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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

08
Mar25

"Thy name is woman"

Sónia Quental

 

Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir.

Paul Valéry

 

 

         O movimento de diluição das diferenças de género que ganhou expressão nos últimos anos foi precedido nalgumas décadas por uma fação a dado ponto paralela, de redescoberta dessas mesmas diferenças, em que se baseiam muitas mentorias de relacionamento. É assim que hoje se vê uma afluência de coaches que vendem os segredos não só dos relacionamentos, mas do que é, em essência, a feminilidade e a masculinidade. A par da estreiteza de certas generalizações, a visão de cada um traduz, como não podia deixar de ser, a própria maturidade, fazendo circular novos estereótipos que refletem diferentes graus de miopia. Foi neste contexto que me deparei com o vídeo abaixo, em que uma coach desfila na rua, descrevendo-se como modelo de feminilidade e elegância. Consigo depreender porque é que os olhares se voltam para ela, mas deixo a interpretação a cada um.

         A pretexto deste vídeo e da efeméride, aproveito para expressar aquilo que não tenho como marca de feminilidade: feminilidade não é usar sapato de salto alto; não é pintar as unhas nem carregar a pele de maquilhagem; não é o menear de ancas que se vê aqui. Esta manhã, depois de ter sido recebida numa loja por uma pessoa que me desejou feliz Dia da Mulher com um sorriso treinado e uma voz estridente (daqueles votos que agradeço e não devolvo), fui atendida logo a seguir por outra que me ofereceu ajuda exalando uma feminilidade natural, apesar do excesso de peso e das calças de ganga que usava.

         Se em textos anteriores propus que a afirmação do feminino não passa pela exibição relaxada de deformidades, em nome da aceitação e protesto contra a ditadura de uma imagem social de beleza, ela também não reside na artificialidade decorativa nem na neurose. Conheci ao longo da vida várias mulheres deslumbrantes cuja insegurança as despia de toda a beleza. Conheço quem viva a contar calorias e só consiga usar leggings pretas, para que não se notem as imperfeições. A perfeição que conheço não é de vidro e não é tirana. Por agradável que tenha sido, a seguir à democracia dos jeans, redescobrir as saias e os vestidos, hoje sei que não é o vestido que faz a mulher, mas a mulher que faz o vestido.

         Depois de crescer num ambiente em que não se reconheciam diferenças entre o modo de ser masculino e o feminino – o que, em vez de aumentar a compreensão entre ambos os sexos, a dificultava – foi extremamente curativo redescobrir-me como mulher, mesmo que não me reveja na forma de estar da maioria das mulheres que me rodeiam. Nesse percurso, aprendi também que a maturidade de homens e mulheres os leva a conhecer e a dominar crescentemente, e de modo consciente, a polaridade oposta. No entanto, antes de aspirarmos à androginia, sugiro que comecemos por ser aquilo que a natureza nos fez.

 

 

Always a paradox. Always tangible, but also, somehow, elusive and just out of reach. Always present, and yet, somehow, removed, the true female seems for ever, strangely, inexplicably, a wonderful and unfathomable mystery!

Théun Mares

 

10
Fev25

O agasalho

Sónia Quental

 

There is no one so depraved that he does not respond to Beauty in some form of expression. 

Marie S. Watts

 

 

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Tendo escapado incólume às pestilências da década, quando me dei conta da alhada em que estava metida, na semana passada, a doença foi imediata, sem dar tempo de me recompor psicologicamente para a travar. Passei o dia a tremer de frio e, se trago o assunto de novo à baila, é para fazer a ponte com a manhã seguinte, em que antes das 7 h, na padaria, uma das freguesas habituais me fez uma emboscada à porta para me pedir os meus casacos, para resumir de um modo grosseiro. Que os tinha muito bonitos e me lembrasse dela quando quisesse dar algum.

