Nas ruas o silêncio
Gosto de sair cedo no dia de Natal e de Ano Novo: as ruas são íntimas, densas de silêncio. Procuro a intimidade com a mesma obstinação que antes de me apontarem essa falha: a de só querer relações íntimas. A diferença é que agora sou consciente disso e nem às ruas dou trégua.
O costume que se vê de aproveitar as festividades religiosas e os feriados à sexta-feira para tirar férias deu-me a esperança de que a Páscoa fosse igual, mas nem a chuva sossegou as pessoas em casa. Embora há anos não celebre Natal nem Páscoa e não simpatize com o fanatismo das dietas sem açúcar, não posso deixar de reparar em como os grandes feriados religiosos estão cobertos dele. A guloseima é a melhor forma de evitar que se pense no significado daqueles dias que se põem a jeito para um fim de semana maior.
Como as All Star e o vinil, o catolicismo voltou a estar na moda. O efeito decorativo é o mesmo, a vanglória dos novos convertidos igual à de quem passa a frequentar um clube exclusivo – só que neste todos podem entrar. Basta ajoelhar no palco e gritar o nome de Jesus para que os pecados se façam lã e os lobos de antanho virem cordeiros luzentes, já prontos a evangelizar.
Nem sempre apetecida, porque não há molho que a adoce, a relação com a cruz só pode ser íntima – esbarramo-nos com ela nas alamedas da vida, cada vez mais despidos de conceitos. No fio dessa nudez íntima, se nos ajudar o equilíbrio, repousa o berço prometido, com a sua amêndoa secreta de silêncio, mais maciça do que qualquer esperança vã.
O verbo acreditar é um dos ingredientes mais importantes da libertação humana da atração fortíssima de Deus. Se acreditamos, acreditamos, e podemos ir almoçar depois. A crença religiosa é o nosso bilhete para a liberdade. Os crentes são as pessoas mais preguiçosas que existem.
Manuel Curado
Fotografia: 2023 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados