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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

26
Set24

Bicho do buraco

Sónia Quental

Uma autoestima isenta de fissuras traduz um amor-próprio mal informado.

Montse Barderi

 

 

         Cresci agudamente consciente da privação: privação de dinheiro, de qualquer conforto que desse mau nome à austeridade, de desejos de porta aberta, do consentimento. O amor era uma animal raro que acenava da ficção de livros e filmes, dos poemas de serial lovers como Pablo Neruda, com as suas metáforas em foguetes a céu aberto. Na vida real, não o encontrava senão em lapsos de curta duração, fogos teatrais, logo transformados no que parecia o oposto do amor, um campo minado onde nunca se sabia qual seria a próxima explosão nem quando o bicho atacaria as mãos que o queriam salvar.

         Disseram-me que o primeiro passo para o amor era a autoestima, solução pronta para os cabelos baços da vida, que ora caíam, ora davam nó. Como é que nunca me tinha lembrado disso?... Juntei esse fardo aos outros, entalado entre os planos de sessão e as fotocópias, a renda da casa, os recibos verdes. Invejava as pessoas que pareciam ter tudo fácil, autoestima incluída. Invejava até quem só tinha autoestima, porque a carência de substância nunca perdia popularidade. Mas a inveja era verde, como os recibos, e tão feia como eles – não a queria para mim. Já a “Autoestima” não passava de manual de páginas brancas que só trazia título, desses aparelhos de instalação automática e botão único, precursores de uma inteligência artificial que já então se aderia pouco, dispensando FAQ e a resolução de problemas comuns – pois que problemas poderia ter o utilizador de semelhante dádiva?

         De meu lado, não havia banho de espuma nem afirmações que a materializassem, segredos femininos de mulheres com passo de deusa – e nada que me convencesse de que o que precisava era do toque mágico da yoni healing. O dedo que me apontavam dizia: bloqueada. Escrevi na minha lista: 1. Encontrar a autoestima, 2. Desfazer bloqueios, 3. Não me fechar em casa. Como sempre, fiz tudo ao contrário. E foi dentro de casa, com prognóstico reservado e contra o parecer dos especialistas, que encontrei o animal extinto, na mesma barriga onde a fome tinha feito um buraco que nunca fechava. Bastou deixar de bater com o martelo, de tentar encaixar em lugares e pessoas que não eram os lugares pro que eu sou. Deixei de pensar que o problema era eu. Não acreditei mais em bloqueios, nascimentos tortos, o fantasma de Saturno na casa 12. Deixei explodir todas as minas. O amor foi o que ficou intacto. Estava lá no início, ao mesmo tempo que Eu.

 

01
Dez23

#loveyourself ?...

Sónia Quental

Às vezes, esqueço-me de gostar de mim. É como sair de casa com a camisa desabotoada ou uma meia de cada cor. Já me aconteceu ir com as leggings do avesso. Depois reparo e ocorre-me: já me esquecia de gostar de mim. Conto os minutos que andei nesse estado, fora de prumo, de tom. Quantas pessoas terão notado. Começa a chover e, irritada por não ter trazido guarda-chuva, irrito-me com a irritação. Ah, outra vez o vício de me castigar.

Vou pela rua e admiro as pessoas para quem parece fácil gostar de si. Costas direitas e cabeça erguida, a passada convicta, certezas muitas. Quando penso que gostava de ser assim, a polícia da consciência sopra o apito: passei outra vez o sinal vermelho. Quase que me esquecia de gostar de mim.

Ou quando me convidam para socializar e eu faço cara séria e digo que vou tentar, sabendo desde o início que não. Não gosto de estar no meio de gente, por isso crio fábulas complicadas. A verdade é uma bofetada dura de dar. E nem sempre é fácil gostar de mim.

A páginas tantas, estou empanturrada de preocupação, emoções sólidas que não levei ao calor brando do banho-maria. A caixa de Pandora a abarrotar. Sempre que a esvazio, volta a encher-se – o único milagre que faço. Nem a esperança quero lá dentro, esse veneno subtil. Tirem-me a esperança, mas deixem-me a leveza de gostar de mim. Agora, que lhe provei o sabor, quero mais.

Engelho o nariz ao ver que tudo o que escrevo agora mete receita de culinária. Um dos primeiros e mais volumosos livros que li não foi a Bíblia, mas o Tesouro das Cozinheiras. Livro de sabores e comédia, uma primeira incursão no mundo dos graúdos.

Agora, que penso, vejo que, antes de copiar palavras do dicionário, copiava receitas. Nos tempos livres, digo. Agora, copio citações. Gosto de copiar e de fazer listas – é assim que não perco coisas nem sonhos, dando-lhes suporte, desenhando-lhes a forma. É isso que me prende à terra e ainda me separa dos quadros de Chagall. Isso e os figos. São uma boa forma de gostar de mim (quando me lembro).