         Quando a vida me acena com o seu sentido humor insuperável, percebo que está tudo bem: a deserção do sentido de humor é o primeiro passo para a ruína da alma. O desdém dedicado à beleza, o segundo. Ou talvez seja ao contrário.

        Já fui abordada em público por muitos olhos vazios a pedirem moedinhas, sopa, café e cigarros (!), mas esta foi a primeira vez que me pediram casacos, e não com o pretexto do frio, antes da beleza. A maioria das pessoas não incluiria este item imaterial no seu estojo de bens essenciais, sendo visível que aquela que me pediu os casacos teria argumentos materiais mais convincentes.

          Pode alegar-se a vaidade, e não nego que o defeito me toque a mim, mas há outras subtilezas a considerar. A beleza, natural ou construída, tem um poder de transfiguração silencioso que, sentido nos seus efeitos vaporosos, mas penetrantes, nem sempre se conhece de onde vem. Apela a quem sente uma certa ânsia de redenção, ainda que não saiba que anda em busca dela. Deixar-nos tocar pela beleza, querer fazer parte dela é a primeira licença que se dá ao abraço curativo do amor, o primeiro suspiro de reconciliação com a vida.

         Não disse à senhora que um casaco não faz milagres. Hoje vi-a na padaria orgulhosamente sentada com um casaquinho de pelo cor de rubi, por isso acho que faz.

 

Imagem: baralho The Solar Kingdom

08
Jun24

Expulsos do Paraíso

Sónia Quental

Como o cão, minha língua ladrava

à aterradora beleza.

 

Adélia Prado

 

One thing is certain: beauty has a holy vibration.

 

Zan Perrion

 

 

Quando vejo a democratização da moda, não me sinto representada: sinto-me expulsa do Paraíso. A reprodução do meu corpo real numa campanha inclusiva, aberta à diversidade dos padrões de beleza, estende-me um conforto temporário, que percebo trémulo e logo tomado por uma repulsa insidiosa.

A onda solidária de celebridades que expõem a celulite no Instagram também não me faz sentir mais próxima delas nem vê-las como mais humanas. Pouco me afrouxou os complexos: é só mais uma manifestação da sordidez que procura a infatigável ribalta.

Expor corpos reais, mostrar as pessoas “como são” é de uma nobreza que rápido oxida, com a doutrina da aceitação facilmente se convertendo no cânone da complacência, descartando como supérflua a atitude reverencial que a beleza evoca até em quem não tem fé. É, pasme-se, o efeito transfigurador da beleza que afinal chama à inclusão.

Quando me vejo fisicamente representada pelas marcas que abraçam a diversidade, sinto-me diminuída, em vez de reconhecida. Fixa num molde definitivo, lembrando-me sem descanso que não sou digna de entrar no Paraíso – instalando a dúvida de que sequer exista.

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Com o pecado original, veio a feiura primordial. É por isso que no caminho da salvação está o resgate da beleza perdida, que não é atributo intangível da alma, mas totalidade incorporada. A certidão de óbito que tentam passar a Deus só será oficial quando conseguirem erradicar a beleza, Sua face e condão. Depois da arte, é a vez da mutilação e carnavalização dos corpos, dos padrões estéticos generalizados, atribuídos a capricho aleatório.

A carne lastima a inocência perdida quando se vê retratada no seu realismo cru, tentando fazer-nos crer que estamos bem como somos (o que quer que isso seja) e que o é preciso é abolir os tabus, encetar manobras enérgicas de reanimação da autoestima.

Sem beleza, apenas a violência pode medrar. Como na teoria das janelas partidas, a degradação a céu aberto convida à franca ação demolidora. Não nos torna mais felizes ou benévolos. Para isso, continuamos a ter de esticar o pescoço, olhar para cima. Assim se fazem os cisnes: contemplando a existência do Paraíso.

 

Em lugares onde tudo é feio e esteticamente indiferente, é fácil ao comportamento modelar-se por esse padrão, tornando-se vulgar e grosseiro (…).

