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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

28
Jul24

Caixa de comentários

Sónia Quental

         Nas caixas de comentários e opiniões que preenchem esta vasta malha virtual, a descortesia é presença tão assídua que já deixou de chocar. O estranho é ter tido eu neste blogue quase sempre a experiência do contrário, uma experiência que apenas tem crescido em maravilha e esplendor. Foi isso que me resolveu a trazer a um merecido primeiro plano alguns dos comentários às publicações mais recentes, normalmente menos visíveis na página – testemunhos belos e genuínos, que se entrelaçam com os textos do blogue, os expandem, põem em relação, acrescentam novas dimensões, e a eles aportam contributos próprios e visões originais, de uma riqueza tocante e um sentido de humor energizante!

         Aqui fica, pois, uma seleção, organizada por artigo e por ordem cronológica (do mais antigo para o mais recente), com a minha vénia aos autores e o pedido de desculpas pela formatação, que me tem dado alguma luta, com um tamanho de letra que oscila entre o gigante e o minúsculo. Preferi o gigante para a parte que se segue.

         (Claro que isto não foi mais do que um pretexto para concretizar o sonho de longa data ter o meu nome à frente da insondável legenda "Curadoria de", que vai aqui implícita. Parece que é profissão. )

 

"Desvéus"

  • "Alguém um dia disse que a elegância de uma mulher está onde acaba a manga e começa a luva. Claro que nos moldes de sociedade actuais, é uma metáfora. Contudo, a mais bem posicionada para que o desejo de mistério se transforme na revelação de um irresistível cuidar. Afinal as mais valiosas e frágeis porcelanas estão sempre guardadas num cofre." (João)

 

"Olhar para o teto"

  • "Mais um pertinente post este seu post. No entanto tenho que dizer que nunca olhei para o teto pois não sigo o acordo ortográfico,por isso sempre olhei para o tecto.
    Nota extra: Actualmente na minha sala consigo ver as paredes e parte do tecto (tudo branco mas a precisar de repintura),e eu próprio no ecran da tv(uma bela grundig dos anos 90)pois avariou,abençoada seja,no domingo da despedida de Lisboa do sr Bispo de Roma o papa Chico, e até hoje o único ecran no qual ponho os olhos(cá em casa)é mesmo este do tablet onde estou a debitar estas palavras." (O apartidário)

 

  • "Identifico-me com o que escreve. Sou advogado há 4 anos, mas gostaria muito mais de antropologia. Era preciso ser indepente, sem pesar na família...
    Mas nunca deixei de olhar o céu e o seu sem fim. Por isso fui escrevendo, até hoje em que escrevo sobretudo" (João-Afonso Machado)

 

  • "O meu primeiro tecto, na medida em que passava horas a contempla-lo, primeiro ao lado do meu avô e mais tarde sózinho, foi o céu noturno. Tive a felicidade de dormir na rua, ao relento como era comum dizer-se na altura, a partir dos 8 anos, no interior algarvio, ao lado do meu avô, precisamente nas férias grandes.
    Na altura em que luz eléctrica era uma miragem e a escuridão era total, as minhas princesas vinham-me beijar todas as noites, eram as estrelas cadentes que a escuridão permitia serem vistas de forma tão simples e nítida." (Vagueando)

 

  • "Nasci a olhar a torre de Belém. Na bairro da Ajuda, descansava no curto espaço onde algo me empurrou para o mundo e onde a paisagem me roubava o olhar o tecto em branco.

    Foram muitas as fugas sem dar paradeiro, subindo num voar que escapava ao obstáculo que era o Porto Brandão e só encontrava o meu tecto branco na planura das terras sem sombra do Alentejo.

    No fundo, o que procurava era dar testemunho de que o humano serve o grilhão de carregar a angústia de começar algo. Aquela vertigem do escritor, do pintor e da criança que espera, no ambiente vaporoso do nada, que uma emoção lhe atravesse o pensar por um estímulo inocente.

