Da marmelada e de outras compotas
Apesar de termos deixado de nos reduzir ao desempenho de papéis sociais, com a noção de felicidade pessoal e autorrealização ao leme da nau das liberdades individuais, o resultado não parece apontar para um aumento da saúde mental, da satisfação e da felicidade em si. E não, desta vez a culpa não é do governo.
A abundância de possibilidades e as facilidades materiais que nos foram abertas nem por isso trouxeram vidas e relacionamentos mais significativos. Pelo contrário, igualmente fartas são a desorientação e a impermanência, com as pessoas saltando de emprego em emprego, de casa em casa, de relacionamento em relacionamento, de diversão em diversão, despedaçando a sanidade já vacilante contra o relaxamento sedutor dos valores morais, que não cumpriu a promessa de lhes sossegar a alma.
Havendo ainda quem lucre com a propaganda, tudo indica estar condenado à extinção o mito obsoleto das “almas gémeas”, em todas as suas variantes criativas (soulmates, twin flames, ...), dividindo-se as alternativas entre uma visão cínica e amargurada do sexo oposto, e o investimento em parcerias funcionais, segundo a lógica objetificante do comércio. Quando se torna demasiadamente fácil o acesso a relações físicas, e o conceito de intimidade emocional baixa cada vez mais o preço, é tentador sonhar com o unicórnio que se diferencie, reabilitando o que parece já não ter defesa: a pureza, a confiança, a lealdade, a constância – impermeáveis à degradação reinante. É uma ânsia remota, que adquire os contornos esfumados da fantasia e soçobra contra os números dos divórcios e das famílias desfeitas, a normalização dos deslizes e das relações “abertas”, do sexo casual, das situações sem rótulo e sem compromisso, das permutas leves em ambientes de limites também eles esbatidos.
Como os produtos perecíveis e de consumo, as relações têm ciclos cada vez mais curtos, prazos de validade impiedosos. A fluidez insensível dos encontros e das salas de chat já não deixa que se pense em alguém como “especial”. Nesta impessoalidade sem contratos, estamos todos de passagem – no strings attached. Os finais escrevem-se em aberto, o destino pesa: deixá-lo fluir.
Fotografia: © Francisco Amaral – Todos os direitos reservados