Theodore Dalrymple

 

Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

11
Abr24

"Slow motion"

Sónia Quental

 

E assim, não obstante a aceleração constante do ritmo de vida, arranjamos sempre maneira de nos deixar infiltrar pelas nossas lentidões.

 

Andrea Köhler 

           

           

Varro vertiginosamente o chão com os olhos desde que caminhar na rua se tornou prova de obstáculos, demarcada por dejetos caninos e escarros da mesma ordem. A atividade desportivo-contemplativa foi, porém, sacudida pelo choque quando comecei a deparar-me com caracóis que tentavam a sua travessia, disputando a mesma medalha. Mais do que a concorrência, afligiu-me aquela fragilidade afoita, sumamente esmagável, e a lentidão anacrónica dos moluscos, alheia ao acelerar dos tempos e às pressas urbanas.

Não esmagar caracóis foi mais um constrangimento que passou a fazer parte da prática diária, com os seus sulcos evocativos de espaços naturais ou ajardinados, que pelas artes do acaso me conduziram a uma palestra de Robert Moore sobre os arquétipos do Masculino. Nela, o psicanalista junguiano, coautor de King, Warrior, Magician, Loverreferia-se à importância de integrar o arquétipo do Amante no nosso dia a dia, de abandonar a vergonha e voltar ao jardim, num jogo de palavras entre o play e o display que descrevia o modo de estar nesse recinto à parte, fora do tempo e do espaço comuns, onde o entusiasmo é livre de se expressar na experiência do sensual, a que também chamou a redescoberta do corpo do amor. Também o masculino tem os seus oásis de êxtase onde bebe da beleza que o sacraliza.

Se o amor e a sensualidade não são coniventes com atrasos, também não concordam com a pressa nem com o tempo contado. Ainda que desfasada da imagem que de imediato associaríamos a este quadro, a presença dos caracóis em paisagem inóspita lembra o valor de nos deixarmos infiltrar pela lentidão e o jogo de prazer necessário que desafia o asfalto do tempo.

 

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Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

28
Mar24

"Trivia"

Sónia Quental

        Sento-me, preparada para esperar, quando recebo um e-mail com um inquérito sobre o que é a beleza nos dias de hoje. Um estudo sobre a beleza “real”. Ocorrem-me fragmentos de um questionário que Luís Quintais promoveu a poema: “Em que medida o incomodam sentimentos de predestinação? Nada? Um pouco? Moderadamente? Muito? Muitíssimo?”

        Chega a minha vez. Perguntam-me se quero acelerador. O cronómetro grita em surdina: acelera, acelera. Digo: “Não”. Desacelera. 35 minutos com a tinta. Como se me ouvisse, na rádio uma música desatualizada fala de chamas eternas e destino. Ainda não sabe que o destino é um algoritmo. A beleza, estatística de cabelos brancos.

       Enquanto me torno mais carvão, a cabeça rascunha. Consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo e há que aproveitar quando o tempo desacelera, mesmo que as mãos crispadas nos joelhos ainda estejam a contar. Desassossego nos momentos de transição, principalmente se espremidos pela pressa. Queria ter comigo o Ensaio sobre a Espera, de Andreia Köhler, que vinha muito a calhar, mas ainda não o comprei.

        Faço antes uma leitura ligeira, mas esperançosa: como curar a dor de costas através da conexão mente-corpo, mas nem a desaceleração dá tempo para praticar. No telemóvel, uma fotografia de uma página do Tao Te Ching aberta ao acaso (faltou-me a paciência para a copiar à mão): “Quem se põe em bicos de pés não se mantém ereto./ Quem estica muito as pernas não pode andar”.

        Tudo o que precisava de saber sobre dores de costas e predestinação. Quanto à beleza, tendo a concordar – moderadamente, isto é.

