ser autêntica, mas decidiu assumir aquilo que era, com todos os defeitos e descalabros que tentava esconder dos outros. Percebeu intimamente o charme de se afirmar derrotada, o brilho indesmentível da humildade que não quer parecer que é, mas prepara as conclusões para os outros. Agora, a postura é de contrição, sai tudo cá para fora, com baba, ranho e o voto de absolvição fervorosa do público de followers, cujo coração torce pelo ídolo e por este seu lado tão humano, que toca o lado humano de cada um. No fundo, não são tão diferentes assim.

        E no entanto… Esta prática emocionada e indiscriminada da “vulnerabilidade”, ao estilo reality show, deixa a mesma sugestão de fake do que as anteriores máscaras do poder - a mesma sugestão que sempre senti quando alguém tentava aplicar o esquema da comunicação assertiva, expressando sentimentos e necessidades com a intenção sub-reptícia da chantagem emocional.

         Desabafo agora eu, neste momento de vulnerabilidade mimética, a repugnância instintiva que senti quando encontrei uma publicação do professor espiritual Jeff Foster, que passava na altura por uma fase crónica da doença de Lyme, exteriorizando um pânico que várias vezes o tentou ao suicídio. O título da publicação era “Will you remind me of my own teachings?”, a única parte que senti honesta em toda uma ode à vulnerabilidade, à abertura, à autenticidade e à transparência – termos que se acompanham muito, mas que têm uma essência mal compreendida. Entre o elogio das virtudes de dar a conhecer sem vergonha o inferno por que passava, revelava que não queria morrer, embora às vezes também sentisse o desejo conflitante de morte. Desde o “There’s no shame in crying out to your God when you’re on the fucking cross” até à derradeira confissão (“The ‘Fuck it’ becomes stronger than the ‘Namaste’”), os palavrões vão pontuando a poesia deste que se desespera na perspetiva de dar de caras com a morte (introduzo já aqui o spoiler de que o autor em questão recuperou, se encontra bem e foi recentemente pai).

         Dois dos grandes avatares da espiritualidade do século XX e de todos os séculos, Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj, morreram de cancro. Len-ta-men-te. O autodomínio que manifestaram é em tudo avesso à atitude que a publicação anterior deixa transparecer. Tiveram não só a dignidade de sofrer em silêncio, mas a capacidade de transcender a dor e o corpo. Quando procuro um professor, uma figura exemplar e conhecedora que me ensine a limpar a minha cave de horrores e a mudar-me para o andar de cima, não espero que essa pessoa seja como eu: espero que seja melhor. Mesmo que na condição humana não haja absolutos, há comparativos de superioridade. Por isso, espero-os um pouco mais invulneráveis do que eu. Espero que me mostrem aquilo que posso ser e não que tenha de ser eu a lembrá-los daquilo que ensinaram.

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0