O Oráculo
Tantas vezes tenho encontrado recomendações relacionadas com o conceito moderno de “autocuidado” – um conjunto de práticas que parecem girar em torno dos banhos de imersão, dos cuidados com a saúde, a alimentação e o sono – que achei que tinha de voltar ao primeiro filme do Matrix. Não me perguntem porquê, mas algo me disse que precisava de revisitar a cena em que Neo se encontra com o Oráculo, que mora num prédio vandalizado, guardado por um cego, num apartamento cinzento, com uma porta igual à de tantos outros. Só me lembrava de que recebia as pessoas na cozinha, enquanto fazia biscoitos, e tinha a sensação de que não seria dada a estadias prolongadas na banheira, embora se movesse devagar – ou antes, de forma deliberada.
A recapitulação da cena mostrou-me uma mulher de meia-idade que, além de cozinhar biscoitos, fumava, apontando para um letreiro acima da porta onde se lia a célebre frase de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Uma mulher radiosa, sábia, que não transmitia qualquer imagem de falta de amor-próprio, não parecia incomodada com o consumo de tabaco e açúcar nem sofrer de fadigas por servir primeiro os outros. (Acrescento de passagem que também não a imagino a engrossar os quadríceps e a transformar o corpo no de um homem, baseando nisso uma noção enganosa de autoestima que dividisse com o mundo no Instagram.)
É nisto que se enganam os profissionais de saúde e a trupe entusiasta do desenvolvimento pessoal, ao confundirem os cuidados pessoais com a busca da saúde física e mental, quando não com a busca do prazer. Mesmo aqueles que reconhecem a importância da meditação, da dimensão espiritual ou das práticas sagradas fazem-no a título decorativo, tratando o sagrado como mais um hábito a incorporar num regime que se destina a reduzir o stresse e a ansiedade e a melhorar a “qualidade de vida” – uma expressão que ainda hoje não sei o que significa. Como se não fosse mais do que um utensílio a guardar no nécéssaire e a introduzir na higiene diária para a restauração pessoal, posto que não gere grandes perturbações – um pouco à semelhança dos romances policiais que alguns gostam de ler na praia, que entretêm e estimulam a mente até certo ponto, sem trazer inquietações metafísicas profundas.
Segundo os preceitos modernos, o Oráculo do Matrix não parece praticar o autocuidado, nem sob a forma mais sofisticada do mindfulness, mas não vejo nada que lhe falte, antes parecendo sobrar. Talvez porque, com toda a sua singularidade, se tenha tornado aquilo que alguns preferem manter à distância de uma prática, tendo deixado de se distinguir dos outros e do que os transcende. Talvez porque seja uma mulher que se conhece e, tal como todos os que percorrem o caminho do autoconhecimento, não tenha medo de se deixar perturbar. Duvido que faça os biscoitos de receita na mão.