 

08
Mar24

Um minuto de silêncio

Sónia Quental

Pedem-me um minuto de silêncio por uma qualquer causa nobre que desconheço e nada me diz. Se fizéssemos um minuto de silêncio, silêncio só pelo silêncio, sem motivos ulteriores e em homenagem a coisa nenhuma que não o próprio silêncio, saberíamos que ele não é luto nem lamentação, e que o silêncio nunca vem só.

Solto o pensamento e deixo-o comprazer-se nesse minuto cheio de nobreza que se faz tão longo para mim, para quem a vida é silêncio. Silêncio forçado, num parêntese que fecha o mistério e reduz à modéstia o infinito.

           

Este é outro recorte de poema que copiei à socapa de um livro de João Habitualmente, que sabe o que é o silêncio, o que é a beleza e o que é a mulher:

 

E é verdade que beleza é fundamental.

 

Mas não essa beleza beleza

essa que se esgota na beleza

e quer que para fora dela

Nada exista

e não exista nada.

 

Porque o grande mistério é o silêncio

 

E o grande mistério é a mulher

quando nos olha em silêncio

 

as beldades que me perdoem

mas silêncio é fundamental

 

23
Fev24

Filosofia do lixo

Sónia Quental

 

Many of the trees along the way were hung with plastic bags or the remnants of sheets of polythene that flapped in the wind like Buddhist flags on a high Himalayan plain.

Theodore Dalrymple

 

         

Fiquei a burilar durante meses numa crónica que Tiago de Oliveira Cavaco publicou no Observador a propósito das mulheres que se maquilham nos transportes públicos, gesto que se dizia tentado a atribuir à humildade. Tendo eu este atributo na mesma categoria que o Big Foot e as famílias felizes (ouvem-se relatos, mas os avistamentos são raros), a explicação ficou-me atravessada, sem que alguma vez a aceitasse por completo, pela sua ingenuidade um tanto ou quanto perra.

Tão distinta é a origem que encontro para o fenómeno que não hesito em relacioná-lo com o lixo. Na breve passagem que fiz por Londres, no último ano, a impressão que a cidade me deixou foi de tremenda deceção, em parte devido à evidente falta de planeamento urbano, ao lixo e sujidade que vi nas ruas, que me levaram a pensar que o Porto, um concorrente de peso ao novo troféu de Cidade Imunda, teria de se esforçar um pouco mais para lhe chegar aos calcanhares.

Prova de que não me equivoquei é a análise que Theodore Dalrymple – descobri-o mais tarde – tem vindo a dedicar ao tema do lixo em Inglaterra, em artigos avulsos e na obra Litter, que lhe é inteiramente votada. A cultura em que Dalrymple enquadra a prática generalizada de deitar lixo para o chão corresponde à de uma nova geração em que os hábitos crescentes de consumo de fast food e o desprezo pelas tradições familiares se aliam à apoteose de uma autenticidade e espontaneidade desregradas. O retrato pintado é de uma população bárbara que, divorciada de valores históricos e religiosos, não pode senão prestar culto a si mesma (cabe aqui a vénia ao autor, que é ateu, mas reconhece o lastro da religiosidade).

Britons now drop litter as cows defecate in fields, or snails leave a trail of slime.

Theodore Dalrymple

 

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Não me parece difícil encadear esta síntese com a reflexão sobre as mulheres que se maquilham nos transportes e que trazem espelhinhos consigo, como Obélix trazia o seu escudo, nesse belo paralelismo que Tiago Cavaco faz na sua crónica. Embora o nosso país viva outra realidade, aventuro que o seu desfasamento face à sociedade inglesa contemporânea já não será tanto quanto poderia imaginar-se, e o amontoado de lixo aí está para sugerir que seguimos no mesmo trilho e que não são apenas migalhas que deixamos para trás. A diluição entre as esferas do público e do privado, a apropriação abusiva dos espaços partilhados e o exibicionismo vulgar, que acompanha a perda da introspeção e da profundidade em que já aqui tenho insistido, explicam quer a desenvoltura com que certos atos, antes considerados íntimos, se desempenham agora em público quanto a forma descomplexada como o lixo e o barulho atravessam paredes, infestam condomínios e degradam cidades.         

