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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

14
Ago24

Miss Magnética

Sónia Quental

 

     Olá a todas, eu sou a Miss Magnética, coach intuitiva do amor, como podem ver pela minha farta cabeleira. Atrás de mim, está a minha equipa de anjos 24/7, que me convenceu a fazer este vídeo para celebrar o aniversário dos meus 10 anos de carreira e mais de 50 000 horas de experiência, que me permitiram dar o salto quântico. Só não me qualifiquei para as Olimpíadas porque os anjos estavam de férias nas Plêiades e se esqueceram de dar aquele empurrãozinho que faltava.

         Mas enfim, hoje estou super triste e trago uma mensagem que nem todas vão gostar de ouvir… Tenho de confessar que estou super sensível e preciso de ser super honesta com vocês. Este é um momento super vulnerável, porque como sabem a vulnerabilidade é o ingrediente secreto do amor. Por isso, vou abrir-me e ser super transparente com vocês.

         Tentei criar um espaço seguro, um espaço de empatia e compaixão que vos ajudasse a superar desafios, a saírem da vossa zona de conforto e a criarem resiliência para se empoderarem como deusas que são. Mas a verdade é que fui abusada. Vocês disseram que queriam, mas afinal não queriam. O amor, isto é.

         São más e manipularam-me, quando eu até de madrugada estava disponível para canalizar as mensagens dos anjos e para vos aturar. Os outros coaches cobram balúrdios e nem fazem atendimento personalizado, quando tudo o que eu pedia era um pequeno investimento de 4999 €, que iam acabar por recuperar, mas parece que nem dado. E as que se comprometeram e disseram que queriam afinal não queriam. Mentiram-me. São más e inseguras, e tentaram usar-me para manipular os homens.

         Vou ser ainda mais transparente e atirar-vos à cara que os anjos ficavam com 90% de comissão e cobravam 200% à hora de madrugada e aos fins de semana. No fim, sacrifiquei a minha saúde e ainda saí prejudicada. Claro que isso não seria nada se vocês quisessem MESMO e estivessem dispostas a sair da vossa zona de conforto para vibrarmos em sintonia. Mas são demasiado ingratas e não estão dispostas a trabalhar para atrair a vossa alma gémea.

         Por causa de vocês, experienciei carradas de energia negativa e um ambiente tóxico. Ainda estou a cambalear. Mesmo assim, esforcei-me ao máximo, com toda a minha empatia, por enviar amor e luz para a vossa ruindade, mas ela foi mais forte do que eu. Não tenho vergonha de admitir. Dei tudo de mim apenas para ser traída, como Cristo.

         Mas olhem, para as que quiserem MESMO, estou prestes a lançar o novo curso Descubra a Deusa Irresistível que Há em Si, que vai ajudar a reprogramar as vossas crenças limitantes e ainda oferece uma pulseira magnética que muda de cor e um áudio com afirmações subliminares. Pagamento adiantado e não reembolsável. Para testar a vossa seriedade.

           Namastê!

 

20
Jan24

Conjunção adversativa

Sónia Quental

Enquanto esperava, vi-a trocar o calçado de rua por sapatos de salto alto, ligar o som de discoteca e exteriorizar uma versão turbinada da figura à civil que tinha entrado, qual Clark Kent em posse da sua capa milagrosa: uma ex-cozinheira metamorfoseada em coach.

Se cheguei de pé atrás, saí à caranguejo, arrepiada pela criptonite do coaching, mas houve um momento alto, fora a música, que salvou a ocasião, quando a nossa heroína distribuiu folhas coloridas pelos presentes, pedindo que desenhássemos um sonho. À minha volta, via braços de gula a riscar casas, famílias, profissões, viagens, e eu, mesmo que soubesse desenhar, não saberia o quê. A mesma coisa que em criança, quando a minha mãe me dizia para pensar em coisas boas nas noites em branco, e eu desconhecia o conceito.

A única coisa que me ocorreu na sessão, talvez pelo amarelo da folha, foi o sol, que fui obrigada a mostrar e a dizer o que era em voz alta, como se não se percebesse, erguendo-o de novo no final para a fotografia de grupo, que devo ter enterrado depois de receber. A descoberta ficou, nem por isso fácil de instrumentalizar: queria ser sol, achado que se atou a um dos dois poemas que trago no imo, ambos de três versos, além do título, e de autores de língua portuguesa. Este chama-se “Solar” e é da brasileira Adélia Prado, um nome que pouco se ouve por cá:

Minha mãe cozinhava exatamente:
arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.

Cheguei a dá-lo nas aulas como exemplo do poder da palavra certa no sítio certo – neste caso, da conjunção adversativa do último verso, que alça a banalidade da declaração à condição lírica. Fosse um “e”, em vez de um “mas”, e o efeito era outro.

Ficaram-me o “mas” e o “não” pendurados na boca quando me deram a fala, sinetes na fronte, no sobrolho franzido, porteiros de toda uma sina. Precoce, tornei-me adversativa antes de saber classificar a palavra, aprender a deslindar o trigo e o joio, meu trabalho de Hércules. Só que não bastava dizer “não”, obstinar os “mas” – havia que depurar a matéria plúmbea para que harmonias brotassem. Não basta ser-se soalheiro: é preciso ser-se solar.

Pensando no poema, na folha amarela, se me atrevo a um sonho, é volver copulativa, mesmo que  perca poesia e contraste. Arredondar cantos, desenhar um destino onda, em que não precise de salto alto para me fazer maior. Quando deixar de ser vértice, serei matéria solar.

 

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