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Na Pegada do Silêncio

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

" ‘You are a lover of silence’, he said". H. W. L. Poonja

Na Pegada do Silêncio

05
Mar24

...e de outros demónios

Sónia Quental

 

The demons have not really disappeared but have merely taken on another form: they have become unconscious psychic forces.

Carl Jung

 

 

Começo esta nota no sítio onde me deixou uma das últimas: na paragem de autocarro de onde vejo descer uma mulher a fazer o sinal da cruz, numa manhã de domingo que podia ter saído de um quadro de Edward Hopper.

O gesto desusado no passeio onde caminhava só de corpo levou-me a interrogar que demónio teria visto lá dentro ou se algum se teria soltado da trela nem sempre curta a que os temos presos. Ouço muitas vezes as pessoas falarem dos seus demónios sem conseguirem conter a ternura entrincheirada entre a exasperação e a culpa, referindo-se com esse nome a obsessões, compulsões ou aspetos não resolvidos que as atormentam e com que passaram a identificar-se.

Quem ouve as queixas da tormenta percebe que os demónios não vão embora porque ganharam a afeição dos hospedeiros. Seja lutando contra eles ou em conversas imaginárias, dão-lhes alimento e nem assim encontram a doçura. Depois, é vê-los em passeio pelos parques, trocando impressões sobre ração e disciplina. Se alguém se assusta com os latidos, os donos acodem em sorrisos: “Não tenha medo, que ele não morde!”. E lá vêm os relatos das traquinices da criatura que se enrola sibilina na perna do passante.

Na busca do par ideal, testa-se primeiro se os demónios são compatíveis: não precisa de ser perfeito, desde que seja recíproco. Sacrificada a perfeição, entreter demónios dura uma vida de tempo perdido. São mil que não vemos em cada um, com medo de se acharem sós num quadro sem gente – do lado onde bate a luz.

 

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

30
Dez23

Anéis de rubi

Sónia Quental

 

Veio-me uma sensação desagradável à boca do estômago quando ouvi pela primeira vez o Rui Veloso avisar que Não se ama alguém que não ouve a mesma canção. A ligeireza desatenta da rima fez esgueirar a verdade como um tiro a que tentei escapar, em vão. E não havia formatação que apagasse a música do disco rígido da mente.

Era o corolário de experiências semidigeridas, augúrio funesto de escolhas desastradas – desastradas, não porque os astros as ditassem, mas por lhes ter trocado as voltas ignorando a voz da sabedoria, isto é, a voz do Rui Veloso, que trepou vezes suficientes ao superego para me soprar, com um prazer maldisfarçado: “Eu bem te disse”. Não desta maneira, mas com a poesia do Carlos Tê, que nem por isso acalmava o vexame.

Para mostrar que aprendi a lição, conto com contrição os anéis que empenhei para tentar que alguém ouvisse a mesma canção que eu. De que adianta desfalcar espólios em troca de companhia para o concerto? E que música se pode fazer entre instrumentos que não afinam entre si, por mais que se dê o Lá? As bandas sonoras não são um figurante sem rosto numa história de amor: são protagonistas, e é por isso que são convidadas para a boda, onde não se espera ouvir o Rui Veloso lamentar a saliva que gastou para mudar alguém nem os convidados a dançar uma salsa em linha demasiado gingada, quando era a valsa que se pedia.

Tudo subtraído, a despesa vai aumentando e há lições que não é preciso pagar mais de uma vez só para refrescar a memória. Não compensa penhorar bocados de nós pelo consolo fátuo da companhia ou de um amor contrafeito que só nos torna mais pobres – forçar harmonias entre notas que não pertencem à mesma escala. Melhor será desenvolver o ouvido para a música, poupar a saliva e guardar os anéis para quem goste de nos ver usá-los.

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Fotografia: 2018 © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados

 

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Na Pegada do Silêncio by Sónia Quental is licensed under CC BY-NC-ND 4.0