Os espelhos que as pessoas carregam, esses, não são apenas acanhados em dimensão, mas afoitamente distorcidos. Tenho para mim que seremos sempre chamados a prestar contas de como os polimos, se os empregamos para efeitos cosméticos de ocasião, para uma contemplação narcísica ou para um real caminho de aperfeiçoamento que devolva à beleza a sua virtude. 

        

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

24
Set23

O Olho que tudo vê

Sónia Quental

 

No entanto, a cultura atual funciona em bases diametralmente opostas, nas quais o exibicionismo vulgar, a perda da intimidade e a consequente destruição da profundidade estão na ordem do dia.

Maurício Righi

 

A consciência cósmica é substituída pela vigilância social, a percepção do absoluto, pela acrobacia cerebral. Daí resulta uma desidratação progressiva da alma, uma penúria espiritual mais apavorante que a fome.

Arthur Koestler

 

 

 

A pornografia da arte a propósito da remoção de estátuas e a evocação da exposição pretérita Noites Brancas, de Julião Sarmento, coroando a notícia recente do Happiness Camp aqui próximo. A reedição providencial da Beleza de Roger Scruton. Estudos que me permitem continuar a debruçar sobre o masculino e o feminino, interrompidos pela notícia de que quase um terço dos norte-americanos com menos de 30 anos seria a favor da instalação de câmaras dentro de casa.

Se em tempos não acreditava no acaso, hoje já não sei, mas isso não impede que me proponha o desafio de unir as notas aparentemente soltas das últimas semanas e de tentar dar-lhes coerência ou descortinar as relações possíveis entre elas.

Incumbiram-me, em 2012, de levar turmas em visita a uma exposição patente em Serralves: Noites Brancas, de Julião Sarmento, um artista de quem nada sabia e de quem preferiria nada ter ficado a saber. Expor adolescentes à crueldade mórbida e à obscenidade daquela “arte”, por mando de quem vê em toda a cultura instrução vantajosa, foi tarefa aflitiva, que não tentei explicar aos alunos, porque não havia como. Apesar de pouco conhecedora das artes plásticas, diviso nelas a mesma tendência da literatura deste início de século, sobretudo a poesia, que se cose de vísceras e do lado mais pútrido da matéria, no rebaixamento do humano à sua dimensão animal, acometida do desejo gratuito de chocar. No entanto, é esta que merece consagração e que não se pensa em remover da vista pública. Como acusa Zan Perrion, “The symptom of the modern times is that we've turned our face away (...) from beauty. And we celebrate ugliness”.

Não foi apenas o sentido estético que se inverteu, mas a importância que se lhe dá, aventuro que pela relação que a Beleza tem com o transcendente, que, se ainda se inscreve na cultura, é como tradição morta ou fantasia New Age. O questionamento existencial foi substituído pela exploração macabra do excremencial e pelo livre curso dado às ambições demiúrgicas do indivíduo, que não se coíbe de patentear urinóis artísticos e Frankensteins humanos.

 

É possível caracterizar a recaída geral de nossa cultura, rumo à contemplação de formas e conteúdos crescentemente dionisíacos, como uma consagração filosófico-estética de ‘princípios desumanos’. Nesse sentido, o movimento das artes plásticas, em sua depravada hostilidade contra o belo, surge como paradigma dessa degradação.

Maurício Righi

 

       Depois do ataque ao sexo masculino, é a vez de a mulher, representante da Beleza e do Mistério, ser anulada enquanto tal e na nudez que a revela mulher – a menos que seja o tipo de nudez que lhe expõe os fluidos e a decadência da carne.