    Era na planície que a liberdade sorria. Era na ternura de estar perdido que encontrava o ar ventoso abalroando me pelos quatro cardeais, rodopiando pelo ciclo da vida livre da contingência de existir como começo de algo, num pensar a que lhe escapa a plenitude do ser. Caminhar em linha mas perdido era como estar parado e sentir a vertigem de uma consciência cíclica. O génio enganador sempre colocava uma árvore defronte para sentir o desejo de parar na sombra. Mas parar é o nada para que tudo comece, e eu não queria regressar àquele espaço curto da Ajuda para voltar a sentir que o tecto branco me lembra a angústia de ter que começar algo. Torturei a minha vida na filosofia, mas estou preso de estar livre." (João)

 

"O caroço"

  • "É, sem dúvida, a surpresa do erro que, desafiando o pressuposto, conduz à transformação interior de que fala Adyashanti. No famoso conto de fadas, Bela não só ajuda a transformar o Monstro, que aprende a amar e a ser gentil, mas também passa pela sua própria transformação ao conseguir ver além das aparências.

    Desconheço se, por trás de uma fachada pós-moderna, haverá algo de muito substancial. Sei, tal como a Sónia, que a procura de respostas para as grandes perguntas da vida fica, quase incontornavelmente, cativa de rodriguinhos.

    Acredito de igual modo que, em contraponto com a superficialidade vazia e ilusória dos autoconfiantes, a perseverança se revela uma 'virtude cardinal' valiosa e eficaz." (Olivier)

 

"Flechas na escuridão"

  • "Obrigado pela disponibilidade, mas não há nada em mim de pessoal ou íntimo. Sou um cidadão do mundo de 50 anos que após anos de docência em filosofia decidiu abandonar tudo e concretizar o sonho de estar no meio dos pobres para ser uma voz que lhes combate a solidão aqui no Brasil, onde vivo numa casa de madeira com os meus animais bem no fundo da mata atlântica. O meu comentário é um desabafo das angústias que aqui testemunho. Estou de pé descalço com eles em missão de humanidade. Estamos juntos nos bons e maus momentos. Gente com esperança num Deus ausente, mães solteiras que saem todos os dias e regressam a casa com um sorriso no rosto num país misógino e discriminatório entre os seus. Homens presos à pinga onde esquecem a solidão. Senti muito o seu texto porque identifiquei nele este contexto aqui e o meu único vizinho do lado, velhote que passa as noites com o rádio acesso. No fundo como dizia Horácio, há uma maneira de transmitir a filosofia pelo contágio, que para que um poeta o pudesse faze lo chorar, seria preciso, antes, que o poeta também chorasse.

    Bem haja Sónia." (João)

 

  • "Já não se ouve, não se fale, apenas e sé se esgrime razões que a prórpia razão tem vergonha em reconhecer.
    Alguns professores deixaram-me a sua voz gravada e recordo o José Hermano Saraiva com a sua voz inconfundível.
    O tempo da voz, sem ruídos, sem adereços, como os serões na casa do meus avós, onde não havia sequer luz eléctrica, nem tão pouco mais do que um ou dois vizinhos próximos, eram sempre o prolongamento das longas conversa ao jantar que combatiam a solidão." (Vagueando)

 

  • "A decisão de parar e ouvir verdadeiramente é uma das escolhas mais poderosas que podemos fazer nas nossas vidas. Quando nos permitimos estar presentes, sem distracções, damos espaço para que a sabedoria silenciosa do mundo nos envolva e transforme. Ao escutarmos essas vozes que nos ajudaram a crescer em consciência, percebemos que ecoam como um caroço que, apesar de sua aparência modesta, carrega em si o potencial de uma árvore inteira.

    A dureza do caroço, que resiste à penetração e à deformação, ensina-nos a necessidade de construir uma base sólida de convicções e valores. A tenacidade, que permite ao caroço absorver energia antes de fracturar, recorda-nos a importância de sermos flexíveis e adaptáveis, sem perdermos a nossa essência.

    Não tenho paciência para a palavra 'resiliência', utilizada indiscriminadamente e esticada em todas as direcções até romper. Originalmente, resiliência refere-se à capacidade de um material retornar ao seu estado original após ser deformado. Mas, na vida real, não somos meros materiais elásticos. A nossa existência é marcada por transformações permanentes que nos moldam e redefinem. Assim como um caroço que, ao germinar, não volta a ser caroço, mas se transforma numa nova vida.

    A elasticidade do caroço mostra-nos como é vital sermos resistentes às pressões externas, mas também aceitarmos que algumas mudanças são irrevogáveis e nos levam a novas formas de ser. A resistência à compressão e ao impacto reflecte a nossa capacidade de suportar os desafios da vida sem colapsar, (por mais, ou menos, 'autoconfiantes' que sejamos). Contudo, é crucial relembrar que essa resistência não significa uma volta ao estado anterior, mas sim uma evolução contínua.