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

30
Set23

O anti-herói

Sónia Quental

 

(…) o meu problema é que o conselho dos gregos era ‘conhece-te a ti mesmo’ e o que hoje os gurus da autoajuda dizem é ‘ama-te a ti mesmo’. No meu caso são dois conselhos incompatíveis. Porque eu ou me conheço, ou me amo. As duas não consigo. Em princípio, depois de me conhecer não dá para o amor.

Ricardo Araújo Pereira

 

 

           

O culto do herói vai-se revezando com o do anti-herói. Se, por um lado, a autoconfiança continua a ser enaltecida como o atributo mais cobiçado em ambos os sexos, há os que fazem predicado maior da falta de confiança ou de uma alegada falta de capacidade. De há alguns anos para cá, vários humoristas, atores e figuras mais ou menos públicas têm conquistado a atenção do público pela paródia bem conseguida que fazem de outras celebridades e influencers, zombando de poses do Instagram, estilos de vida e da imagem de sucesso vendida pela sociedade.

Têm um humor inteligente, cultura e talento. Conseguem fazer comédia sem grande malícia, rindo de si e convidando-nos ao mesmo riso descomplexado. Levam-nos a reconhecer-nos neles, maravilham-nos com a habilidade de surpreender pensamentos que nem sabemos que temos, expõem as imperfeições, a falta de jeito, os momentos de insegurança e deselegância e as quedas em desgraça, num mosaico reinventado da Bridget Jones que vive dentro e às vezes fora de nós. A estratégia consiste em pôr a nu atos falhados, elegendo como tema o fracasso, em vez do sucesso, chegando a atribuir o próprio triunfo à sorte ou ao acaso e desviando-se dos elogios como se de balas à queima-roupa.

Dizia Ricardo Araújo Pereira, em entrevista a Mariana Cabral, que os modelos de virtudes não fazem comédia. Importa, porém, notar que nem todos os momentos são de comédia e que mesmo quem dela se ocupa deve nalgum momento saber sair do papel e mudar de registo. Às tantas, aquilo que desarma e encanta pela genuinidade transforma-se numa máscara que os humoristas já não conseguem tirar para ter dois minutos de conversa séria, sem contar piadas, cair no sarcasmo compulsivo ou em tiradas autodepreciativas. Aquilo que num primeiro momento faz rir, descontrai e gera o conforto da comunidade, ao fim de algum tempo acaba por desassossegar – afinal, não saímos ilesos do confronto permanente com o nosso lado mais raso.     

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Lembra-me as feiras de aberrações. Ou quem tem um defeito físico, o destapa e passa o tempo a apontar para ele e a rir, convidando os outros a formar um coro de gargalhadas, apenas para se antecipar a quem pudesse fazê-lo primeiro. Ridicularizo-me para desmanchar o jogo dos outros e não ser posto ao ridículo por eles, concorrendo ao troféu do mais enjeitado, de quem merece menos o reconhecimento que tem. O valor da exemplaridade é substituído pela exibição das pústulas e do sucesso que bateu à porta errada. Pergunto: será que é apenas a torpeza que nos humaniza e cria identificação? Não haverá um limiar além do qual essa humanização se torna insincera e se transforma, também ela, em desumanização sórdida?...

Trigueirinho, que, apesar das dezenas de obras publicadas, continua um grande desconhecido fora dos círculos esotéricos, demolia muitas vezes o conceito de autoestima, tão caro à psicologia e à indústria da autoajuda. Em harmonia com a confissão de Ricardo Araújo Pereira em epígrafe, dizia ele que, se o ser humano se conhecesse, não acharia nada de que pudesse gostar. Citava a esse respeito o famoso trecho da carta de S. Paulo “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” para transmitir que nem com as melhores intenções acertamos no alvo. Mas não se ficava por aí, assumindo que não haveria nada de superior ou de salvável no Homem. Dizia que, se o melhor de nós não era nosso, não deixava de existir e devia ser ativamente procurado. Era a esse núcleo interno e a esse bater de caminho que o nosso amor devia dirigir-se, para que as suas qualidades se expandissem e transmutassem um ego solidificado não só pelo engrandecimento pessoal, mas também pelo rebaixamento. Gostava ainda de citar Padre Pio, que terá dito que, numa ordem inversa à humana, as coisas divinas (como esse ser interior) precisavam primeiro de ser amadas para só então serem conhecidas.