 

Percebe-se (…) uma rendição incondicional ao biológico em sua faceta decadente e fragmentária, uma vez que o biológico tende, em seu processo orgânico, e de forma inexorável, ao desgaste e à decomposição, junto à correspondente perda de unidade orgânica e harmonia estética.

Maurício Righi

 

 

As forças de decomposição da cultura e da arte, a erosão do género e o materialismo tonificam a apoteose pueril do sucesso, do consumo e da felicidade, concorrendo todos para a exteriorização e a superficialidade do pensamento. Aqui se insere também a influência do New Thought, da psicologia positiva, do coaching e dos movimentos sociais da berra, com as suas fórmulas light, visando substituir moral e religiosidade pelo conforto de lemas progressistas, forçando um falso sentido de harmonia e contentamento que tenta iludir a razão, levando-nos finalmente a repetir que 2+2 = 5.

No entanto, “Na falta de eficientes modelos de transcendência, dos quais dependem as felicidades duradouras, a cultura e as pessoas tendem naturalmente ao vazio e, consequentemente, à infelicidade” (Maurício Righi). O mesmo horror ao vazio, a insegurança, a incapacidade de estar só e de cultivar a solidão que faz com que muitos acendam a televisão desde o raiar do dia farão também com que esses, complacentes com as câmaras que crescem como cogumelos fora de casa, também as queiram instalar dentro. As câmaras e a vigilância tornaram-se o Olho desfigurado da transcendência, a relação que subsiste com o Invisível, despido de Mistério e ao serviço da ordem social, que apenas o sacrifício humano pode aplacar.

 

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Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

22
Ago23

Vigilantes

Sónia Quental

 

Beauty needs a witness.

Zan Perrion

 

O animus é uma cor primária na paleta da psique feminina. 

Clarissa Pinkola Estés

 

 

Noto, em retrospetiva, as figuras vigilantes que atravessaram a minha vida adulta, velando discretamente por mim. Não falo de anjos, mas de homens. Conheço alguns, que são ou foram amigos; outros frequentam apenas os mesmos espaços que eu, vigiando à distância, desconhecendo talvez que a mulher é sensível ao seu radar.

Invade-me um misto de sentimentos: de um lado, a comoção, contrastando com o desgosto do desabrigo que conheci pela mão de outras presenças masculinas, começando pela que me ensinou a correr antes de me mostrar como caminhar.

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Quando me fiz a esse caminho aos tropeços, com pernas maiores do que eu, houve sempre algum vigilante que ajudou a aplanar o piso ou pegou por momentos na minha bagagem, fosse dando-me boleias porque não tinha carro, cedendo o ombro escorreito da amizade, dividindo inquietações existenciais ou os passos da busca da transcendência. Com uma atitude protetora e uma lealdade inabalável, que, com o respeito pelos limites da vida íntima de cada um, me faziam preferir a sua companhia à das mulheres, eram geralmente mais calados e contidos, diziam a verdade e sabiam guardar segredos.

Descobri que eu era o segredo que precisava que guardassem, enquanto me ocupava de o conhecer. Precisava do seu desvelo à minha volta enquanto mergulhava no profundo – dos seus braços sólidos e capazes para me puxarem à superfície quando me esquecia de respirar. Precisei da sua estrutura para descobrir a sacralidade da beleza e dar-lhe a forma que lhe permitisse ser vista. Socorri-me dos seus olhos quando não me via, do seu valor para achar o meu.

No zelo pela minha integridade física, sei-os protetores da inocência que não quero perder, porque a perda seria também sua. Testemunhas e custódios do esplendor, são a retorta que a redenção procura, no seu estado líquido ou ígneo. Quem lhes conhece a força não vê a fragilidade estoica que ocultam. É em nós, mulheres, que a protegem, à custa dos corações tantas vezes dilacerados.

 

 

Recorte de fotografia: 2019 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

08
Jul23

Aprender a ser musa

Sónia Quental

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The human soul is hungry for beauty (…). 

John O’Donohue

 

 When you’re nothing, it’s always a good-hair day. 