    O acto de ouvir, de verdadeiramente parar e se religar com essas vozes que nos guiaram, é um exercício de profunda introspecção e humildade. É reconhecer que, assim como o caroço necessita de tempo, paciência e condições adequadas para germinar, também nós precisamos desse espaço para florescer. A verdadeira força está em reconhecer as nossas vulnerabilidades e confiar que elas nos guiem em direcção a um crescimento autêntico.

    As vozes dos professores apaixonados, dos mestres do mistério e dos peregrinos do espírito são como esses caroços – pequenos, mas carregados de potencial transformador. Elas ensinam-nos a importância de escutar o silêncio, de buscar a profundidade nas nossas interacções e de encontrar a comunidade dispersa de almas afins.

    A solidão e a desconexão que permeiam a nossa sociedade moderna são um alerta urgente para redescobrirmos o poder da escuta genuína. Assim como o caroço, que só pode cumprir o seu destino ao abrir-se para a terra, nós também devemos destapar-nos para a verdadeira escuta, permitindo que as vozes sábias nos contagiem e transformem.

    Ao invés de nos fixarmos na superficialidade descaroçada da resiliência, devemo-nos inspirar nas qualidades profundas do caroço – na sua dureza, tenacidade, resistência e capacidade de se transformar. Só assim podemos verdadeiramente florescer e encontrar um sentido mais profundo nas nossas vidas e relações, prosseguindo na pegada do silêncio." (Macedo)

 

  • "É no silêncio profundo de algumas vozes que reencontramos a essência perdida das relações humanas e a luz que dissipa a solidão." (Olivier)

 

14
Dez23

Emplastros Anónimos

Sónia Quental

Às assombrações que pairam sobre estes blogues.

 

            

- Emplastros Anónimos. Em que posso ajudar?

- Boas. Olhe lá, ó moça, disseram-me que tinham aí uma teta que tirava cafés…

- Bom dia, Sr. Emplastro. Queria dizer “seio”, certamente. Temos uma máquina que serve leite orgânico, com um cheirinho a acompanhar. Pode escolher a tipologia do mamífero: trans, bi, cis, dis, mis, mu…

- Olhe, mas qual é o objetivo? É a pagar??

- A nossa organização é uma organização filantrópica, sem fins lucrativos...

- Fi… tró… quê??

- Quer dizer que não tem de pagar o leite nem o cheirinho. Aliás, o nosso objetivo é ajudar ao desmame de todos os Emplastros. Temos planos de expansão e em breve marcaremos presença nos países de terceiro mundo.

- Mame ou desmame… Desde que tenha o que interessa….

- Tenha calma, Sr. Emplastro. Não oferecemos cuidados paliativos: estamos aqui para curar dependências. Começamos pelo seio duplo (com ou sem pilosidade), depois passamos para o mono, o biberão, o leite em pó… É um longo percurso até chegar às papas e aos sólidos.

- E entregam canetas ou calendários?

- Temos todo o tipo de brindes e regalias para os sócios. Fazemos inclusive reciclagem do diploma de 1.º ciclo, com financiamento do Estado e estágio integrado para remover o estigma do analfabetismo e promover a reinserção na sociedade.

- E pagam subsídio?

- Pagamos o rendimento social, desde que tenha aproveitamento aos módulos. Depois de aprender a ler e a escrever, temos módulos mais avançados de hermenêutica, com introdução ao sentido de humor, à ironia, ao sarcasmo… Quem conseguir chegar ao 3.º ciclo recebe algumas luzes sobre subtileza e inteligência emocional.

- Mas qual é a utilidade?

- A utilidade é que passará a conseguir ler e interpretar um texto sem ter de pedir ajuda aos autores. Irá desenvolver a autonomia.

- E as casas de banho são mistas?...

- Temos o prazer de informar que subscrevemos integralmente os mandamentos da diversidade e da inclusão, que são o motivo primário da nossa existência. A nossa bandeira é a autodeterminação e a euforia. Somos um baluarte da saúde mental.

- Bal… quê?? O que tu queres sei eu...

- Peço desculpa, Sr. Emplastro, mas tenho outra chamada em linha. Se quiser tornar-se sócio, prima a tecla 1. A tecla 2 se tiver mais perguntas sobre a nossa missão. A tecla 3 para apoio psicológico à disforia do Emplastro…

 

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Fotografia: 2012 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0