“Reforce as suas defesas” leio no vidro da farmácia, na mesma manhã em que me dizem que querem instalar câmaras de vigilância no edifício, depois de um segundo assalto à garagem. Se já andava mal-avinda com as que começaram a ornamentar as ruas, anunciando a Era do Grande Irmão, ele só adquire plenos poderes quando nos entrar em casa e se sentar no sofá ao nosso lado.
Enquanto trabalho, ouço os vizinhos darem todas as voltas à chave de cada vez que alguém entra ou sai de casa. As voltas são muitas, o que significa que, ao fim de um dia, o meu cérebro já deu nó e vou ter de pedir ao Grande Irmão, sentado no sofá, para o destrinçar com a paciência de quem me quer bem. Se também fizer massagens, estou disposta a reconsiderar a questão das câmaras, em vez de voltar a ser aquela ovelha de quem todos gostam, nas famílias e noutros lugares, por fazer coisas como bater o pé.
Largar o medo é um trabalho de todos os dias, daqueles a que poucos estão dispostos, depois de o terem como conselheiro de todas as horas. Se não é a IA que nos pode matar, é o açúcar, os hidratos de carbono, o glúten, a falta de vitaminas ou de cálcio, ao ponto de se ter tornado uma aventura levar seja o que for à boca. A inflação anda à solta de catana, de braço dado com a doença, as impertinências do aquecimento global, as “emissões” que fazem notícia, a ameaça planetária do momento, mas o que mete mesmo medo são as pessoas vestidas de astronauta, fato e viseira a rigor. Esta a condição a que chegámos, depois de conquistar terras e mares: andamos de olho na lua.
Há dias em que não sei se alucino ou se entrei numa saga do realismo mágico, a única corrente artística que retrata com acerto o insólito do mundo, com o bónus de ter um nome de que também gosto. E não é menos que magia o que se espera das medidas externas quando se lhes pede que, eliminando o foco do perigo, o medo também acabe. Trancam-se as portas, mas o medo fica lá dentro. Muda-se de casa e ele vai atrás. O medo fareja e fareja-se. É por isso que, por mais reforços que se faça, as defesas nunca chegarão. Retomando uma frase já aqui citada: “There’s so much more to life than the avoidance of death” (David Weiss). Há quem goste de lhe chamar negacionismo.
In The Marvelous Mrs. Maisel