Byron Katie

 

 

Ninguém aprende a ser musa. A vida não leva para isso. Na antestreia da maioridade, entregaram-me o roteiro: curso com saída – emprego – marido – assentar, para que não se desperdiçassem em mim os dotes de menina prendada. Em nota de rodapé, sublinhava-se, com letra não muito miúda: deixar de ser mal-agradecida e, acima de tudo, não fazer ondas, porque os conflitos não levam a nada.

Hoje, olho para o que fiz da vida, ou para o que ela fez de mim, para o curso sem saída (sem saída que eu queira), o trabalho sem emprego, o marido por materializar, ainda abalada porque há dias alguém se referiu a mim como mulher de meia-idade. A única coisa que faço razoavelmente bem é a sentar, desde que não me peçam agachamentos, e não há dúvida de que tenho talento para as ondas, que são o que mais gosto de fazer. Ainda assim, não invejo a vida de quem tem tudo aquilo que me parece faltar, fora as ondas.

Não queria sair do meu curso: queria ficar, ser para sempre aluna de professores apaixonados, que não ensinavam coisas práticas, mas ensinavam a sua paixão, adamantinos diante dos grupos de recém-adultos que saíam em debandada a meio da aula para irem jogar cartas para o bar, enquanto eu bebia as palavras daqueles amantes incendiados, com vergonha de quem lhes dava costas. Não era aluna do meu curso: era devota e foi como quem escuta blasfémia que, já adiantados nele, ouvi uma dessas que faziam tráfico de apontamentos e tiravam o curso no bar perguntar-me se gostava daquilo que estudava. Gostar??...

Mas, chegada ao último ano, acabaram mesmo por me mostrar a saída e, como um tropo gasto, em vez do final feliz, foi a realidade que encontrei à porta. Vi que era feiinha e não me convinha. Ser-se adulto não era o sonho que imaginava quando não queria nada além de crescer. Cedo apurei que a vida profissional era uma continuação do jardim-escola e que adultos a sério não havia nenhum. Estavam todos a fazer de conta, as mulheres a brincar às senhoras com sapatos de salto alto e as unhas pintadas, os homens entretidos com brinquedos maiores. E ninguém sabia o que era a vida.

Entre casórios, crias e descasórios, os despautérios do emprego, dramas de família, crises de saúde pelo meio, férias no Algarve e passagens de ano bem regadas, o pacote clássico em oferta nem com desconto e brilhantina convencia, embora continuassem a tentar impingi-lo com toda a espécie de extras, vendedores-abutres que não acreditam no que vendem, mas se dedicam à causa com afinco redobrado, como se quisessem contagiar os outros com a própria infelicidade e receber comissão por isso. Que é como quem diz: comissão pela mentira, porque o cartão de visita da vida “normal” só dizia essa palavra: “Mentira”. Lda. Escritórios espalhados pelo mundo.

O que eu queria era o inverso dela, mas não lhe conhecia morada. Para resumir a história, deixei que a fome me levasse. Ela levou. Mergulhou-me no substrato da existência, que me seduzia mais do que a capa, mesmo que não fosse coisa prática, não desse para faturar, encher o currículo nem para orientar os workshops do arco-da-velha que por aí pululam. Com a Verdade, descobri a Beleza, descobri que a devoção não era apenas pelos professores apaixonados, mas um fogo que já ardia em mim, souvenir oculto do sagrado. Para o manter aceso, teria de aprender a dançar na corda bamba, sem emprego, sem marido, sem destino traçado. Sem a segurança da normalidade e das coisas certas da vida, apesar da condescendência com que sempre me lembram que nada é certo na vida.

O que me alimenta é esse fogo. Hoje, já não quero lugar no jogo cruel das cadeiras, criança infeliz que ficava sempre de fora. Sou a chama, cheia de ondas, que arde no centro. Não há mais a que possa aspirar.

 

Fotografia: 2021 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0