A redenção pede mais do que assumir o papel de bode expiatório ou do que um mea culpa em loop: o reconhecimento do fracasso pessoal é apenas o primeiro passo – não um ringue de patinagem ou um museu de horrores com as portas sempre escancaradas. Esconder compulsivamente as virtudes e dar palco aos defeitos não é muito melhor do que pôr o verniz da autoconfiança e fingir qualidades que não se tem – é apenas o lado B da cassete, uma outra forma de vaidade. Se a consciência da própria falência lembra a humildade e ensina a compaixão, redimensionando a importância que nos damos, não é a nossa realidade última ou uma a que devamos reduzir-nos.

Bem administrado, o riso continua a castigar costumes, mas o repisar do feio desfeia-nos e deforma-nos. Atribui o mérito à obra do acaso, esconde a beleza interrompida que se entrevê no humorista, o heroísmo que talvez inspirasse. Sob o pretexto apenso da autoaceitação, mantém-nos seres rasteiros, a chafurdar perpetuamente no próprio lodo, adotando o escárnio como modo de vida. Pior do que anti-herói é ser-se um herói relutante, porque é desdizer uma Sabedoria maior. E, se há lição que todos os heróis aprendem ao longo das suas tribulações, é que, mesmo quando se dá luta ao destino, não se passa ao largo dele.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

27
Abr23

A fasquia mais alta

Sónia Quental

Escadaria do Mercado do Bolhão (6).jpg

A igualdade degenera em mediocridade.

Fabiano Goes

 

A resistência à perfeição é muito grande.

Trigueirinho

 

         

     A sensação foi de refrescante estranheza ao ler sucessivamente a biografia de dois líderes espirituais distintos, pelo traço comum de grande exigência que lhes era atribuído. Não terá sido coincidência: a pressão molesta que venho há muito sentindo, em todas as esferas da vida, é a pressão antiexigência. Na educação, na formação e nas academias, a fasquia baixa-se cada vez mais: seja para engordar números, seja sob o pretexto de inclusão e pelos casulos de fragilidade que é preciso resguardar. Nas relações interpessoais e sociais, o preceito soberano do “não julgamento” e o relativismo que nos vai afastando da noção de Verdade amolecem o critério e apagam a capacidade de discriminar. Tudo é permitido, o talento de manter relações amistosas com todos é considerado um alto predicado (ouvi repetidas vezes adolescentes e adultos descreverem a sua maior qualidade como a de serem “amigos do amigo”), a ideia de igualdade vai engolfando a noção de mérito, omitindo os níveis e as diferenças qualitativas entre as pessoas. Tornámo-nos diplomatas eméritos, com um vocabulário cada vez mais reduzido, em virtude das ofensas que as palavras carregam, e sumamente hábeis na troca de favores.

Não sei qual terá sido a primeira palavra que disse, quando comecei a falar, mas sei que fui desde cedo obstinada nos “nãos”. Com tantos a defenderem laxismos, a condenarem o que quer que entendam como manifestação de negativismo, intolerância, preconceito ou discurso de ódio, comecei a convencer-me de que devia juntar-me às turbas no afago infantilizante da autoestima geral. Devia ser uma pessoa melhor, trabalhar o sorriso postiço, a minha limitada capacidade de perdão e acreditar nas boas intenções de todos, abafando os sinais da inteligência e os clamores da sensibilidade. As palavras querem-se de simpatia e mal de mim ferir suscetibilidades ou sugerir a alguém que esteja abaixo da fasquia.

É fácil ceder a baixá-la, quando é isso que nos traz recompensas e um sentimento de pertença. É fácil ceder à ilusão de que tudo se resolve com a comunicação e uma tolerância maior – de que as diferenças se resumem a diferenças de pontos de vista, como se as divergências de opinião estivessem desligadas do desenvolvimento de consciência. É fácil acreditar quando nos ensinam que o mundo não é a preto e branco, mas uma grande área cinzenta. Quanto a mim, é o cinzento que nos oprime.

Por entre estas cogitações, ocorreu uma pequena revelação, contraintuitiva, enquanto esgarafunchava em busca de uma qualquer vocação que se tivesse revelado em criança, quando dizem que nascem as vocações: estou aqui para dizer “não”. Sem que se ilumine de imediato uma profissão em que me paguem para tal, tenho pelo menos o consolo de estar de acordo comigo mesma e de conciliar as divisões internas, feitas de vozes que teimam em ditar-me o ponto da consciência, que ainda resiste à sedução de facilitar e baixar a fasquia.

Se, como muitos gostam de argumentar em momentos de aperto, ninguém é perfeito, não é por isso que o compromisso com a perfeição deva deixar de existir – entre a exigência e a complacência, mil vezes a primeira.

 

Wind extinguishes a candle and energizes fire. (...)

You want to be the fire and wish for the wind.

Nassim Nicholas Taleb

 

Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0